segunda-feira, 29 de abril de 2019

Bolsonaro investe contra as Ciências Humanas, contra a Cultura e contra os Direitos






Bolsonaro e as Ciências Humanas, por Aldo Fornazieri

Movidos por ressentimentos e recalques, ele e seus milicianos ideológicos investem contra a cultura, contra a diversidade, contra os direitos, contra a intelectualidade, contra o conhecimento, contra a ciência e contra a arte.


Bolsonaro e as Ciências Humanas

por Aldo Fornazieri

No exercício recorrente da aventura da sua própria ignorância, Bolsonaro se especializou em causar um mal-estar cotidiano a amplos setores da sociedade brasileira. Somente os seus seguidores se comprazem com o grotesco ensandecimento dos ataques permanentes ao razoável, ao bom senso, à razão, ao comedimento, ao respeito, à responsabilidade é à própria dignidade do cargo presidencial.
Numa hora com seus filhos, noutra com o velho e o novo ministro da Educação, em terceira hora com o ministro das Relações Exteriores e, a todo momento com o tresloucado guru da Virgínia, Bolsonaro não se cansa em causar desconforto à opinião pública, em envergonhar o Brasil junto aos brasileiros e ao mundo. Movidos por ressentimentos e recalques, ele e seus milicianos ideológicos investem contra a cultura, contra a diversidade, contra os direitos, contra a intelectualidade, contra o conhecimento, contra a ciência e contra a arte.
Motivado por uma vontade de ditador – uma vontade absolutista – Bolsonaro quer submeter tudo aos seus desejos. Quer violar permanentemente as determinações da realidade, as mediações das instituições, os limites interpostos pelas leis, os direitos instituídos, a diversidade como forma da existência, a pluralidade da democracia e as intercorrências das contingências. No seu modo de pensar bruto e no seu agir grotesco, quer submeter tudo e todos à violência de suas decisões, aos desatinos de sua vontade. Investe contra o vice-presidente, contra ministros, contra o presidente da Câmara, contra as oposições, contra as maiorias e minorias sociais, contra a liberdade de imprensa, contra a publicidade que não lhe agrada e, agora, contra as Ciências Humanas e Sociais e contra a Filosofia.
Com seus ressentimentos fundados nos seus medos e fobias, ataca gays, grupos LGBT, negros, índios, mulheres, jovens, camponeses e pobres. É notável a fixação que Bolsonaro tem por gays e temas sexuais de um modo em geral. Chega a impressionar tanto a repulsa que nutre aos gays, quanto a profusão de suas metáforas ligadas a relações amorosas de casais quando quer se referir ao relacionamento dele com outras pessoas, mesmo se referindo a homens, a exemplo de Rodrigo Maia, Mourão ou Benjamin Netanyahu. Talvez haja alguma explicação freudiana em tudo isso. No fundo, o que parece odiar são as liberdades de escolha das pessoas.
O ataque de Bolsonaro e do seu ministro da Educação às Ciências Sociais e Humanas e à Filosofia expressa o mais profundo ressentimento à reflexão, ao raciocínio complexo e ao pensamento crítico. Não é por acaso que a dupla, assim como as mentes autoritárias e totalitárias em geral, alimentam repulsão à Filosofia e às Ciências Humanas. Como se sabe, movimentos autoritários e  totalitários se fundam na mentira e se sustentam no poder pela mentira, pela negação da realidade e pela projeção de uma realidade imaginária e arbitrária.
Os estudos clássicos de Theodor Adorno sobre o ressentimento da personalidade autoritária identifica na mesma os seguintes elementos: fixação obsessiva por valores conservadores e tradicionais; submissão cega e inconteste às lideranças; desejos e tendências de punir os outros, a alteridade e a diversidade; reações negativas a elementos subjetivos-reflexivos; projeção de pulsões ao mundo exterior (desejos de matar ou estuprar, por exemplo); obsessão por temas sexuais. Não é preciso fazer grandes pesquisas para identificar esses elementos no bolsonarismo.
Com Sócrates, Platão e Aristóteles, a Filosofia nasceu para interditar a arbitrariedade da linguagem discursiva e o ardil sofistico e mentiroso da opinião. O princípio da não-contradição das assertivas e o rigor lógico do método retórico estabeleceram um limite ao vale-tudo nas relações e nas afirmações humanas. São esses limites que Bolsonaro e os seus buscam violar com sua violência discursiva, com sua pós-verdade, com suas mentiras que serviram de instrumento da disputa eleitoral e servem de instrumento de governo.
Bolsonaro e seu ministro da Educação certamente desconhecem que a Filosofia é a mãe de todas as ciências e que a Filosofia, assim como as Ciências Sociais e Humanas continuam sendo essenciais para o desenvolvimento de todas as outras ciências – da Física à Biologia. Desconhecem que o mundo, a humanidade e as sociedades não avançam, não se desenvolvem orientadas por sentidos sem a reflexão crítica da Filosofia e das Ciências Sociais e Humanas.
Bolsonaro e seu ministro talvez sejam filhos diletos do caráter tosco do mundo moderno que deificou a técnica. Por isto, decidiram investir apenas nos cursos de caráter técnico. A técnica, que também é filha da Filosofia, tem um caráter limitado e surgiu para atender necessidades humanas. Por isto, a técnica nunca foi capaz e não será capaz de dar respostas razoáveis aos sentidos da existência humana. Se as religiões procuram suprir esta lacuna, elas mesmas têm um limite, pois a humanidade instrumentalizada pelas ciências e pela técnica, por paradoxal que possa parecer, requer respostas que nem uma e nem outra são capazes de fornecer. “Quem somos”, “de onde viemos” e “para onde vamos”, continuam ser questões essenciais e angustiantes para a humanidade. Novamente aqui, a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas, são chamadas a dar respostas e a fornecer aquilo que já havia sido anunciado por Platão: a Filosofia proporciona o uso do saber em proveito do homem.
Em grande medida, a crise do mundo moderno é a crise da capitulação aos meios, a crise da capitulação à técnica. O enfraquecimento da reflexão filosófica, sociológica, antropológica, política e histórica, por um lado, fez emergir legiões endemoniadas de pastores e bispos que arrecadam bilhões de dólares tangendo pobres e desesperançados. Por outro, perdeu-se a capacidade de refletir e agir segundo fins, proporcionando a morte dos sentidos éticos das sociedades. Refletir e agir segundo fins estava na origem das sociedades políticas e da Filosofia Política e tinham sido estabelecidas como exigências maiores da ação política por Aristóteles, São Tomás de Aquino, Maquiavel e tantos outros.
A perda de capacidade de dotação de sentidos para a existência humana e para as sociedades em particular mergulha o mundo em crises sem saída e em grandes riscos como os da pobreza, os da desigualdade, os das injustiça, os das migrações, os das epidemias, os de novas guerras e, principalmente, o grande risco ambiental que é um risco que afeta as próprias condições de existência da humanidade.
A incapacidade de construção de sentidos faz com que a humanidade tenha perdido a consciência de seu destino trágico. Com isso, perdeu-se também a consciência de que a tarefa da humanidade na Terra consiste em completar a incompletude do mundo fazendo uso da reflexão, do conhecimento, da ciência e da técnica. Agir apenas segundo os meios, segundo a técnica, como querem os arautos da nova direita, significa optar por uma “infinitude má” e não pela universalidade boa, fundada nos Direitos do Homem. Submeter-se às soluções técnicas, desprovidas de reflexão crítica e orientadora, significa aceitar que as sociedades e a humanidade caminham cegamente num presente caótico desprovido de futuro, fechado em si mesmo. A técnica, por ser um meio e por limitar-se a funções instrumentais, precisa ser presidida pelo pensamento e pela reflexão crítica para não tornar-se mera potência do poder de dominação e de ganho dos mais fortes como é hoje.
Não por acaso, Bolsonaro, os seus e a nova direita atacam os Direitos Humanos em nome de um nacionalismo vazio de conteúdo, em nome de um xenofobismo perverso e desumano. A Declaração dos Direitos do Homem, surgida no final do século XVIII e sua ratificação no pós-Segunda Guerra, foi um marco decisivo para a perspectiva de humanização da humanidade e para a universalização da liberdade e igualdade. Este marco significou que o Homem, através dos seus consensos fundados nos direitos, e não em Deus, nos costumes, nas supostas leis históricas ou na vontade arbitrária de ditadores e tiranos são os fundamentos das leis humanas.
Não é por acaso que Bolsonaro e os seus odeiam os Direitos Humanos. Os Direitos Humanos são instrumentos de libertação das camadas oprimidas da tutela dos grupos privilegiados das sociedades. Eles são instrumentos de contenção do arbítrio e da violência dos poderosos. Eles são instrumentos das lutas por liberdade, igualdade e justiça, valores inarredáveis para o desenvolvimento da perspectiva de uma universalizante boa das sociedades e da humanidade.
Aldo Fornazieri – Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).

