Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo: ditaduras e responsabilidade político-institucional
São Paulo – O documento divulgado hoje (10) pela Comissão Nacional da Verdade relaciona 377 nomes que, na avaliação do colegiado, se identificam como autores de graves violações de direitos humanos, vinculados a um "plano de responsabilidade político-institucional". Estão ali os ex-presidentes militares Humberto de Alencar Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emilio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. Também se incluem nomes conhecidos, como o de José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, do coronel Sebastião Curió, do coronel Wilson Machado (envolvido no caso Riocentro, de 1981), do general Newton Cruz, do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e do delegado Sérgio Paranhos Fleury.
"Tivemos muito cuidado na elaboração dessa lista, porque sabemos o impacto que ela vai ter", afirmou o coordenador da CNV, Pedro Dallari, durante ato realizado na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em Brasília. Ele observou que eventuais responsabilizações caberão ao Judiciário e ao Ministério Público, mas acrescentou que "a indicação de autoria é por si só relevante". Segundo Dallari, os 377 nomes trazem "indícios consistentes de autoria".
O coordenador da CNV destacou trabalhos de levantamento de informações feitos desde a década de 1970, por presos políticos, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, pela Comissão de Anistia e por grupos de familiares de mortos e desaparecidos. "O relatório não representa, e dissemos isso à presidenta Dilma Rousseff, o começo ou o fim dessa investigação. Procuramos, até em respeito a esse legado de informações, fazer o melhor trabalho possível no sentido de aprofundar a investigação. Temos a convicção de que o trabalho não se encerra aqui." Para Dallari, o texto trará uma "base de informações muito organizadas" e poderá auxiliar as várias comissões da verdade ainda atuantes, universidades e imprensa.
A expectativa é de que tenha sido feito um trabalho de referência, acrescentou. "O relatório não tem gordura: é músculo e osso. Fatos, fatos, fatos."
Outros nomes que constam da lista: o médico-legista Harry Shibata, o brigadeiro João Paulo Burnier, o coronel Nilton Cerqueira, o delegado Romeu Tuma, o delegado Alcides Singillo, o médico Amílcar Lobo, o capitão Benoni Albernaz, o delegado Cláudio Guerra (que recentemente reconheceu participação em diversas atividades no período), o delegado Dirceu Gravina e o coronel Freddie Perdigão Pereira. Está lá também o soldado Herculano Leonel, autor do disparo que matou o metalúrgico Santo Dias, em 1979.
A história da TV Excelsior não foi contada nos cadernos especiais da mídia sobre os 50 anos do golpe. Era a líder absoluta de audiência, na época.
A ditadura acabou com a única rede de televisão brasileira que, um dia, alinhou-se a um projeto nacional de desenvolvimento autônomo liderado pelo presidente João Goulart.
Lembranças da mídia “esquecida” pela ditadura
Por Laurindo Leal Filho, na Carta Maior.
Apesar do desfecho trágico que levou o Brasil a uma ditadura sanguinária, em termos de mídia estávamos melhor naquela época do que hoje.
“Dia 1º de abril de 1964. Cinelândia, Rio de Janeiro. Em frente ao Clube Militar, um garoto de 12 anos começa a gritar ‘Jangooo’, ‘Jangooo’. Um homem alto e magro, cabelo cortado recente, bigodes finos, aponta a sua automática e explode a cabeça do menino. Nesse dia eu era diretor de jornalismo da Rede Excelsior de Televisão, na época líder absoluta de audiência. Nessa mesma noite de 1º de abril, no Jornal de Vanguarda, a cena foi ao ar”, lembra Fernando Barbosa Lima no livro Gloria in Excelsior escrito por Álvaro de Moya.
Era o início de uma longa ditadura e o começo do fim da única rede de televisão brasileira que, um dia, alinhou-se a um projeto nacional de desenvolvimento autônomo liderado pelo presidente João Goulart.
O Jornal de Vanguarda, havia sido premiado pela Eurovisão, a rede europeia de televisões públicas, como melhor do mundo no seu gênero, superando os programas de notícias da BBC de Londres. Com recursos e independência, a Excelsior criava um novo padrão de qualidade para a TV brasileira, copiado depois pela Globo.
Ao tiro na Cinelândia seguiu-se a invasão da emissora por policiais armados e a derrocada de um império comandado pelo empresário Mário Wallace Simonsen. Figura esquecida intencionalmente pela mídia de hoje já que sua lembrança destroi a lenda golpista de que o Brasil de Jango caminhava para o comunismo.
O dono da Excelsior, e também da Panair do Brasil e da maior empresa exportadora de café do pais, a Comal, de comunista não tinha nada. Tinha, isso sim, convicção que seus negócios só prosperariam se o país crescesse de forma independente, livre do jugo imposto pelos Estados Unidos. Disputava o mercado internacional do café com o grupo Rockfeller.
Esteve ao lado da ordem democrática durante os governos Juscelino, Jânio e Jango. Mandou um avião da Panair buscar o vice-presidente Goulart em Pequim, durante a crise da renúncia de Jânio em 1961 e hospedou-o em seu apartamento de Paris, durante uma das escalas da longa viagem. Os golpistas nunca o perdoaram.
Os projetos de reformas de base enviadas por Jango ao Congresso, em março de 1964, se efetivados, encaminhariam o Brasil para o patamar de “potência independente, com ascendência sobre a América Latina e a África” no dizer do sociólogo Octavio Ianni no livro ‘O colapso do populismo no Brasil’.
