Qualquer pessoa com um mínimo de discernimento sabe que a corrupção é só o argumento para querer um golpe. Serve a alguns incautos, ainda que em tempos de Google nem em incautos se possa acreditar mais, dado que a corrupção no Brasil é estrutural, as informações sobre isso estão a dois ou três toques no teclado, mas os indignados só a enxergam no PT.
O que está em jogo nestes dias, acho, não é a corrupção, nem a mudança dos costumes relativos à gestão da coisa pública, mas sim a manutenção do atual modelo econômico e de inserção do Brasil no cenário mundial, ou de sua derrubada.
E no caso de derrubada já sabemos o que deverá vir por ai: a reversão do moderadíssimo processo de redistribuição de renda iniciado no governo Lula, um ataque ainda mais pesado que o atual aos direitos dos trabalhadores e às políticas sociais, a retomada da agenda mais hardcore da privatização, a mudança do marco regulatório do pre-sal de modo a favorecer petroleiras estrangeiras e uma mudança acentuada na política externa, tirando o Brasil do caminho dos BRICS e da América do Sul e levando-o de volta a uma aliança preferencial com Washington.
Leia o artigo que afirma: o discurso anti-corrupção é só uma fachada:
Carta Maior:
Ódio ao PT?
Na história do Brasil, sempre que o salário mínimo e a renda média subiram, houve algum tipo de intento golpista. O problema da elite não é com a corrupção
Três intelectuais de relevo trataram recentemente acerca do ódio ao PT: Leonardo Boff, Luis Fernando Veríssimo e Luiz Carlos Bresser Pereira. Suas palavras têm a lucidez de quem enxerga além das aparências e do senso comum. Embora o momento corrente não seja corriqueiro, um olhar histórico traz ensinamentos.
Na Revolução Francesa, por exemplo, na aparência havia uma ruptura lastreada em novos valores: Liberté, Egalité, Fraternité. O pano de fundo real era, entretanto, a emergência de um novo grupo. Em meio a um período econômico conturbado, a burguesia degolou o poder político e o status social da aristocracia.
No Brasil, a constatação de que a escravidão foi excessivamente longa já sinalizava que o arranjo da sociedade é deveras estamental. Políticas progressistas sempre encontraram fortes barreiras conservadoras.
Os conflitos de 1954, por exemplo, foram intensos. Na superfície, o governo estava cercado diante dos “escândalos” de corrupção. A constante oposição na imprensa desgastava Vargas. Em 1954, o então presidente aumentou o salário mínimo em 100%. Quem não é ingênuo sabe que Vargas estava contrariando interesses empresariais, tanto com a concessão de direitos trabalhistas e civis, quanto com ampliações salariais. O suicídio foi a saída honrosa ao cerco montado.
João Goulart foi presidente em um período de conflitos. Seu governo concedia elevados aumentos salariais, prometia reforma urbana, voto de analfabetos, elegibilidade de todos brasileiros, reforma agrária, concessão de terras a trabalhadores rurais, justiça social, emancipação dos brasileiros. Caiu! O receio do “golpe comunista” foi o discurso raso que justificava.
Vargas e Goulart saíram do poder ao tempo em que concediam direitos sociais, sobretudo aos menos favorecidos. Não é novidade que durante os governos do PT, os trabalhadores ampliaram sua renda, o salário mínimo cresceu de maneira contínua e houve uma série de programas sociais. Não surpreende que, mais uma vez, setores da sociedade brasileira se ergam contra tais políticas, ainda que, escamoteadamente, o bordão seja “contra a corrupção”.
Evidentemente, existem elementos factuais dos governos Lula e Dilma que causaram desconforto e indignação a todos os cidadãos. Contudo, é preciso muita inocência para imaginar que as manifestações contra o governo são incentivadas pelo descontentamento com a corrupção, pela elevação do preço do combustível ou da energia. Quem tem conhecimento histórico e compreensão profunda da sociedade não ignora a ojeriza existente a um programa que garante R$ 35,00 para os pobres. O ódio não é ao PT.
Conhecendo um pouco mais dos dados do Brasil se observa que houve dois momentos de crescimento relevante do nível dos salários: no período Getúlio Vargas - João Goulart e nos governos do Partido dos Trabalhadores. Os gráficos abaixo não apenas demonstram esses movimentos como indicam que presentemente o excedente operacional bruto caiu em relação ao produto total em detrimento do incremento nos salários. Interesses poderosos estão sendo feridos. Não apenas segmentos estão perdendo, em termos relativos, como também regiões. Será mesmo preciso pintar de azul em um mapa qual região perde mais com a solidariedade distributiva?
*Doutor em economia, pesquisador da Fundação de Economia e Estatística e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
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