sexta-feira, 26 de abril de 2019

Ferrajoli: É escandaloso como as instituições foram usadas no golpe contra Lula e Dilma

Um dos juristas mais renomados do mundo, o italiano Luigi Ferrajoli disse, durante evento internacional em solidariedade a Lula, que a prisão do ex-presidente e o impeachment de Dilma Rousseff foram frutos de um processo de perseguição política deflagrado por meio do uso das vias judiciais. Para Ferrajoli, o mais preocupante e “escandaloso” é que o lawfare parece ter se tornado método para se chegar ao poder no Ocidente pós guerra, colocando em ameaça as democracias.

Em vídeo de cerca de 3 minutos que circula nas redes sociais, Ferrajoli começa analisando a sentença do caso triplex. Para o jurista, o processo contra Lula “é vergonhoso por muitos motivos, não apenas pela falta de provas, não apenas pela aceleração do processo para impedir Lula de se candidatar, mas também por uma característica escandalosa, a total falta de imparcialidade.”



Fonte: Brasil 247

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Significado Político Teológico da Morte de Jesus.

Pe. Benedito Ferraro




“Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado…”

Nas formas mais antigas do Símbolo Apostólico, encontramos a inserção da morte de Jesus na História. No Símbolo Apostólicose professa: “Padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado”[1].Também o Credo Niceno-constantinopolitano o afirma: “Também por nós foi crucificado sob Pôncio Pilatos; padeceu e foi sepultado”[2]De acordo com o Dicionário Aurélio, o termo padecer significa: “Ser afligido, atormentado, martirizado por, sofrer, suportar, aguentar, sofrer dores físicas”. Éimportante notarmos, pois, que esta evocação do Credo de nossa fé mostra que a morte de Jesus na cruz é histórica, fruto de procedimentos históricos e, por isso mesmo, o fato mais bem atestado de todo o Novo Testamento. Mesmo sabendo que os textos evangélicos são produções das comunidades para relançar o Kerygma, eles mostram a morte de Jesus baseada numa acusação política (cf. Lc 23,2-5; Mt 26,63; Jo 19,12-16; At 10,34-43), fruto de tensões econômicas, sociais, políticas e religiosas (cf. Mc 2,1-36; 7,1-23; 11,1-12,44).Além do testemunho canônico, a morte de Jesus na cruz éatestada por vários textos apócrifos[3]Também vários historiadores extrabíblicos, como Flávio Josefo, Tácito, Suetônio, Plínio, o Moço, testemunham esse fato. Queremos evocar dois textos que nos parecem significativos para a nossa reflexão. O primeiro é de Flávio Josefo: “Quando Pilatos, ao saber que ele havia sido acusado pelos homens mais influentes entre nós, condenou-o à crucificação, aqueles que o amavam em primeiro lugar não desistiram de sua afeição por ele… E a tribo dos cristãos, assim chamados por causa dele, não desapareceu até hoje”[4]. O segundo texto é de Tácito: “Cristo, o iniciador do nome, foi condenado à morte no reinado de Tibério, por sentença do procurador Pôncio Pilatos, e a perniciosa superstição foi reprimida naquele momento, para depois surgir mais uma vez, não apenas na Judeia, pátria da doença, mas na própria capital, onde todas as coisas horríveis ou vergonhosas do mundo se juntam e encontram eco”[5]Desse modo, seguindo o testemunho dos textos evangélicos e neotestamentários canônicos, assumindo valor relativo presente nos textos extracanônicos, e levando em consideração a palavra dos historiadores antigos, percebemos com muita nitidez que a morte de Jesus na cruz é atestada e relacionada com as questões presentes em sua realidade histórica e social. Quando, pois, se tenta desvincular a morte de Jesus de seu contexto histórico-político-social-religioso, certamente corremos o risco de não compreendê-la e seu significa­do certamente será facilmente manipulado. Em segui­da ressaltaremos alguns pontos que nos ajudarão na compreensão do significado político-teológico da morte de Jesus:
a)    Jesus é condenado por Pôncio Pilatos como zelotaIsso revela a mão dos romanos e a dimensão política presente nessa condenação à morte de cruz, nesse processo de eliminação de um “líder popular[6],pois, segundo o caráter judiciário da época não era permitido aos judeus a declaração de sentença de morte, direito reservado aos romanos que dominavam a Palestina.
b)    A morte de Jesus éexperimentada como um escândalo a ser superado pelas primeiras comunidades (cf. 1 Cor 1,17-31; At 1,6), pois sua mensagem do Reino era carregada da esperança messiânico-apocalíptica, que prenunciava a mudança do “éon”, do “presente século”, da “sociedade perversa” eo anúncio da “Nova Terra e Novos Céus”.
c) É a ressurreição que dá sentido à morte de Jesus (cf. Jo 20,30-31; Lc 24,13-35; At 2,36), recuperando o significado da prática de Jesus na Palestina do Primeiro Século e colocando-o definitivamente na história, superando o fracasso da cruz e entronizando-o no Reino da Glória como grande vencedor e grande Testemunhada vitória da vida sobre a morte.
1. A dimensão política da prática histórica de Jesus
Para compreendermos o significado político da morte de Jesus, temos de levar em conta alguns aspectos importantes da Palestina do I Século. A Palestina era uma terra dependente. Os romanos exerciam um domínio muito grande sobre a economia, sobre a política e também, mesmo respeitando alguns aspectos da religião judaica, sobre a religião dos judeus. O pagamento dos impostos, suspenso a partir da guerra dos Macabeus (cf. 1 Mc: 13,37.39-41), era muito grande, e, junto com outras taxas, chegava a ultrapassar a metade da produção dos agricultores a partir de 63a.C.[7]. Além dessa opressão político-econômica, a população tinha de enfrentar o peso da exclusão por causa do sistema de pureza, que inviabilizava a salvação para os pobres, os marginalizados, que não podiam cumprir todas as exigências da lei (cf. Jo 7,49). É nesse clima que Jesus entra no cenário da Palestina do seu tempo. Tempo carregado de expectativas apocalípticas e messiânicas. Tempo em que o povo esperava pela mudança de “mundo”.
1.1. O anúncio do Reino
O anúncio do Reino, feito por Jesus de Nazaré e seu grupo de seguidores, para ser bem compreendido, deve ser visto a partir da realidade de liberdade cerceada em que vivia a Palestina do I Século. Para enfrentar essa situação de dominação econômica, de opressão política e de exclusão sociorreligiosa, o anúncio da chegada do Reino (“Basileia”)[8] soava como uma grande reviravolta para os “Am-ha-ares”,“os simples da terra”(cf. Mc 1,4-20; Lc 4,16-30; 1,46-56; 16,19-31; Mt 25,31-46). O grupo de Jesus se inseria no quadro dos movimentos populares da época, movimento de resistência em defesa das tradições e cultura do povo e tinha como preocupações sociais a eliminação do tributo a Roma (cf. Mc 12,13-17; Lc 23,2-5), bem como a defesa do direito à terra e a proclamação do “ano da graça do Senhor”, o “anojubilar”,com o perdão das dívidas e a restituição das terras a seus antigos donos, como tradição vinda dos pais, dos antepassados (cf. Lc 4,16-19; Mc 1,4-20; cf. Lv 25,8-17; Dt 15,1-15). Tanto João Batista quanto Jesus de Nazaré engajaram-se num programa de revolução social e subversão política em nome do Deus judeu.Ambos são reconhecidos como profetas pelo povo (cf. Mt 11,9;14,5; 21,26; Mc 11,30-32; Lc 1,76; Jo 9,17; Mt 16,14; 21,11.46; Mc 6,15; Jo 4,19) e ambos anunciam a chegada do Reino de Deus e os dois são condenados à morte por causa de sua prática histórica. Jesus entra na história por causa do Reino, é perseguido por causa do Reino e é morto por se apresentar como o portador do Reino[9].
1.2. O Reino e a vida dos pobres e excluídos
O anúncio do Reino, feito por Jesus, proclama uma reviravolta na compreensão da salvação na Palestina do I Século. Os pobres e marginalizados, devido ao sistema de pureza, já estavam condenados por antecipação. Jesus se contrapõe ao sistema de pureza e anuncia a salvação aos pobres e mulheres marginalizadas, que vão entrar no Reino, no lugar das “autoridades”, que se julgam como os puros e dignos (cf. Mt 21,28-32)[10]. Nesse sentido, o anúncio da chegada do Reino significa uma mudança real na vida dos pobres e excluídos, pois começam a ter acesso à salvação e não são mais responsabilizados como pecadores por sua situação de vida.
Jesus não culpa as vítimas e, por isso mesmo, desnuda o preconceito contra os pobres presentes no sistema de pureza — que acabava sendo o grande legitimador do status quo. Não há dúvida alguma de que esse confronto de Jesus com a estrutura da sociedade da época o leva à morte. Como líder popular, retomando as raízes do direito à terra, se confrontava com a estrutura latifundiária dominada pelos romanos, que se arvoravam em donos da terra; como profeta esperado pelo povo sedento de libertação, acabou confrontando-se com a interpretação da Lei feita pelos doutores e escribas (cf. Mc 2,1-3,6); chocou-se com a compreensão das tradições (cf. Mc 7,1-23) e criticou o Templo, que terminou sendo o legitimador da apropri­ação do excedente produzido pelo povo através da cobrança de impostos (cf. Mc 11,15-18; 12,1-12).