A essa política se contrapôs, com o golpe, um modelo de capitalismo associado e dependente mantendo o Brasil na condição de satélite da órbita centralizada pelos Estados Unidos. Coube à mídia dar respaldo à subserviência, sem o qual a ação dos golpistas e depois a da ditadura, teria sido mais árdua.
No centro desse processo, como coordenador do trabalho de conquista dos corações e mentes da sociedade, estavam o Instituto de Pesquisas Sociais, o IPES e o Instituto de Ação Social, o IBAD. Um complexo de produção ideológica que “publicava diretamente ou através de acordo com várias editoras, uma série extensa de trabalhos, incluindo livros, panfletos periódicos, jornais, revistas e folhetos. Saturava o rádio e a televisão com suas mensagens políticas e ideológicas”, como mostra a pesquisa de Rene Armand Dreifuss, publicada no livro ’1964: a conquista do Estado’.
A máquina da desinformação, azeitada por recursos captados nas elites empresariais pagava os donos de jornais, rádios e TVs ou diretamente os jornalistas, executores das pautas de interesse dos golpistas.
É precioso o relato de Rene Dreyfuss ao demonstrar como “o IPES organizava equipes de ‘manipuladores de notícias’ que preparavam e compilavam material sob a coordenação geral do general Golbery do Couto e Silva, especialista em guerra psicológica. Esses manipuladores se responsabilizavam pelas ‘campanhas de pânico’. A ‘campanha da ameaça vermelha’ empreendida pelo IPES mostrou-se muito útil na melhoria de sua situação financeira, já que atraiu contribuições de empresários tomados de pânico e profissionais que temiam o futuro”.
Segundo Dreyfuss, “eram também ‘feitas’ em O Globo notícias sem atribuição de fonte ou indicação de pagamento e reproduzidas como informação factual. Dessas notícias, uma que provocou um grande impacto na opinião pública foi a de que a União Soviética imporia a instalação de um Gabinete Comunista no Brasil, exercendo todas as formas de pressões internas e externas para aquele fim”.
O envenenamento simbólico de parte da população era feito com muita competência e a própria mídia apresentava possíveis antídotos, além do golpe que estava sempre presente no horizonte.
Sem registros históricos, um desses antídotos só não é risível porque o momento não estava para brincadeiras. A TV Paulista e a Rádio Nacional de São Paulo, que depois seriam vendidas para as Organizações Globo, numa operação até hoje contestada na justiça, propiciaram um espetáculo bizarro na semana santa que antecedeu o golpe.
O apresentador do programa de rádio diário, “A hora da Ave Maria”, Pedro Geraldo Costa, foi a Jerusalém às expensas das emissoras e de lá trouxe uma cruz enorme de madeira que chegou ao Rio de Janeiro de avião e seguiu em peregrinação para São Paulo trafegando lentamente pela via Dutra, com uma parada simbólica em Aparecida. Nas proximidades da capital foi içada por um helicóptero e suavemente depositada no Vale do Anhangabaú em meio a multidão convocada pelo rádio e pela TV para orar junto à cruz pelo país. Episódio esquecido que, no entanto, se articula com as marchas religiosas e golpistas do período, insufladas pela mídia.
Como depois as pesquisas do Ibope mostraram, essas multidões arregimentadas pelo conluio igreja-meios de comunicação representavam parcelas minoritárias da população. A maioria apoiava o governo Jango e a sua política reformista. Mas até hoje, passados 50 anos, o golpe ainda é apresentado pela mesma mídia como tendo sido respaldado pelo povo. Foi apenas por aqueles que se deixaram levar pela insidiosa campanha midiática do início dos anos 1960.
Apesar do desfecho trágico que levou o Brasil a uma ditadura sanguinária, em termos de mídia estávamos melhor naquela época do que hoje. Nas bancas, a Última Hora era a alternativa aos jornais reacionários, a TV Excelsior abria espaço para o contraditório e algumas emissoras de rádio mantinham-se alheias as pressões golpistas, como a 9 de Julho de São Paulo, cassada pela ditadura.
Hoje nem isso temos possibilitando que apenas uma versão, a dos golpistas, continue circulando pela mídia tradicional. O “esquecimento” de figuras como a de Mário Wallace Simonsen e de episódios como a da cruz que veio de Jerusalém são propositais. Se lembrados poriam em cheque a ameaça comunista e o apoio espontâneo das massas ao golpe.
Versões distorcidas, bem ao gosto do Instituto Millenium que está ai como um fantasma a lembrar alguns traços assustadores dos antigos IPES e do IBAD.
Do Viomundo: A TV Excelsior inventou os horários fixos de programas e, portanto, a grade de programação. O telejornal que chamou a “Revolução” de golpe tinha como editor Fernando Barbosa Lima. A Excelsior tinha Bibi Ferreira em horário nobre. Trouxe Jean Paul Sartre e Simone de Beauvoir para falar no Teatro Cultura Artística, sua sede em São Paulo. Sofreu dois incêndios misteriosos, em seguida. No momento final, apresentou um plano de recuperação ao governo Médici dando terras em São José dos Campos como garantia. Quem costurou o acordo foi o advogado Saulo Ramos. Assim que os representantes da emissora deixaram a reunião, Médici cassou a concessão. A Globo herdou o elenco da Excelsior. A emissora de Roberto Marinho tinha surgido graças a uma injeção de capital internacional, da Time Life. Ou seja, foi a vitória do capital internacional sobre o doméstico. Ao fim e ao cabo, Excelsior vs. Globo foi um retrato do próprio golpe. Falida, a emissora teve os ossos descarnados por concorrentes midiáticos, como a turma da Folha. Tudo em casa.
