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sábado, 20 de setembro de 2014

Aranha faz História. A torcida do Grêmio, não.

Crônica / Matheus Pichonelli
Carta Capital
 
Torcedores referendam as ofensas racistas ao vaiar a luta não do atleta, mas do homem. Um homem que se nega a fazer do episódio uma atração de circo. 
 
 
Aranha
 
 
Mário Lúcio Duarte Costa. Guardem este nome. Já vou chegar a ele. Antes, quero dizer que acompanhei, pela tevê, o fim da partida entre Grêmio e Santos, em Porto Alegre, pelo Campeonato Brasileiro. O empate sem gols revela o que foi o duelo, insosso, de resultado nem bom nem mau para nenhuma das equipes. Pelos relatos, descubro que o goleiro Aranha foi o melhor em campo, com ao menos duas boas defesas que garantiram o ponto fora de casa. A crônica esportiva termina aqui. A História, com H maiúsculo, não.
 
Aranha acabava de voltar ao palco onde, semanas atrás, fora hostilizado por ofensas racistas vindas de parte da arquibancada gremista. De lá saíram gritos e imitações de macaco. Eram uma referência à sua cor de pele, negra. O goleiro pediu a interrupção da partida, vencida pelo Santos por 2 a 0. Deixou o campo atordoado. "Dói", dizia ele à beira do campo.
 
Por não aceitar a ofensa, relatada aos árbitros da partida, Aranha criou constrangimento às autoridades esportivas. Elas se viram obrigadas a eliminar o Grêmio da Copa do Brasil devido ao comportamento de sua torcida.
 
Antes do reencontro de quinta-feira 18, no mesmo palco, um país inteiro passou a debater um tema ainda entranhado nas relações sociais. Tão entranhado que se naturalizou, a ponto de, muitas vezes, nem sequer incomodar.
Aranha se incomodou. E não fez questão de esconder.
 
Como preço, é provável que tenha passado alguns dos piores dias de sua vida. Depois daquele jogo, uma das torcedoras, flagrada aos gritos de "macaco" na arquibancada, passou a sofrer ameaças nas redes sociais. Foi demitida e teve a casa incendiada por um maluco. Ela não teve tempo de se arrepender ou calcular a dimensão de seu ato: o justiçamento de sempre, um erro em qualquer lado da história, tirava dela o direito de ser julgada por uma lei já existente. Cassara, com mandado próprio, o direito à vida da torcedora.
 
De repente, Aranha era o pivô de tanto ódio. Não fosse seu "melindre", a torcedora estaria a salvo, o Grêmio seguiria na Copa do Brasil e o racismo voltaria ao rol de temas "menores" de um país que, nas palavras de muita gente autorizada, tem problemas mais sérios para resolver. Entre os defensores da tese está o técnico do Grêmio, Luiz Felipe Scolari, que até ontem dirigia a seleção brasileira. Ele tratou a reação de Aranha como uma "esparrela", um estardalhaço promovido por quem tentava se vitimar para prejudicar alguém - no caso, os gremistas. Pelé, maior jogador de todos os tempos, também condenou o goleiro com argumentos do arco da velha: se ele, o Atleta do Século, tivesse de parar uma partida toda vez que era chamado de "macaco" não haveria mais futebol. Segundo ele, quanto mais se fala em racismo, mas ele se aguça.
 
Pelé, em seu tempo, não parou o jogo, o racismo voltou para debaixo do tapete, e a fatura segue nas costas de Aranha e seus contemporâneos, que hoje tentam interromper uma partida que deveria ter sido parada há muito tempo.
 
Não bastasse tanta ofensa - à sua cor, ao seu caráter e à sua inteligência - Aranha voltou a campo ontem como vilão. Desta vez, não ouviu xingamentos racistas das arquibancadas, mas vaias. Muitas. Cada uma delas era o triunfo do direito de ofender sobre o direito de se sentir ofendido. Ou de reagir à ofensa. As vaias eram o referendo aos gritos de "macaco" do último duelo. Eram o recado de que tanto faz o que existe debaixo da epiderme: o que vale é ganhar o jogo. É se dar bem. É levar vantagem. E qualquer reação a isso é apenas “esparrela”.
 
As vaias foram o trunfo do país de Pelé e Felipão. Um país que joga às costas da vítima o peso de ser ofendido. Um país que valida, pela ignorância, o cientificismo torto de séculos passados que colocavam o negro no meio do caminho entre os símios e o homem branco. Este cientificismo baseou a ideia de supremacia racial e influenciou algumas das maiores atrocidades da História. Por isso ela ofende. Por isso chamar um branco alto de “girafa” não tem o mesmo peso que chamar um negro de “macaco”: apenas um deles fora escravizado pela História.
 