2. Quem mata Jesus?
Essa pergunta nos leva a procurar as causas históricas da condenação de Jesus à morte de cruz. Elas estão enraizadas no contexto sócio-histórico da Palestina do I Século. Jesus é alguém que tenta enfrentar o processo de opressão e exclusão dominante na sua época, quer por parte dos romanos, quer por parte da classe dirigente dos judeus que se aproveitava da situação. Não podemos nos esquecer de que tanto Jesus como seus primeiros seguidores são judeus e procuram retomar as raízes do judaísmo, pois sua esperança estava baseada no Deus que libertou o povo do Egito (cf. Ex 3,7-10; 20,1-20). A condenação de Jesus à morte, e morte de cruz, é fruto das tramas históricas provenientes do confronto de práticas: a prática do Império, da qual também participavam dirigentes do povo judeu, e a prática messiânica de Jesus, que era seguida por seus discípulos e posteriormente por seus seguidores, movidos pela fé na ressurreição[11].
Sabemos que toda e qualquer pretensão messiânica tinha, na Palestina do I Século, uma significação essencialmente política. Era considerada crime de lesa-majestade e, portanto, passível imediatamente de morte. A repressão dos romanos é sempre violenta. Basta observarmos alguns fatos relatados por Flávio Josefo nas Antiguidades Judaicas: No governo de Herodes, entre 37 a 4 a.C., foram queimados vivos dois fariseus e quarenta de seus alunos (AJ. XVII 6,2- 4;9,1); com Arquelau (4 d.C.), houve um massacre de 3.000 pessoas (AJ. XVII 8,4; 9,1-3). Nesse mesmo período, Varo, o general romano, manda crucificar 2.000 rebeldes ao redor de Jerusalém (AJ. XVII 10,8-10)[12].Os romanos não admitem absolutamente nenhuma tentativa de mudança. Tudo indica que o mesmo tenha acontecido a Jesus. A união de interesses entre romanos e dirigentes judeus acabou por definir sua condenação. Esta parece ser a conclusão de J. D. Crossan: “Caifás era o sumo sacerdote judeu de 18 a 36 d. C. Num século em que tais autoridades ficavam no cargo no máximo quatro anos, ele permaneceu dezoito… Devemos presumir que os romanos e Caifás trabalhavam em conjunto porque, enquanto Valério Grato, o predecessor de Pilatos como governador, começou dispensando Ananus I como sumo sacerdote e em seguida designou quatro outros entre 15 e 18 d.C., Caifás durou não apenas oito anos sob Grato, como mais dez sob Pilatos”[13].
Lc 23,2 deixa entrever claramente que a morte de Jesus tem uma dimensão política bem nítida: “Começaram a acusação, dizendo: ‘Achamos este homem fazendo subversão entre nosso povo, proibindo pagar tributo ao imperador, e afirmando ser ele mesmo o Messias, o Rei’”. Também em At 5,34-39, fica patente que a reação dos romanos contra toda e qualquer tentativa de modificação da ordem vigente era imediata e violenta: pena de morte! Tudo indica que com Jesus não tenha sido diferente: “A morte de Jesus por execução sob Pôncio Pilatos é mais certa do que qualquer outro fato histórico”[14].
3. Por que Jesus morre?
Essa questão nos coloca na direção de busca de sentido da morte de Jesus. O próprio Jesus nunca buscou a sua morte, mas a sentiu como consequência de sua prática histórica. Sendo discípulo de João Batista, que havia sido assassinado, não deixaria de compreender que, colocando-se no seu seguimento, certamente teria de enfrentar o mesmo fim. Isso parece estar muito presente nos textos evangélicos que procuram retratar a consciência de Jesus frente à perseguição: “Jerusalém, Jerusalém, você que mata os profetas e apedreja os que lhe foram enviados” (Lc 13,34). Certamente Jesus compreende sua morte à luz da tradição do martírio dos profetas. No entanto, são as comunidades que tentam estruturar o sentido da morte de Jesus, para poder ultrapassar o fosso causado pela morte. Aqui trabalha a fé pascal e aponta a vitória da vida sobre a morte, mesmo onde só apareceria fracasso.
3.1. A morte de Jesus vista como morte do Profeta
As primeiras comunidades cristãs compreendem a morte de Jesus na linha da tradição do martírio dos profetas. Compreendem-na diretamente articulada com a morte dos profetas (cf. Lc 11,49-51; 13,14; 1 Ts 2,14; At 7,51ss). Ao mesmo tempo, por estarem sendo perseguidas, as comunidades se compreendem no seguimento de Jesus.
3.2. A Morte de Jesus como morte do Messias Crucificado
Essa interpretação recorre ao Antigo Testamento, para mostrar que a morte de Jesus se insere na trama humana com toda a sua ambiguidade e que Deus nunca abandonou seu Filho. Claro que, diante das grandes expectativas messiânico-apocalípticas da época, a morte do Messias na cruz era um verdadeiro escândalo. Como compreender o Messias, que deveria vir com poder, acabar torturado, execrado, morto como vil impostor? A fé pascal busca a explicação a partir da presença de Deus na vida e na morte de Jesus: “Numa dimensão mais profunda, Deus não o abandonou. Estava com ele no sofrimento e na morte; não o abandonou, permaneceu com ele na morte, de tal forma que a ressurreição mostrou presença de Deus nele. A ressurreição revela o escondido: o que era escandaloso para os outros se iluminou pela ressurreição. As profecias da morte e da ressurreição querem deixar isso bem claro. Começou-se a ver tudo a partir de Deus: a atuação de Jesus, sua atividade missionária, sua morte e sua ressurreição. Deus estava agindo salvificamente em Jesus, no seu caminho, não exclusivamente na morte, mas em tudo o que lhe aconteceu, fez, falou e viveu. Em tudo, mesmo na morte”[15].
3.3. A Morte de Jesus como expiação e sacrifício
Há muitos textos do Novo Testamento que apontam para o sentido da morte de Jesus na linha da expiação pelos pecados e do sacrifício para a salvação do gênero humano. Essa interpretação acabou influenciando os relatos da Ceia (cf. Mc 14,22-25; Mt 26,26-29; Jo 6,51-58; 1Cor 11,23-26). Jesus é visto como o Justo, o Inocente, que com sua morte estabelece uma nova relação entre o ser humano e Deus. Sua morte é vista como redentora, expiatória, sacrifical. Alcança o perdão dos pecados e inaugura uma nova e definitiva aliança de Deus com seu povo.
3.4. A morte de Jesus como ato de solidariedade
Muitos textos do Novo Testamento apontam na direção da morte de Jesus como um ato de solidariedade e criador de solidariedade. Sua morte, livre e solidária, é apontada como dom de si(cf. Jo 3,16;12,49-50), como dom de amor (cf. Jo 10,11.15; 15,13),como domgratuito (cf. 1Jo 3,16).Como acontecimento gerador de solidariedade, a morte de Jesus, a partir desta interpretação, exige o seguimento. Ela nos liberta da Lei e mostra que estamos livres para amar. Liberta-nos da falsa imagem de Deus e do terror paralisante e torna-nos corresponsáveis pela implantação da justiça no mundo. O Espírito do Ressuscitado nos é dado para podermos refazer, na história, o caminho de Jesus.
4. A Desvinculação da morte de Jesus do seu contexto histórico e a exigência de sacrifícios pelo Mercado
O salto que estamos dando parece ser muito grande. Entretanto, não temos, neste espaço, a possibilidade de olhar como a tradição teológica pensou a morte de Jesus no decorrer desses quase dois mil anos de história do cristianismo. No entanto, queremos mostrar que a separação da morte de Jesus de suas causas históricas podem desembocar em consequências drásticas para a fé cristã. É isso que queremos refletir neste momento, tentando compreender a quem éque interessa esse modo de procedimento, frente à exigência de sacrifícios que o atual desenvolvimento do Mercado está exigindo.
Há uma afirmação fundamental presente na nossa profissão de fé e que não podemos deixar de lado sem comprometer o mistério da encarnação: “E por nós homens-mulheres (‘antrópous’), e para nossa salvação, desceu dos céus e se encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria, e se fez homem[16]. Isso quer significar que Jesus entra na conflitividade humana e sua vida e morte só podem ser compreendidas dentro do contexto sócio-histórico de sua época. Como afirma a Gaudium et Spes 22: “Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, agiu com vontade humana, amou com coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, exceto no pecado”.