A TV Excelsior foi cassada em 30 de setembro de 1970 por uma canetada dos militares.
Tito, que abraçou a religião e a revolução, morreu com o demônio na alma
Por Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual
Livro lançado hoje (14) narra trajetória de frei dominicano que jamais se recuperou da tortura. Destruído por dentro, matou-se aos 28 anos. 'O trágico é que ele não pôde esperar', diz autora
reprodução
Frei Tito nunca conseguiu se recuperar das torturas sofridas a partir da prisão, primeiro no Dops, depois na Oban
Rio de Janeiro – "Se ele não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia." A frase do capitão Benoni Albernaz, aquele que "deixava o coração em casa" ao sair para trabalhar, revelou-se profética. Em 10 de agosto de 1974, o corpo do frei Tito balançava em uma árvore, no interior da França, pondo fim a anos de angústia, de um homem que nunca conseguiu se recuperar das torturas sofridas a partir da prisão, em 4 de novembro de 1969, primeiro no Dops, depois na Operação Bandeirantes (Oban). O livro Um Homem Torturado, das jornalistas Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, que conta a trajetória de Tito de Alencar Lima, será lançado hoje (14), a partir das 19h, no auditório Franco Montoro da Assembleia Legislativa de São Paulo.
"Ele levou o Fleury dentro dele. Via o Fleury em todo lugar. Foi destruído psicologicamente", atesta Leneide, Junto com a filha Clarisse, durante os dois anos e meio de trabalho ela entrevistou mais de 30 pessoas, entre companheiros no Brasil e na França, e a irmã de Tito, Nildes.
Além de Albernaz, o delegado Sérgio Paranhos Fleury foi um dos torturadores de Tito, preso com outros dominicanos no convento de Perdizes, zona oeste de São Paulo, em 4 de novembro de 1969, como parte da Operação Batina Branca. Os religiosos davam suporte a ações da Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. Escondiam perseguidos políticos ou os ajudavam a sair do país. No mesmo dia em que os dominicanos eram presos, o líder da ALN era fuzilado em uma emboscada na Alameda Casa Branca, em São Paulo.
Para Frei Tito, somava-se ainda o "agravante" de ter sido quem conseguiu encontrar um local para o congresso de União Nacional dos Estudantes (UNE), em 1968, em Ibiúna, interior paulista.
É fato, lembra Leneide, que mesmo no exílio, todos eram vigiados, monitorados. "Mas o Tito via o Fleury. Era o demônio que tinha se instalado nele."
O projeto do livro se originou por sugestão de um amigo e editor, quando ela contou que iria entrevistar, para a revista Carta Capital, o psiquiatra Jean-Claude Rolland, que tratou de Tito. A jornalista, que mora na França há 14 anos, conheceu Rolland durante um colóquio em Paris. "Ele nos escapou", disse o especialista Leneide, referindo-se a Tito.
Vivo, mas sem vida
Um dos grandes amigos de Tito, o frei Xavier Plassat, que hoje assessora a Comissão Pastoral da Terra (CPT), já havia constatado, conforme lembra Leneide: o dominicano morreu, de fato, na sala de tortura. Foi o que escreveu, ainda em 1986, o psicanalista Rolland: "Não há nenhuma dúvida de que Tito de Alencar morreu durante suas torturas".
Pode-se dizer que saiu vivo de lá, mas sem vida. "Tentaram atingir o mais íntimo dele, a fé, a lealdade", diz a jornalista.
Tito deixou o Brasil em janeiro de 1971, como parte do grupo de 70 militantes que foram soltos em troca da libertação do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher. Saiu a contragosto, anota Leneide. "Ele não queria ser banido. Na foto dos libertados, a maioria está feliz, terão um horizonte em suas vidas. Ele aparece triste e cabisbaixo." Tito não queria deixar sua terra, sua gente.
No livro Batismo de Sangue (1983), o escritor Frei Betto, também dominicano, relata uma passagem da chegada dos banidos ao Chile de Salvador Allende. Um companheiro, Cristóvão Ribeiro, anima-se ao ver a recepção e exclama: "Tito, eis finalmente a liberdade!" Ao que ele responde: "Não, não é esta a liberdade". Posteriormente, ele iria para a França. Seu último destino foi o convento Sainte-Marie de la Tourette – em um prédio projetado pelo arquiteto Le Corbusier – em L’Arbresle, perto de Lyon.
Desenraizamento
A jornalista cita um escritor do Togo que considera o exílio uma morte simbólica. Perde-se a identificação – com a família, a cidade, o bairro. A pessoa perde raízes. E esse "desenraizamento vertiginoso só se acentua com o tempo". Tito só piorava com o tempo. "O trágico da vida de Tito é que ele não pôde esperar."
A Igreja, naquele momento, ainda estava sob o impacto do Concílio Vaticano II, convocado pelo papa João XXIII e realizado de 1962 a 1965. Era um período de rediscussão sobre o papel social da Igreja. No livro, as autoras falam sobre o engajamento de Tito e dos dominicanos. "O Evangelho traz uma crítica radical da sociedade capitalista. Nesse sentido, é revolucionário. Os temas da esperança, da pobreza, do messianismo, que são profundamente bíblicos, estão na fonte do movimento revolucionário. Não vejo, realmente, como ser cristão sem ser revolucionário", declarou o jovem religioso em 1972. Nascido em Fortaleza em 1945, Tito ingressou na Juventude Estudantil Católica (JEC). Chegou em 1967 a São Paulo, onde estudava Filosofia.