A manifestação de ontem da torcida gremista era a manifestação da derrota: a derrota de Aranha, a derrota de um país inteiro que apenas finge que deixou de açoitar seus antigos escravos. Apesar disso, ele jogou. Foi o melhor da partida, segundo a crônica esportiva. A mesma crônica que, ao fim do duelo, cercou o jogador para arremessa-lo ao centro do picadeiro com uma única pergunta: “como se sente?”
 
Acossado, Aranha tentava explicar que deixava o campo entristecido pela reação da torcida, que referendava a ofensa do último duelo. Mas vaia era vaia, admitia, e contra ela não tinha o que fazer.
Um dos repórteres, em tom de deboche, chegou a questionar: “E qual a diferença?”.
“Você sabe a diferença”, respondeu Aranha.
“Não sei: me diga”, desafiou o sujeito do microfone, como se não soubesse.
“Você acha certo o que aconteceu?”, questionou o goleiro.
 
O repórter respondeu algo como “não tenho que achar nada”. E Aranha, mais uma vez, deixou o campo balançando a cabeça em tom de incredulidade. Tinha toda razão para ver e não crer.
 
Já nos vestiários, um pouco mais calmo, ele voltou a ser questionado sobre o assunto. Os repórteres queriam saber por que ele se negava a se encontrar com a torcedora que o ofendera e que estava sedenta pelo seu perdão. O circo dava ao goleiro o papel de Meursault, o personagem de O Estrangeiro, de Albert Camus, condenado não por um crime, mas por não ter chorado no enterro da mãe. O circo queria ver o goleiro chorar. Queria ver o circo pegar fogo. Aranha, de novo, novamente, outra vez, respirou fundo. E respondeu algo como: “Não quero o mal para ela. Mas não vou ficar abraçando ninguém enquanto a tevê mostra minhas lágrimas com uma música triste ao fundo”.
 
Aranha talvez não soubesse, mas acabava de desmontar a “esparrela” armada para ele. Percebeu, muito antes dos homens de seu tempo, o que era um circo. Um circo midiático. E o rejeitou. Como rejeitou a ofensa que agora tantos querem minimizar como “melindre”.
 
Aranha parou o jogo, um jogo que segue perdendo, para mostrar simplesmente que atrás das cortinas de um circo que não criou existe um homem. Este homem se chama Mário Lúcio Duarte Costa, seu nome de batismo. Que é maior que a alcunha. Que é maior que o próprio esporte. Que não merece ouvir o que ouviu. E que parece disposto a interromper o jogo quantas vezes forem necessárias. Até que o recado seja entendido. Até que um dia a história mude. De vez. Mário Lúcio Duarte Costa acabava de fazer História.
 
 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

O cio da terra. O planeta, a humanidade e o direito dos povos

Em prejuízo de avanços alcançados nos últimos anos, grandes proprietários rurais ainda exercem pesada influência sobre as decisões do Estado
 
por Redação Rede Brasil Atual                                 
        
               
CELSO MALDOS
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O respeito à cultura e aos direitos dos povos tradicionais é parte de um futuro mais justo

O interesse pela questão indígena é crescente no Brasil contemporâneo. Durante muito tempo, uma parcela minúscula da sociedade desfrutou sem ser incomodada da ocupação indevida da terra pertencente a comunidades tradicionais. Não raras vezes, à base de violência e com a omissão dos poderes públicos. Com a Constituição de 1988 – fruto da pressão de amplos setores organizados sobre um Congresso Nacional em dívida com a democracia –, comunidades indígenas passaram a ter reconhecida pelo Estado a ascendência sobre a posse e a ocupação de seus territórios originais. Hoje, cresce a visão da importância dos índios para a terra. Seja por sensibilidade ambiental, seja por consciência solidária e cidadã.

O respeito a culturas e direitos dos povos tradicionais – entre os quais também quilombolas, caiçaras e ribeirinhos – vem da crença na necessidade de um novo modelo de desenvolvimento, da superação do individualismo e do consumismo para uma reorganização das sociedades e das economias. Essa mudança de rota é vital para dar maior sobrevida ao planeta e à humanidade.

Em prejuízo de avanços alcançados nos últimos anos, grandes proprietários rurais ainda exercem pesada influência sobre as decisões do Estado. A lentidão na execução de processos de demarcações e de retomadas de Território Indígena (TI) resulta em parte do poderio dos ruralistas, sobretudo no Legislativo – onde atualmente disputam com o Executivo o direito de decidir sobre demarcações. Por isso, as vitórias alcançadas pelas comunidades são escassas e árduas. Daí a escolha de levar para a capa desta edição (revista rede brasil atual) o vitorioso resultado das batalhas de uma comunidade Xavante, em Mato Grosso, para reaver o pedaço de mundo onde nasceram seus ancestrais. E de onde haviam sido expulsos há quase 50 anos pela ganância.