Toda tentativa de tirar Jesus das implicações econômicas, políticas e sociais de sua época é um atentado contra a encarnação. É uma nova forma de docetismo que nega o fato de Jesus ter assumido verdadeiramente a história humana. Segundo os Evangelhos, Deus não quer que o Filho morra para “satisfazê-lo”; quer que ele não se evada magicamente da condição humana, mas que seja coerente e que assuma a conflitividade de sua história até o fim, como consequência da opção pelos pobres, oprimidos, marginalizados e excluídos de seu tempo[17]. Desvincular a morte de Jesus das suas motivações humanas e causas históricas é favorecer uma má compreensão do sentido desta morte como simplesmente um “destino trágico”ou “determinismo”que isentam todos de qualquer responsabilidade frente ao crime cometido. Para as autoridades romanas, a morte de Jesus é compreendida como manutenção da ordem do Império, que era “sagrada e mantida pelos deuses” e que não poderia ser, de modo algum, atacada. Eis como Flávio Josefo mostra a impossibilidade de enfrentá-los, pois lutar contra os romanos seria lutar contra Deus: “A fortuna, de fato, tinha de todos os cantos vindo para eles (romanos), e Deus, que percorrera a rota das nações, trazendo a cada uma o bastão do império, agora descansava sobre a Itália… Vocês não estão guerreando contra os romanos apenas, mas também contra Deus… A Divindade escapou dos lugares sagrados e assumiu Sua posição ao lado daqueles contra quem vocês agora estão lutando”[18].Para os dirigentes judeusa morte de Jesus é vista como cumprimento da Lei: “Nós temos uma lei, e segundo esta lei ele deve morrer, porque se fez Filho de Deus”(Jo 19,7). Na verdade é uma forma de “sacrifício” para “purificar” a cidade. E é também uma forma de manutenção do status quo favorável ao grupo dominante: “Vocês não sabem nada. Vocês não percebem que é melhor um só homem morrer pelo povo, do que a nação inteira perecer?”(Jo 11,49-50). Estamos diante da legitimação do sacrifício pela Lei e que encobre toda e qualquer responsabilidade (cf. Lc 4,22-30).
Atualmente, estamos diante de uma sociedade que tenta divinizar o Mercado. Os dominantes de hoje fazem muitas promessas, tentando conquistar a cabeça e o coração das pessoas. Há um processo de divinização e sacralização do MercadoPor isso, os dominantes exigem a fé no Mercadoque por sua vez promete realizar a felicidade de todos. Proclamam que “fora do Mercado não há Salvação”!Tudo o que possa contrariar o livre desenvolvimento do Mercado é perigoso e deve ser imediatamente extirpado. Na verdade, é isso que estamos presenciando no Brasil e na América Latina com a implementação do sistema neoliberal: crianças de rua, índios, favelados, presidiários, trabalhadores sem-terra, são “estorvo” e devem ser “removidos”, pois estão atrapalhando o livre desenvolvimento do Mercado. Nesse sentido é possível compreender a lógica desse sistema: a morte dessas pessoas é o sacrifício exigido pela dinâmica do Mercado para resolver a crise econômica brasileira. A eliminação das crianças da Candelária, o massacre dos Ianomâmi, dos favelados de Vigário Geral, dos presidiários do Carandiru, dos sem-terra de Corumbiara, segue a lógica da lucratividade: essas pessoas só dão prejuízo e por isso não têm o direito de viver. Quem as mata está prestando um serviço à nação, pois está “limpando a cidade e colaborando com a sociedade”.As vítimas se tornam culpadas. Até as crianças entram na lógica da eliminação, pois “ou são trombadinhas ou se tornarão! E por isso é preciso eliminá-las imediatamente para preservar o futuro da sociedade!”.
Por que estamos fazendo a aproximação, da morte de Jesus com a morte dos excluídos de hoje? Exatamente para mostrar que desvincular a morte de Jesus de suas causas históricas pode nos levar à legitimação do sacrifício como algo inevitável. Do mesmo modo, se desvincularmos a morte das crianças de rua, dos presos, dos índios, dos favelados e dos sem-terra de suas motivações econômicas e políticas, estaremos também legitimando a lógica da eliminação. Ninguém se sente responsável por esses massacres e a própria sociedade nada faz para que os responsáveis sejam identificados. Há um acordo tácito, escondido, que é a aceitação do sacrifício de inocentes e vítimas de uma organização social injusta e insolidária.
5. Grito de esperança dos excluídos
No decorrer desses quinhentos anos de história da América Latina e Caribe, notamos um processo permanente de invisibilização dos pobres. Isso acontece com os índios e se traduz normalmente nas nossas conversas, nos escritos dos alunos das nossas escolas primárias, onde tudo o que se refere aos povos indígenas está sempre no passado. “Existiam… Viviam… Construíam…” Esconde-se a presença de milhões de índios na América Latina e, no Brasil, tenta-se a todo o custo eliminá-los ou deslegitimá-los em suas reivindicações. No tocante aos negros, o próprio senso do IBGE procura descaracterizar seu número, para não revelar o grau de negritude do Brasil. Do mesmo modo, os moradores de rua são invisibilizados. As mulheres também são invisibilizadas em seu trabalho diário: “Não trabalham!”. Atualmente, o capitalismo neoliberal procura invisibilizar os trabalhadores, através da progressiva desmaterialização da riqueza. Hoje a riqueza é imaterial. Dessa forma, o trabalho visibilizado está perdendo seu valor, quer no campo, quer na cidade. O que conta hoje éo “trabalho” das “máquinas inteligentes”!
No entanto, os pobres e excluídos continuam a gritar. No dia 7 de setembro de 1995, o Setor Social da CNBB promoveu o “Grito dos Excluídos.Esse grito traz uma longa trajetória, pois desde Medellín (1968) já estava presente em seu tom profético: “Um clamor surdo brota de milhões de homens (mulheres), pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte[19]Também Puebla (1979) continua denunciando o não atendimento desse grito: “O clamor pode ter parecido surdo naquela ocasião. Agora é claro, crescente, impetuoso e, nalguns casos, ameaçador[20]Esse grito dos excluídos continua a ressoar. Com mais força nos países pobres do mundo (América Latina e Caribe, África e Ásia), mas ele começa a ser presença também nos países ricos (Estados Unidos, Inglaterra, França, Canadá). Os excluídos da Nova Ordem Mundial, que na verdade é uma “Desordem”, já se fazem sentir em todos os países. Esse grito está apontando para novas saídas que possam resgatar a dignidade da pessoa humana e de todas as pessoas, porque à medida que haja uma só pessoa humana sendo vilipendiada, todas as pessoas estão sendo desrespeitadas nela. O grito é para que todas possam ser incluídas na dinâmica da vida. Para isso é que Jesus veio ao mundo: “Eu vim para que tenham vida e tenham em abundância”(Jo 10,10).
Para que possa haver essa inclusão de todos, será necessário refazer duas alianças básicas e fundamentais: aAliança com a Terra e a Aliança com o Trabalho. O atual desenvolvimento do capital internacional é destrutivo e está depredando a natureza, o habitat de todos nós. Se não houver respeito profundo à Mãe Terra, como podemos aprender com os povos africanos e indígenas, certamente a humanidade vai arcar com horríveis consequências e os pobres e excluídos sofrerão ainda mais, pois, nesse processo de depredação, quem mais sofre são os marginalizados. Se houver falta de água, é o pobre da periferia o primeiro a não ter água! Se houver falta de alimento, é o excluído do trabalho a não ter acesso a ele! Se há catástrofes naturais, provenientes da diminuição da camada de ozônio, certamente serão os pobres que terão suas casas invadidas pela água, devido ao aumento de calor na terra!
Com o processo de entrada das novas tecnologias, o trabalho humano está perdendo sua centralidade. Mas, sem trabalho, a vida se torna inviável. Por isso, uma Nova Aliança com o Trabalho é de fundamental importância no presente de nossa história. O grito dos excluídos aponta na direção de que haja trabalho para todos. E, para isso, haverá necessidade de mudança no atual enfoque do trabalho. Sabemos que a produtividade aumenta com as novas tecnologias, que há grande produção de riquezas, que a lucratividade atinge níveis nunca antes imaginados. No entanto, o desemprego estrutural ronda todos os países pobres ou ricos. Certamente essa Nova Aliança com o Trabalho exigirá ocupação para todos, onde todos trabalharão menos horas, mas com chance de trabalho para todos. E com o tempo livre maior, o ser humano terá de ser reeducado para tornar a vida mais agradável, depois de assegurar que ela seja viável e possível para todos.
Esse é o grito que surge dos pobres e excluídos da terra. E esse grito se alicerça na certeza de que a vida vence a morte. Esse grito está enraizado na vida, na prática e na morte de Jesus, que foi coerente até o fim com seu projeto de libertação dos pobres e excluídos e que, pela sua ressurreição, foi confirmado pelo Deus da Vida (cf. At 2,36). Na luta dos pobres e excluídos do mundo inteiro temos o eco do testemunho de Jesus Cristo, o Vivente: A Vida é mais forte do que a Morte! “O Povo é maior do que o Mercado, porque Deus é maior”!
(Carta do XI Encontro de CEBs do Regional Sul I).