"Ele era engajado e identificado com o movimento de resistência", observa Leneide. Mas também alimentava dúvidas (Cristo, Marx) e fazia ressalvas. Dizia, por exemplo, que a guerrilha não tinha apoio popular. "Era o mais crítico de todos", diz a jornalista, lembrando de uma frase de Frei Betto: "O Tito, onde a gente punha ponto, ele punha ponto e vírgula".
E se ele tivesse permanecido no Brasil, poderia reestruturar sua vida? Não há como saber, pondera Leneide. "Talvez, ele tivesse se reconstruído." E lembra de outro mineiro, Henfil . (Ainda em Belo Horizonte, em início de carreira, ele se inspirara nos dominicanos para para criar os fradinhos, seus personagens Baixinho e Cumprido. O primeiro teve como fonte Carlos Alberto Ratton, irmão de Helvécio Ratton, que, em 2006, filma Batismo de Sangue, baseado no livro de Frei Betto).
Mas a lembrança é de uma homenagem de Henfil, ao dizer que todos voltaram, menos um.
Os restos mortais do religioso voltaram ao Brasil em março de 1983. Frei Betto lembra que, em liturgia na catedral da Sé, o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns, disse que Tito encontraria, enfim, do outro lado da vida, a unidade perdida.
A jornalista assume o livro como militante, no sentido da denúncia. "O número de pessoas mortas por tortura no Brasil, ainda hoje, é assustador. O homem é a única espécie que tortura seu semelhante. Nenhuma causa é mais nobre do que denunciar a tortura", afirma, citando observação do frei Oswaldo Rezende, para quem lembrar a história de Tito é mais do que recordar o que se passou, "mas criar também um dever, uma exigência de justiça".
No momento em que se completam 50 anos do golpe, o termo "justiça" ganha nova expressão. "Lembrar todo mundo faz bem, até a quem se beneficiou do golpe. Mas só pode haver reconciliação se quem torturou, quem matou, pedir perdão."
Em seu comentário de hoje (14), na Rádio Brasil Atual, Frei Betto ressaltou que frei Titto foi preso e torturado com ele em 1969. "De todo o grupo de frades dominicanos que lutou contra a ditadura, foi o que mais sofreu no Dops de São Paulo com choques elétricos, queimaduras de cigarro no corpo, pancadas na cabeça", lamenta.
Segundo Frei Betto, o livro descreve em detalhes o que ele sofreu, as alucinações que teve depois de solto, a sua resistência heróica durante a tortura, todo o pensamento que ele desenvolveu a partir de sua militância cristã, de sua experiência de fé e de seu combate à ditadura.
"É um exemplo para os nossos jovens, para as novas gerações, e nós devemos cada vez mais divulgar este exemplo para que a juventude possa novamente ficar incutida de idealismo, de utopia e de projetos para mudar o mundo e o Brasil", conclui.
Conheça a história do religioso brasileiro que foi contra o autoritarismo e viajou pelo mundo para discutir e expor o regime militar aos estudantes universitários
João Paulo Martins - Revista Encontro Publicação:31/03/2014
Dom Helder Câmara pregou sua crença nas minorias e discutiu o autoritarismo da ditadura militar com estudantes de diversas universidades pelo mundo
Enquanto o país iniciava seu mais controverso e sombrio período da história, naquele fatídico 31 de março de 1964, uma voz que vinha de Pernambuco, do alto escalão da igreja católica, se fez ouvir pelos quatro cantos do mundo: a do arcebispo de Olinda e Recife, Dom Helder Pessoa Câmara. Enquanto estudantes, trabalhadores e profissionais da imprensa, no Brasil, enfrentaram a ditadura militar com armas e sangue, o religioso, natural de Fortaleza, usou as palavras e a fé na juventude para confrontar o autoritarismo.
“Se dou pão aos pobres, todos me chamam de santo. Se mostro por que os pobres não têm pão, me chamam de comunista e subversivo”, costumava dizer Dom Helder, que teve diversos pensamentos associados a movimentos partidários. Como um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, ele ajudou a dar visibilidade, organização e estrutura à instituição, que teve importante papel de enfrentamento durante a ditadura militar brasileira. “Todo o agir de Dom Helder tinha por trás um valor maior, que era a promoção da dignidade humana. Num cenário político controverso, ele defendeu a cidadania”, explica Adenilson Ferreira de Souza, ex-jesuíta e doutorando em Ciências Políticas na UFMG. Seu objeto de estudo, claro, é o religioso brasileiro, um dos principais nomes do país, quando se fala em direitos humanos no século XX.
Com a restrição do espaço político brasileiro após a implantação do Ato Institucional nº 5, o AI-5, em 1968, Dom Helder, por incomodar muito os militares, é considerado pelos agentes do governo um ‘morto-vivo’. Os meios de comunicação não podiam falar sobre ele, nem publicar nada que mencionasse seu nome. O arcebispo estava proibido até de frequentar as universidades do país. Nesse momento, ele se volta para o exterior. “Como não podia circular pelo âmbito acadêmico no Brasil, entre os estudantes, de quem tanto gostava, tomou a sábia decisão de viajar pelo mundo, para discutir com jovens de grandes universidades, especialmente em Paris, Alemanha, Estados Unidos, Canadá e Itália”, diz Adenilson Souza.