Com a proximidade das eleições, é importante que leitores e eleitores reflitam sobre suas responsabilidades na contaminação da política pelos que dela usufruem em benefício próprio. É necessário identificar a quem se estará delegando poderes de legislar e governar. E saber que existe vida além das eleições para se travar a batalha por um país melhor. Como ensina o povo Xavante de Marãiwatsédé.

 

terça-feira, 24 de junho de 2014

Debate na ONU: a responsabilização das empresas transnacionais pela violação dos direitos humanos e destruição da natureza

Hoje, em Genebra, nas Nações Unidas, no debate por um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas e direitos humanos. A sociedade civil internacional está exigindo que a ONU adote instrumentos internacionais para enfrentar o abuso de empresas transnacionais, em particular em relação à violações de direitos humanos, crimes econômicos e ecológicos, e crie um mecanismo efetivo que proporcione reparação e acesso à justiça para todas as pessoas afetadas.


           Frei Rodrigo Péret participando do debate em Genebra, nas Nações Unidas


Por
Frei Rodrigo Péret   

Por um instrumento internacional juridicamente vinculante sobre empresas e direitos humanos (ONU)
Para entender melhor a questão:

As operações de muitas empresas transnacionais e outras empresas de negócios, causam a devastação de meios de subsistência, de territórios e do meio ambiente das comunidades onde elas atuam. As empresas transnacionais buscam mercantilização dos bens comuns, dos serviços essenciais e da própria natureza. Muitas empresas transnacionais e outras empresas privadas também violam ou são cúmplices de violações dos direitos humanos, direitos trabalhistas, da autodeterminação dos povos indígenas, destroem a base da soberania alimentar, poluem fontes de água e solos, e saqueiam os recursos naturais.

Desde 1970, países e organizações da sociedade civil vêm solicitando a responsabilização de empresas transnacionais, por violações dos direitos humanos e destruição da natureza, por elas provocados. Atualmente existe nas Nações Unidas uma grande movimentação nesse sentido. A sociedade civil internacional está exigindo que a ONU adote instrumentos internacionais vinculantes para enfrentar o abuso dessas empresas em relação aos direitos humanos.

Um dos grandes problemas que a comunidade internacional verifica é o fato de que as empresas transnacionais estão fora do princípio da territorialidade e na maioria das vezes vivem à margem das legislações nacionais. Elas atuam globalmente, possuem múltiplos centros de operação e, contam com apoio de Estados e organizações multilaterais internacionais.

Só para se ter uma ideia, vamos refletir sobre a questão, por exemplo, sobre possibilidade das vítimas processarem as empresas transnacionais diretamente em seu domicílio (seja onde ela esteja atuando ou no país de sua origem). Isso ajudaria a corrigir uma desigualdade amplamente percebida em relação à direitos e obrigações que existem entre as empresas de um lado e as pessoas impactadas do outro lado.

Segundo a Comissão Internacional de Juristas (ICJ) “De acordo com algumas avaliações, a crescente rede de acordos bilaterais ou multilaterais sobre investimentos e comércio, muitas vezes concedem às empresas o direito de processar governos em tribunais arbitrais internacionais, um direito que os indivíduos e as comunidades não têm em relação às empresas que poluem o ambiente ou afetem seus direitos. Um tratado internacional que garanta remédios para danos causados ​​por empresas é visto como um instrumento corretivo a este respeito.”

Na 26 ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU em Genebra, os representantes do Equador e África do Sul na ONU, de um lado e os representantes da Noruega, de outro, apresentaram duas resoluções para adoção pelo Conselho. A resolução comum feita pelo Equador e África do Sul, entregue em 19 de junho propõem "estabelecer um grupo de trabalho intergovernamental aberto com a missão de elaborar um instrumento internacional juridicamente vinculativo sobre Empresas Transnacionais e outras empresas privadas no que diz respeito aos direitos humanos." A resolução da Noruega, originalmente apresentada em 12 de junho, em seguida, atualizada em 17 de junho, inclui um pedido para que um Grupo de Trabalho da ONU elabore um relatório considerando, entre outras coisas, os benefícios e as limitações dos instrumentos juridicamente vinculativos.


Os movimentos sociais e organizações da sociedade civil acolhem e apoiam a iniciativa tomada por uma série de Estados-Membros no Conselho de Direitos Humanos para a criação de um instrumento internacional juridicamente vinculante, dentro do sistema da ONU, para clarificar as obrigações de direitos humanos das empresas transnacionais, em particular em relação à violações de direitos humanos, crimes econômicos e ecológicos, e abusos, e crie um mecanismo efetivo que proporcione reparação e acesso à justiça para todas as pessoas afetadas, nos casos em que tais recursos são de fato não sejam previstos em jurisdições domésticas.

Frei Rodrigo de Castro Amédée Péret,ofm