[1] Dz., 7; Catecismo da Igreja Católica, nº 184.
[2] Dz., 86; Catecismo da Igreja Católica, nº 184.
[3] Cf. RAMOS, L. Fragmentos dos Evangelhos Apócrifos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1989, p. 106: “Levaram para lá dois malfeitores e crucificaram o Senhor no meio deles” (Evangelho de Pedro). No Evangelho de Nicodemos podemos ler: “Depois de proferir a sentença, o governador mandou que, como título, se escrevesse no alto da cruz, em grego, latim e hebraico, a acusação que lhe era feita, de acordo com o que lhe disseram os judeus: É rei dos judeus” (RAMOS, L. A paixão de Jesus nos escritos secretos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1991, p. 51). Na Anáfora de Pilatos também se fala na crucificação: “É este o homem que Herodes, Arquelau, Filipe, Anás e Caifás, de acordo com todo o povo, me trouxeram, pedindo-me, em altos brados, que fosse condenado. Ordenei, então, que, depois de ter sido flagelado, fosse crucificado…”(RAMOS, L. O drama de Pilatos. Coleção Bíblia Apócrifa, Vozes, Petrópolis, 1991, p. 101).
[4] JOSEFO, F. Antiguidades Judaicas 18,63,citado por CROSSAN, J. D. Quem Matou Jesus?Rio de Janeiro, Imago, 1995, p. 18 (o grifo é nosso).
[5] TÁCITO. Anais 15,44, citado por CROSSAN, J. D., op. cit., p. 18.
[6] Cf. MESTERS, C. “Os profetas João e Jesus e os outros líderes populares daquela época”, em RIBLA, 1 (1988/1), pp. 72-80.
[7] Cf. MESTERS, C., op. cit., p. 74.
[8] Cf. CROSSAN, J. D., op. cit., p. 78.
[9] Cf. JEREMIAS, L. Teologia do Novo Testamento, 1ª Parte. A Pregação de Jesus, Paulus, SP, 1977, p. 181.
[10] Cf. SEGUNDO, J. L. O Homem de Hoje diante de Jesus de Nazaré, II/I,Paulinas, SP, 1985, pp. 133-141.
[11] Cf. ECHEGARAY, H. A Prática de Jesus,Vozes, Petrópolis, 1982, pp. 111-159. Cf. especialmente o quadro da p. 143.
[12] Cf. MESTERS, C., op.cit., pp. 75-76.
[13] CROSSAN, J. D., op. cit., p. 175.
[14] CROSSAN, J.D., op. cit., p. 17.
[15] BOFF, L. Paixão de Cristo — Paixão do Mundo, Vozes,Petrópolis, 1977, p. 37.
[16] Catecismo da Igreja Católica, nº 84; dez., p. 86.
[17] Cf. BRAVO, C. G. Jesús, Hombre en Conflicto, Sal Terrae, Santander, 1986, pp. 227-228.
[18] JOSEFO, F. A Guerra dos Judeus 5.367, 378, 412, citado por CROSSAN, J. D., op. cit., p. 27 (o grifo é nosso).
[19] MEDELLÍN, Pobreza da Igreja, nº 2.
[20] PUEBLA, nº 89.