Para Dom Helder, os cidadãos menos favorecidos deviam se unir, formando o que chamava de “minorias abraâmicas”, com clara referência bíblica a Abraão, e que tem como preceito a ideia de que em qualquer conjunto de pessoas, ao menos duas são sedentas por justiça e paz. “Ele apostava muito na juventude como engrenagem primordial da sociedade, e na força dos grupos abraâmicos, capazes de pensar soluções e enfrentar as arbitrariedades, com uma força parecida com a da bomba atômica”, completa o doutorando da UFMG.
Foram tantas viagens ao exterior, que o próprio papa Paulo VI, que era amigo de Dom Helder, solicitou que o arcebispo diminuísse o número de palestras internacionais. “O sumo pontífice alegou que o representante da cristandade era o papa e não o colega brasileiro”. Sua forte atuação para divulgar a repressão política no Brasil lhe rendeu nada menos que quatro indicações ao prêmio Nobel da paz – nenhum outro brasileiro teve tantas indicações, mas não o conquistou devido à ação subterrânea de boicote promovida pelo governo militar.
Além disso, recebeu o prêmio Martin Luther King, nos Estados Unidos, e se tornou doutor honoris causa em 32 universidades nacionais e estrangeiras.
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Assista o documentário sobre Dom Hélder Câmara, arcebispo emérito de Olinda e Recife, morto em 1999. O filme enfoca desde sua participação como figura central da ala progressista da Igreja Católica, na década de 1950, criando a Conferência Nacional de Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam), até suas ações durante a ditadura militar
Na noite contra o arbítrio, alertas para riscos presentes. E uma resposta a Neruda
Durante ato em São Paulo, presidente da Comissão de Anistia diz que falar da memória é disputa política. E integrante da Comissão da Verdade afirma que direita 'tenta se levantar' porque tem medo
Por Vitor Nuzzi, da Rede Brasil Atual
São Paulo – O monumento ao "nunca mais" acaba de ser inaugurado diante do Teatro da Universidade Católica, o Tuca, da PUC de São Paulo, na zona oeste da capital. É um dos 16 que serão instalados ao longo do ano em projeto da Comissão de Anistia com parceria do Instituto Alice – um foi posto perto do Clube Militar, no Rio de Janeiro. Os manifestantes começam a rumar para o auditório, cantarolando o refrão de Pra não Dizer que não Falei das Flores, de Geraldo Vandré, o recluso que há dias apareceu em um show de Joan Baez. No ato para homenagear vítimas da ditadura, o presidente da comissão e secretário nacional da Justiça, Paulo Abrão, chama a atenção para o aspecto pedagógico das atividades que rememoram os 50 anos do golpe. "Temos vencido a batalha contra o medo de discutir o passado. Esse negacionismo está caindo por terra. Falar de memória é instituir uma disputa política, é dizer que a história não é mais só contada pelo viés dos vencedores de então."
Já na área interna, no auditório do teatro que foi cenário de incêndios criminosos, o mais famoso em 1984, e abrigou em 1978 o 1º Congresso Nacional pela Anistia, a psicanalista Maria Rita Kehl, integrante da Comissão Nacional da Verdade (CNV), declara incômodo e conta que enviou carta ao jornal Folha de S. Paulo para comentar reações de leitores pró-ditadura, alguns, de fato, de extrema-direita e outros possivelmente desinformados, acredita. Faz menção a certa parcela da direita "que estava quieta e se levantou" de forma ameaçadora. "É claro que eles se levantam, porque estão com medo."
Na mesma noite, passarão pelo palco do Tuca dois velhos conhecidos: o poeta Thiago de Mello e o músico Sérgio Ricardo. Em meados dos anos 1970, ainda sob a ditadura, eles apresentaram o show Faz Escuro Mas Eu Canto (título de um livro de Thiago), com direção de Flávio Rangel. O músico dedilha o piano, o poeta declama Madrugada Camponesa: "Faz escuro (já nem tanto),/ vale a pena trabalhar. Faz escuro mas eu canto/ porque a manhã vai chegar".
História
No início do ato, que levará três horas e terminará às 22h, um telão exibe, na sequência, imagens do comício da Central, de 13 de março de 1964, quando o ainda presidente João Goulart reafirmava compromisso com as reformas de base; áudio com o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, na madrugada de 2 de abril, exatos 50 anos atrás, para declarar vaga a Presidência da República, mesmo com Jango ainda em território nacional; e imagens da posse do primeiro presidente-militar, marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que no discurso diz que a "cura" para os males da extrema-esquerda "não será o nascimento de um direita reacionária. E promete entregar o cargo ao presidente eleito em 1º de janeiro de 1966. Vaticínio errado, promessa não cumprida.
Neto de Jango, o publicitário João Alexandre Goulart se pergunta o que poderia acontecer no Brasil se as reformas de base avançassem. E lamenta que os livros de História tenham relegado o avô a uma rápida passagem, como quis a ditadura. "O silêncio da morte foi a versão oficial do governo", diz, afirmando ainda que nada se contou sobre a participação norte-americana no golpe, sobre entidades como Ipes e Ibad, de apoio e divulgação de campanhas contra Jango, o governo e o "perigo" comunista. "Em que página (dos livros) estava a Operação Brother Sam?", questiona João Alexandre, em referência ao plano dos Estados Unidos para dar sustentação aos golpistas em caso de resistência dos partidários do presidente.
Era sobre isso que falava, ainda na parte externa, o secretário Paulo Abrão. "Quebramos o tabu, quebramos o medo e estamos dizendo que ainda falta muita coisa. Muita gente não foi devidamente reparada, muitos arquivos não foram abertos, muitos crimes não foram apurados. Ainda falta, de nossa parte, criar um ambiente contra o ceticismo. A ditadura criminalizou a política. Não podemos ter essa descrença na política", afirma, destacando a presença da juventude nos atos que marcam o cinquentenário do golpe. "Ainda teremos muitos 50 anos: do AI-5, do (Decreto) 477, de várias prisões arbitrárias, mortes e desaparecimentos. Não aceitamos a tomada do poder pela força e a ruptura das instituições. O Estado é que criou um aparato sistemático de destruição da vida do outro."