Pe. Benedito Ferraro

Fonte: Nos Caminhos de Francisco wordpress

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Jesus e a páscoa da subversão – Ceia do Senhor – Francisco Cornélio Rodrigues


Por padre Francisco Cornélio Rodrigues (publicado originalmente no blog Por causa de um certo Reino)
A liturgia da Quinta-feira Santa propõe, todos os anos, a leitura de João 13,1-15, texto que narra o episódio do lava-pés. Essa cena é exclusivo do Evangelho segundo João e, certamente, é uma das passagens mais significativas de todo o Novo Testamento. Desde os primeiros séculos, tem marcado o cristianismo, recebendo diversas possibilidades de interpretação. Antes de tudo, podemos dizer que é um texto comprometedor, pois mostra que, no ápice da sua existência terrena, Jesus propôs o serviço, motivado pelo amor, como o principal sinal distintivo de pertença a si; o cristianismo, portanto, não pode ignorar esse fato. A localização do texto e o contexto da cena reforçam ainda mais a sua importância: esse episódio serve para delimitar a divisão clássica do Evangelho segundo João em dois livros, “Livro dos Sinais” (Jo 1 – 12) e “Livro da Glória” (Jo 13 – 21), e faz João introduzir a narrativa da paixão com um gesto tão marcante de Jesus.
Apresentamos uma pequena contextualização para, em seguida, nos voltarmos diretamente para o texto. A princípio, pode nos causar espanto a diferença entre João e os demais evangelhos quando se trata da última ceia de Jesus com seus discípulos. Ora, ao contrário dos sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), que dedicam poucos versículos à ceia, João dedica nada menos que cinco capítulos: 13, 14, 15, 16 e 17. Ao longo desses capítulos, ele apresenta uma longa e profunda catequese de Jesus, ministrada com gestos e palavras, numa espécie de testamento, cujo tema central é o amor e o serviço, apresentados como únicos sinais distintivos da comunidade cristã. No Evangelho de João, não há nenhum aceno à “consagração” do pão e do cálice, como nos demais; por sinal, durante a ceia, o pão só é mencionado na descrição da traição de Judas (cf. 13,18.17.26.27.30). Essa ausência de referências ao pão e sua “consagração” pode ser explicada pelo fato de que João já havia apresentado em outra ocasião: após o sinal da “multiplicação dos pães” (cf. 6,1-15), o evangelista apresentou um longo discurso de Jesus se auto apresentando como o “pão da vida” (cf. 6,26-66). Por isso, já não havia mais necessidade de fazer uma nova catequese sobre o pão e sobre a entrega de Jesus como alimento, uma vez que essa já tinha sido feita. O texto que a liturgia propõe é a primeira parte do longo relato da ceia.
O texto começa com um indicativo teológico-temporal importante: “Antes da festa da páscoa” (v. 1a). O evangelista não pretende negar o contexto pascal no qual Jesus ceou com seus discípulos, mas pretende diferenciar, ou seja, quer dizer que a páscoa celebrada por Jesus já não é mais a mesma do templo. A páscoa de Jesus não exige ofertas e sacrifícios, não é instrumento de exploração como se praticava no templo. Celebrando antes, Jesus substitui: aquela que será celebrada um ou dois dias depois pelos praticantes da religião oficial perdeu a sua validade, está caduca e vencida. Na páscoa do templo, o centro das atenções é a morte, o sangue derramado com a imolação dos cordeiros, enquanto na páscoa de Jesus com sua comunidade se celebra o triunfo da vida em forma de serviço, a mais eficaz manifestação visível do amor; nessa, não há morte, há doação de vida por amor. Morte é coisa da antiga aliança; na nova aliança, há doação de vida. Com essa introdução, o evangelista alerta para uma novidade: Jesus inaugura uma nova páscoa, subversiva, por sinal; é essa que a comunidade cristã deve celebrar.
Ao longo de todo o Evangelho, João criou um clima de suspense em relação à “hora de Jesus” (cf. 2,4; 12,23). Pois bem, essa hora chegou: “sabendo Jesus que tinha chegado a sua hora” (v. 1b). É a hora de Jesus glorificar ao Pai, não com ritos, mas com a doação livre da sua própria vida. O Pai que não se sentia glorificado com o falso culto praticado no templo de Jerusalém, uma vez que esse fora transformado em casa de comércio (cf. Jo 2,16ss), recebe de Jesus o verdadeiro culto: “tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (v. 1c). O amor de Jesus é ilimitado e, por isso, é “até o fim”.  “Amar até o fim” significa a intensidade do amor, e não o seu término. Quer dizer que Jesus amou de modo extremo, intenso, e continua amando, uma vez que, ressuscitado, vive entre os seus na comunidade. Das falsas aclamações e ritos vazios celebrados no templo, o Pai estava cansado. Jesus recupera a essência do culto e a transmite à comunidade: o amor-serviço.
Continuando, diz o evangelista que “Estavam tomando a ceia” (v. 2a). A ceia não representa apenas o consumo de alimentos, mas significa comunhão e intimidade, sobretudo no contexto pascal; é o momento primordial da vivência do amor-comunhão. Porém, Jesus realiza uma ceia alternativa ao ritual judaico. Nessa ceia de Jesus e da comunidade não há encenação, tudo é feito na maior sinceridade e transparência; por isso, o evangelista menciona o episódio lamentável da traição de Judas (cf. v. 2b): nada é imposto. A comunidade é livre para acolher ou não o amor incondicional e extremo de Jesus e, portanto, no seio dessa comunidade é possível que alguns o rejeitem, como Judas outrora, e tantos nas gerações sucessivas. No entanto, a oferta de amor não diminui diante do risco de rejeição. Mesmo traindo, Judas continuou entre aqueles “amados até o fim”; ele perdeu a comunhão com Jesus quando abandonou o seu projeto e se aliou ao sistema dominante; o evangelista é enfático nesse sentido: “o diabo já tinha posto no coração de Judas, filho de Simão Iscariotes, o propósito de entregar Jesus” (v. 2bc). Ora, Jesus seria capturado, independentemente da traição de Judas, pois há muito tempo as autoridades religiosas e políticas o almejavam; daquela páscoa ele não passaria. O mal de Judas foi ter sido aliado e cúmplice do poder que gera morte e, ainda mais, movido por dinheiro. Sempre que o cristianismo permite alianças com grupos e sistemas de poder, sempre que silencia diante das injustiças, está permitindo que o “diabo seja posto em seu coração”.
A oferta do amor gratuito e intenso de Jesus pelos seus começou a se materializar quando ele “levantou-se da mesa, tirou o manto, pegou uma toalha e amarrou-a na cintura” (v. 4). Certamente, foi grande o espanto e a curiosidade gerada nos discípulos com essa iniciativa de Jesus. Tirar o próprio manto em público significava renunciar ao prestígio e à dignidade pessoal, conforme a mentalidade da época; amarrar uma toalha na cintura significava improvisar um avental e colocar-se em atitude de serviço, assumindo a condição de servo. O que se fazia somente por imposição, Jesus o faz voluntariamente. Com essa descrição, o evangelista deixa cada vez mais clara a oposição de Jesus à liturgia oficial do templo: a indumentária dos sacerdotes do templo eram um impedimento ao serviço, com tantos adornos; ao invés disso, Jesus usa um avental improvisado de uma toalha, mostrando que não pode haver impedimento para o serviço. Esse gesto ensina que na comunidade cristã o serviço prevalece sobre o rito.