'Eles se denunciam'
Lá dentro, Maria Rita Kehl também irá questionar a versão, largamente difundida, de que a ditadura foi um "mal necessário" para evitar que o Brasil se tornasse uma nova Cuba. "O golpe implantou uma ditadura de 21 anos para evitar que aqui virasse uma ditadura? Tem alguma coisa errada aí.
Inconscientemente, eles se denunciam", diz a psicanalista. "O que eles vieram evitar foi o que eles fizeram." Também rebate a pecha de comunista dada a Goulart. "O projeto de Jango não era do comunismo radical, mas de reformas. E estamos atrasados até hoje. Na verdade, eles vieram para evitar a distribuição de renda, de terra, dos meios de produção." Ela afirma ainda que a Operação Bandeirante (Oban), outro aparato de repressão, "foi financiada por parte da elite paulistana".
A essa altura, Maria Rita faz também uma crítica ao governo Dilma Rousseff, que diz admirar sob outros aspectos, ao falar sobre obras de grande porte. "Como se emancipação fosse Belo Monte", comenta. Destaca o "genocídio" de que camponeses e indígenas foram vítimas durante a ditadura e acrescenta que o problema não acabou. "Infelizmente, essas violações continuam hoje." Não diretamente por agentes do Estado, observa, mas com jagunços contratados por fazendeiros. "A coisa continua de forma mais ou menos impune, principalmente em regiões isoladas."
Por isso, ela diz considerar importante que a sociedade continue ativa e alerta não só para preservar as conquistas, "mas para ir além". Especialmente quando sair o relatório final da Comissão da Verdade, "por mais que não seja o que esperamos, ainda que não tenham aberto todos os arquivos para nós".
Índole
Criado no final de 1970, o Coro Luther King, que já havia participado, dois dias antes, da "descomemoração" do golpe em manifestação na sede do antigo DOI-Codi, também vai ao palco. Canta inicialmente Viola Enluarada (Marcos e Paulo Sérgio Valle). "O verso 'O mesmo pé que dança o samba se for preciso vai lutar' sintetiza a índole do povo brasileiro", afirma o ator Sérgio Mamberti, mestre de cerimônias do evento.
O coro interpreta ainda Bella Ciao, um hino de resistência na Itália, e O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), hino não oficial da anistia brasileira, imortalizado por Elis Regina. A "surpresa" anunciada por Mamberti não surpreende tanto: A Internacional fecha a apresentação.
Mundo errado
Sérgio Ricardo também canta. Perseguição e O Sertão vai Virar Mar integram a trilha do filme Deus o Diabo na Terra do Sol, dirigido por Glauber Rocha e lançado justamente em 1964, semanas antes do golpe. "Espero que o senhor tenha tirado uma lição/ Que assim mal dividido/ Esse mundo anda errado/ Que a terra é do homem/ Não é de Deus nem do diabo." Mais tarde, o cantor e o coral se reencontrarão para reeditar Calabouço, feita em lembrança do estudante Edson Luís, morto pela polícia durante protesto no Rio de Janeiro, em 1968, e executada na igreja da Sé, em São Paulo, em 1973, durante missa em homenagem a outro estudante, Alexandre Vannuchi, também assassinado.
Falam ainda representantes do PCdoB, PDT e PT, organizadores do ato, por meio das fundações Maurício Grabois, Leonel Brizola e Perseu Abramo, da União Nacional dos Estudantes (sua presidenta, Vic Barros, que condena tentativas de "setores reacionários" do Congresso de se criar uma lei antiterror), da CUT, da CTB e do MST. Críticas também à concentração dos meios de comunicação em poucas mãos e pedidos pela punição dos agentes do Estado responsáveis por torturas e outras graves violações dos direitos humanos.
E uma pausa para ouvir uma história naqueles dias de 1964, contada por Thiago de Mello, que no último domingo (30) completou 88 anos. Adido cultural no Chile, governo de Eduardo Frei, ele é avisado pelo ministro de Relações Exteriores, Gabriel Valdés, de que houve um golpe militar no Brasil. Em 1º de abril de 1964, na casa de Santiago onde hoje funciona a Fundação Pablo Neruda, ele recebe o próprio poeta chileno e o então senador Salvador Allende, que leva um rádio de alta potência para que possam escutar um pronunciamento de João Goulart.
Após ouvirem o discurso, Neruda, que estava lá em uma cadeira de balanço, diz ao amigo-irmão Thiago, que recorda: O teu povo não vai sair às ruas para defender a liberdade. Isso jamais acontecerá no Chile. Aqui, até as donas de casa sairão com as vassouras. "Fiquei magoado", comenta o poeta brasileiro, com um sorriso. Já Allende, "marinheiro viajado nos mares da política", expõe temor, ao ver nos acontecimentos no Brasil uma porta que se abre para uma sucessão de golpes na América Latina, da qual talvez o Chile não venha a escapar.
Thiago lembra então dos comícios pelas eleições diretas no Brasil, em 1984, nos últimos momentos do regime autoritário. E fala do amigo Neruda, a quem chamava de Paulinho. "Ah, se o poeta estivesse vivo para ver que esse povo sabe lutar... E caiu a ditadura."
Poucos dias depois, ainda na missão diplomática, ele recebe um malote com os jornais e vê na primeira página do Correio da Manhã a figura de Gregório Bezerra, líder das Ligas Camponesas, preso em Pernambuco, "descalço, só de calção, o peito todo lanhado, o sangue ainda escorrendo, puxado por uma corda", descreve, recusando-se a citar o nome do torturador (mais tarde, Expedito Solaney, da CUT, dirá que foi o coronel Darcy Villock Viana, morto em 2012, aos 93 anos). "Este não é meu pais", murmura Thiago, que duas semanas depois verá, também no Correio, a imagem de outro brasileiro sendo maltratado, o escritor Astrojildo Pereira, "o apaixonado pela obra de Machado de Assis". E recorda: "Tomei sozinho a decisão de renunciar ao meu posto".
Ele responde ao Ato Institucional número 1, o primeiro da ditadura, com um "ato institucional permanente". Escreve o poema Os Estatutos do Homem.
“Estampar a foto de Jango, no dia em que o golpe nefasto completa 50 anos, é um gesto não só de defesa da Democracia, mas de defesa da independência e da soberania nacional.”
por Rodrigo Vianna
Quando comecei a frequentar assembleias estudantis, ali pelos anos 80, ainda era comum escutar que havia policiais infiltrados anotando tudo, fazendo a “ficha” de quem se manifestava. A turma mais “pós-moderna” achava que era tudo “paranóia”. Do mesmo jeito, muita gente dizia que atribuir aos EUA participação decisiva no golpe de 64 era pura “invenção”, ou “paranóia” esquerdista. E não era. Nunca foi…
Telegramas dos EUA avisavam: navios de guerra apóiam golpe
Já se sabe, há alguns anos, que os Estados Unidos - com John Kennedy e depois Lyndon Johnson – conspiraram contra o Brasil em 1964. A Operação “Brother Sam” garantia o envio de aviões, de navios de guerra e até a entrada de tropas dos Estados Unidos para dar apoio aos golpistas - se assim fosse necessário.
Reportagem de Luiz Carlos Azenha, no Jornal da Record, trouxe mais detalhes sobre o apoio dos Estados Unidos ao golpe (clique aqui para ver). Assim como apresentou novas evidências de que o comandante do II Exército (São Paulo), Amaury Kruel, recebeu malas de dólares para trair Jango e aderir ao golpe.
O que isso tudo tem a ver com a foto do presidente deposto João Goulart, que permanecerá na capa deste blog durante todo o dia de hoje? Ora, Jango durante muito tempo foi criticado pela esquerda e a direita. Os conservadores diziam que ele era um “comunista” propenso a transformar o Brasil “numa nova Cuba”. Besteira grossa, sem fundamento. Jango era um líder trabalhista, queria reformas – mas dentro da ordem democrática.
Já a esquerda acusava Jango de fraqueza, por não ter resistido ao golpe. Hoje se sabe que ele tinha conhecimento das movimentações das tropas dos EUA. Jango temia que, se resistisse de armas na mão, daria aos gringos a desculpa para entrarem no Brasil – dividindo nosso território. Aliás, preocupação semelhante à de Getúlio Vargas – que em 1954 também chegou a falar que temia ver o Brasil dividido (como acontecera com a Coréia).
Para os Estados Unidos, seria ótimo dividir o Brasil – literalmente. Apesar de todos nossos problemas, somos um incômodo – um país grande, bem relacionado com nossos vizinhos, pronto a desafiar (ainda que de forma discreta e pontual) o domínio dos EUA na América do Sul.
A queda de Jango foi (também) um capítulo dessa disputa, dessa longa batalha da América Latina por independência e autonomia.
Em 1964, Jango e a Democracia brasileira foram golpeados em meio a essa conjuntura. Que depois vitimaria Argentina, Uruguai e o Chile de Allende.
Estampar a foto de Jango, no dia em que o golpe nefasto completa 50 anos, é um gesto não só de defesa da Democracia, mas de defesa da independência e da soberania nacional.
Jango – assim como Vargas dos anos 50 – simboliza a defesa do interesse nacional. Estou entre aqueles que não aceitam o termo “populismo” como forma de definir a linha política que unia Vargas-Jango-Brizola, e que de alguma forma chegou até Lula-Dilma. Não. Nada de “populismo”. Trata-se do trabalhismo brasileiro. Com seus defeitos e imperfeições.
Não aceito também a tese do “colapso do populismo” – expressão utilizada em certos circuitos universitários paulistas, para definir o que houve em 1964. Prédios entram em colapso. Falar em “colapso do populismo” é desconhecer (ou minimizar) o golpismo que uniu conservadores brasileiros a interesses dos Estados Unidos, em meio à Guerra Fria.
Nesse primeiro de abril de 2014, não aceitemos a mentira dos revisionistas, nem o cinismo de editoriais/artigos da imprensa velhaca, que falam do golpe como algo “inevitável” ou como uma “porrada necessária” (na expressão infeliz de um ex-cineasta que aderiu ao revisionismo da Globo). Não!
Precisamos esculhambar revisionistas e escrachar torturadores – como a rapaziada fez com Brilhante Ustra em Brasília. Precisamos, sim, homenagear os mortos na luta contra a ditadura (muitos deles, sob tortura) e cobrar informações sobre os desaparecidos!
Mas devemos lembrar também o que veio antes, lembrar o ato fundador da barbárie: em primeiro de abril de 1964, Jango foi derrubado pela direita lacerdista, com apoio de amplos setores da Igreja Católica e da mídia velhaca (Marinhos, Mesquitas, Frias, entre outros), e sob ameaça concreta de invasão de nosso território pelas tropas dos Estados Unidos.