Na sequência, o texto diz o que Jesus fez após deixar de lado o manto e pôr-se em atitude de serviço: “Derramou água numa bacia e começou a lavar os pés dos discípulos, enxugando-os com a toalha com que estava cingido” (v. 5). Assim como os leitores ainda hoje ficam perplexos com a descrição dessa cena, muito mais ficaram os discípulos que estavam com Jesus. Aqui devemos considerar o ambiente e a situação histórica na época: lavar os pés antes das refeições – embora o evangelista descreva o gesto acontecendo já durante a refeição – era uma regra básica de higiene no antigo Oriente, sobretudo, porque as estradas eram bastante precárias, as sandálias muito simples, o que deixava os pés sempre sujos, empoeirados. Além do estado permanente de sujeira dos pés, devido à simplicidade das sandálias e condições das estradas, as refeições não eram feitas em mesas altas como as de hoje, nem os comensais se sentavam em cadeiras, sobretudo nos ambientes mais simples. A mesa, geralmente, era apenas um tapete ou uma esteira estendida ao chão e, ao seu redor, sentava-se em almofadas ou diretamente no chão, o que deixava os pés muito próximos da comida. Por isso, lavar os pés antes das refeições era uma exigência básica de higiene.
O lava-pés era também um gesto de hospitalidade e acolhida: ao receber uma visita, o dono da casa oferecia, imediatamente, a água para lavar os pés. A grande novidade do gesto de Jesus está na sua autoria: no cotidiano, esse papel era próprio dos escravos; em ocasiões especiais, a mulher lavava os pés do marido, e o dono da casa lavava os pés de convidados ilustres, em sinal de respeito e reverência, mas isso era raro. Às vezes, também alguns mestres (rabis) exigiam que seus discípulos lhe lavassem os pés. Mas, no dia-a-dia, eram os escravos quem cumpriam esse serviço considerado humilhante. Ao fazer voluntariamente, Jesus inverte completamente os valores: sendo ele Mestre e Senhor (cf. vv. 13-14), fez o que era típico do escravo (ou do discípulo). Com esse gesto, Jesus diz que fica abolida a hierarquia na comunidade cristã, e a liturgia, enquanto rito, é substituída pelo serviço. Assim, ele ensinou aos discípulos de outrora e de sempre que eles devem estar dispostos a servir ao próximo em suas necessidades mais simples e básicas do dia-a-dia, inclusive nas mais humilhantes, como lavar os pés.
É claro que houve reação dos discípulos à atitude de Jesus. O primeiro a protestar foi Simão Pedro: “Tu nunca me lavarás os pés” (v. 8). Ora, para quem tinha deixado tudo, imaginando seguir um futuro “Rei de Israel”, deve mesmo ser chocante deparar-se com um “servo”. Por isso, o espanto e a negação; o que Jesus estava fazendo era inaceitável para quem tinha ambiciosas pretensões de poder. A reação de Pedro revela também a resistência dos oprimidos nos processos de libertação: as relações de igualdade parecem algo impossível para quem conheceu apenas um mundo dividido entre grandes e pequenos, súditos e chefes, e acabou naturalizando essas condições; Jesus com suas palavras e gestos quis exatamente mudar essa realidade e visão de mundo. O mundo desigual, imposto pelo sistema e respaldado pela religião, estava naturalizado na visão de Pedro; a isso, Jesus combate, pois essa mentalidade não cabe na sua comunidade, enquanto embrião de um mundo novo, justo, fraterno, igualitário e solidário.
O outro motivo para a resistência de Pedro foi o medo das consequências do gesto de Jesus: se o mestre lava os pés dos outros, os seus discípulos deverão fazer o mesmo. Por isso, Pedro só aceitou a atitude de Jesus em última instância: se não aceitasse não poderia mais fazer parte da comunidade: “Jesus respondeu: Se eu não te lavar não terás parte comigo” (v. 8b). Aceitar um mestre servo e se fazer servo com ele e como ele é condição para fazer parte da comunidade cristã. Após a insistência de Jesus, Pedro aceitou, mas não compreendeu: “Senhor, então lava não somente os meus pés, mas também as mãos e a cabeça” (v. 9). Com essa resposta, Pedro quis desviar o foco da proposta: quis transformar a atitude serviçal de Jesus em um novo rito de purificação, um a mais entre os muitos que os judeus já praticavam e que Jesus tanto combatia. Pedro não aceita a igualdade e não admite ter que servir ao próximo com a mesma intensidade com que Jesus servia. Ora, transformando a atitude do lava-pés em um novo rito de purificação, ele estaria se isentando do compromisso com o próximo e ganhando mais um mecanismo de dominação ideológica, contrariando o ensinamento de Jesus. Para fazer parte da comunidade de Jesus, ou seja, para ter parte com ele, é necessário aceitar a sua proposta de vida com a revolução de valores e as consequências que essa implica.
Mesmo com resistência nos discípulos, Jesus concluiu o seu gesto: “Depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus sentou-se de novo” (v. 12). Sentar-se à mesa era um direito exclusivo das pessoas livres. Sentar à mesa e servir eram papéis incompatíveis: quem servia não tinha direito de sentar-se, e quem sentava não se humilhava servindo. Jesus aboliu essas diferenças. Sentar-se de novo após o serviço é a consolidação de uma verdadeira revolução de valores, uma inversão de ordem: no banquete da vida, vivido e celebrado pela comunidade cristã, há espaço para todos, principalmente para os que servem. Não pode haver divisão de classes na comunidade, porque todos são iguais: o que senta à mesa, serve, e o que serve, senta à mesa. O que era papel do escravo, lavar os pés, é agora papel também da pessoa livre que pode levantar-se e sentar-se conforme a necessidade. As divisões hierárquicas não tem espaço na comunidade cristã, porque nessa prevalece o movimento de sentar-levantar-sentar para que as necessidades do ser humano sejam atendidas, desde as mais simples, como tirar a poeira dos pés, até as mais complexas, como dar a própria vida por amor.
Para os discípulos, não era fácil abraçar uma nova mentalidade, ainda mais tão revolucionária quanto a de Jesus. Com essa inversão de papéis, Jesus fazia desmoronar nos discípulos os planos de grandeza e projetos de poder que eles tinham cultivado até então. Ora, eles não sonhavam com uma mudança de sistema, um novo modo de organização para a sociedade e a religião. Queriam que as estruturas de poder continuassem as mesmas, mudando apenas as lideranças: ao invés dos romanos, que fossem eles, os discípulos do Messias, que controlassem a vida do povo, mas com os mesmos mecanismos de dominação: exército, impostos, divisões de classe e uso da violência quando a estabilidade estivesse ameaçada. Até os últimos momentos de convivência essa mentalidade prevaleceu. Por isso, Jesus dedicou tanto tempo na última ceia para catequizá-los e promover neles a consciência de uma nova ordem, partindo do seu exemplo: “portanto, se eu, o Senhor e Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns dos outros. Dei-vos o exemplo, para que façais a mesma coisa que eu fiz” (vv. 14-15).
Jesus em sua liberdade fez o papel do escravo para mostrar que na sua comunidade não pode haver distinção de classe: não há mais espaço para a escravidão, pois todos e todas são livres. O medo de Pedro consistia em não aceitar essa mudança de paradigma, como hoje muitos ainda resistem, preferindo fechar-se a uma mentalidade mais alinhada à religião do templo, duramente combatido por Jesus, e distante dos valores do Evangelho. Jesus celebrou, assim, a páscoa da subversão: substituiu o rito pelo serviço, criou uma comunidade alternativa igualitária, na qual tudo deve ser orientado a partir do amor-serviço. Dessa comunidade não pode fazer parte quem prefere alinhar-se aos poderes que impedem um mundo e uma sociedade compatíveis ao modelo igualitário e fraterno proposto por Jesus.

segunda-feira, 15 de abril de 2019

O antídoto contra o Bolsonarismo é fazê-lo falar, por Rita Almeida


GGN
Confrontar diretamente um discurso paranoico só o reforça, pois torna você apenas mais um inimigo a ser eliminado.


O antídoto contra o Bolsonarismo é fazê-lo falar

por Rita Almeida

Não derrotaremos Bolsonaro sem derrotar o Bolsonarismo. Nesse sentido, tenho pensado que a estratégia de luta a esse governo não deve ser para derrubá-lo, mas para dissolvê-lo, desconstruí-lo, desgastá-lo. Bolsonaro precisará ficar tempo suficiente para fazer o que se recusou a fazer na campanha: falar. Precisa falar para escancarar sua estupidez e incapacidade. E a sociedade brasileira também precisará de tempo para falar, a fim de expor e purgar todo o discurso fascista e de ódio que brotou por aqui nos últimos tempos.
Diante de tanto retrocesso, barbárie e imbecilidade, tenho me sentido sufocada, aviltada, enojada, como que descendo num poço que parece nunca chegar ao fundo. Ficava pensando que teríamos que subir tudo de novo, a fim de sair dessa situação, e isso me dava desespero, porque sentia a luz da saída cada vez mais distante. Mas, nos últimos dias, por ocasião de um sonho, comecei a pensar que nossa saída talvez não seja por cima, mas por baixo, pelo subterrâneo. Acho que vamos ter é que cavar mais até achar a rede de esgoto e mergulhar nela pra sair. Para vencer o discurso Bolsonarista, precisaremos mergulhar nele.

Mas, obviamente que, enquanto não cavamos fundo o suficiente, será necessário sobreviver a esse discurso que mata. Precisaremos, portanto, de pequenas rotas de fuga e de guetos que nos permitam nos fortalecer entre pares – como fizeram os quilombos. Precisaremos cuidar uns dos outros em grupos menores, fazer política miúda e esperar a melhor hora.
Não nos esqueçamos que o Bolsonarismo foi inventado, construído e fortalecido a partir do antipetismo. Criar um inimigo comum, já dizia Freud em 1923, é a estratégia mais fácil e simples para se liderar um grupo. Isso faz do governo Bolsonaro um governo essencialmente paranoico, e se assim for, quaisquer grandes movimentos para confrontá-lo e derrubá-lo só irá fortalecê-lo em sua estrutura paranoica. Confrontar diretamente um discurso paranoico só o reforça, pois torna você apenas mais um inimigo a ser eliminado. E como na paranoia não há racionalidade que possa sustentar o debate, o paranoico não tem problemas em crer que a única saída é mesmo eliminar o outro. Vide o nazismo.
Assim, tenho pensado que o enfrentamento a esse governo não será efetivo por meio de grandes movimentos explícitos ou unificados. Precisamos agir em várias frentes diversificadas, nas pequenas frestas e aberturas, nos meandros, no subsolo, na boca miúda. Precisamos de escárnio, deboche e denúncia. Precisamos escapar do confronto aberto que ameaça nossa vida e apontar os furos de um modo possível; Jean Wyllis e Marcia Tiburi estão corretos nas suas estratégias. Bate boca e lacração besta no Twitter sim, se é de lá que Bolsonaro e sua prole se dispõem a governar como se fossem a família real. A meu ver, Haddad e José de Abreu estão corretos nos seus confrontos
aparentemente bestas com a família Bolsonaro, nas redes sociais.
Já está claro que o governo não tem compromisso com a racionalidade, com a história, com a razoabilidade, com o debate político ou com a democracia, ele apenas espera se sustentar no poder com um percentual pequeno de aliados, igualmente paranoicos e limitados politicamente, o resto ele abaterá pela força, pelo medo ou pela bala. Precisaremos de estratégias não convencionais para lidar com esse governo; será preciso desconstruí-lo sem pressa, fazê-lo definhar. E eu suponho que, pelo voto, será a maneira mais interessante e eficaz de vencê-lo sem riscos de retorno do recalcado.
Até as próximas eleições, teremos que desvelar tudo que vínhamos varrendo pra debaixo do tapete e que propiciou a ascensão de Bolsonaro. Até lá, tudo o que pudermos fazer para obrigar o governo a falar e a se expor, será uma boa estratégia. Política é palavra. E política é exatamente o avesso do que Bolsonaro sempre pretendeu fazer. Quanto mais ele falar e se expor (ainda que às custas da nossa vergonha diária), quanto mais ele tentar explicar ou justificar suas mancadas e bizarrices, mais fraco se tornará seu discurso.
É importante que se entenda uma coisa: O discurso paranoico se desmonta quando precisa usar a palavra e se fortalece quando é convocado a usar a força. Por mais bizarro e estranho que possa parecer, Bolsonaro se fortalece ao disparar 80 tiros contra um cidadão comum e enfraquece quando é alvo de deboche por publicar golden shower.
Não estamos lidando com uma situação política comum, por isso, intuo que o embate político tradicional não funcionará nesse caso. A paranoia não se combate, se desconstrói devagar, fazendo-a falar e evidenciar suas contradições. Minha aposta é que sejamos como cupins silenciosos e persistentes a roer uma estrutura de madeira.
A palavra faz buraco.