1964 foi (também) um golpe dos Estados Unidos contra o Brasil. Lembrar Jango é dizer não à ditadura, não à intervenção estrangeira. Sim à Democracia, sim à luta pela independência nacional.
Viva Jango, nosso presidente!
No período em que o Brasil foi governado pelos militares (1964-1985), artistas deixaram na história músicas de protesto ao regime que ajuda a não esquecermos, para que as atrocidades não se repitam.
¨DITADURA NUNCA MAIS! O DEVER DA MEMÓRIA!¨
Elis Regina interpreta a música "Menino", Show Saudade do Brasil, 1980. Fã Clube Elis Regina:
Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou
No incêndio repetindo
O brilho de teu cabelo
Quem grita vive contigo
( clique ao lado para ouvir a música)
fonte: jornalggn.com.br
Chico Buarque, Milton Nascimento, MPB 4 - CÁLICE - Chico Buarque e Gilberto Gil - gravação de 1978
A música Cálice, lançada por Chico Buarque em 1973, faz alusão a oração de Jesus Cristo dirigida a Deus no Jardim do Getsêmane: “Pai, afasta de mim este cálice”. Para quem lutava pela democracia, o silêncio também era uma forma de morte. Para os ditadores, a morte era uma forma de silêncio. Daí nasceu a ideia de Chico Buarque: explorar a sonoridade e o duplo sentido das palavras “cálice” e “cale-se” para criticar o regime instaurado.
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Talvez o mundo não seja pequeno
Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me esqueça
¨A decisão do STF, em 2010, sobre a Lei da Anistia, assim como a do general Figueiredo em 1979, será inesquecível. A decisão dos nossos juízes supremos anistiou previamente, por ausência de sentido de justiça e ignorância de nossa história, aqueles que matariam Amarildo e, agora, Dona Claudia Ferreira¨.
Por Francisco Carlos Teixeira
Segundo relatório recentemente publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dia a polícia brasileira mata cinco pessoas. Da mesma forma, dezenas de policiais são mortos nos confrontos com o crime organizado, muitos deles – pessoas honradas – abatidos de forma desigual pelo tráfico fortemente armado. Outra organização independente, a “Human Rights Watch”, em relatório também deste ano, denunciou a sistematicidade da tortura nas prisões brasileiras, ressaltando que mesmo sob a custódia de um Estado (de Direito), a tortura é uma realidade cotidiana no Brasil. Em alguns casos recentes, como no Maranhão, as condições de tutela dos apenados chegou a causar condenações internacionais ao país. Refletir sobre números tão absurdos é uma necessidade imperiosa .
Em 28 de agosto de 1979 o general Figueiredo – aquele que pediu inutilmente para ser esquecido! – aprovava a Lei 6.683, que estabelecia a anistia para atos considerados criminosos, de motivação política, cometidos entre 1961 e 1979. A lei, aprovada ainda sob regime discricionário e autoritário, sem a plena capacidade do Congresso Nacional decidir, estabelecia um princípio único no mundo: os possíveis acusados de atos de violência e tortura cometidos sob cobertura do Estado autoritário eram colocados fora do alcance da Justiça. Em suma, os homens que torturam, sequestraram, mataram e se desfizeram de corpos e das provas de tais crimes, eram “anistiados” no mesmo diploma que “perdoava” os que lutaram pelo retorno da democracia no país.
A Anistia, uma luta de pessoas que sofreram a ditadura e do conjunto do povo brasileiro, foi, pela Lei de Figueiredo, violentada e depravada no Brasil. A Anistia, foi em princípio, um amplo movimento popular. Sob o impulso das ruas, de milhares de comitês e de centenas de atos pela liberdade de presos e retorno dos exilados, e pela reassunção de cargos de onde centenas de brasileiros foram alijados ao arrepio da lei exigia-se o restabelecimento dos direitos de todos os brasileiros. A ditadura, entretanto, abriu uma cunha jurídica no texto legal – de tipo jabuticaba, ou seja, tipicamente “nacional” - para proteger aqueles que torturaram e mataram pessoas indefesas, sob a tutela do Estado, na maioria dos casos em próprios, prédios, do Estado, sob administração do Estado e por funcionários do Estado. Assim, a ditadura se autoanistiou. Pegou, desavergonhadamente, carona nas lutas populares, para colocar no ninho alheio o seu ovo de impunidade. A violência era uma política de Estado e aquele Estado se autoanistiou em 1979.
Mas, não precisava ser assim. A Constituinte de 1988 poderia ter mudado isso. Não o fez. Sob impacto da ação do chamado “Centrão”, o então “blocão” da direita brasileira que armou o controle dos trabalhos da Assembleia Constituinte, bloqueou toda iniciativa nesta direção. Assim, o regime híbrido, dito de transição, entre a ditadura civil-militar e a democracia procurava, e conseguia, colocar-se à margem, para além, do alcance da Justiça. Os autores desta façanha – ou seja, os atores componentes da AD/Aliança de Democrática oriundos da ARENA/PDS que abandonaram, na vigésima quinta hora, a ditadura para unir-se ao projeto encabeçado por Tancredo Neves (trazidos por José Sarney, cujo o colo foi o depositório do levante nacional contra o autoritarismo) – foram capazes de barrar quaisquer esforços de imposição de punições, afastamentos ou demissão dos torturadores.
Da mesma forma, a o véu da corrupção foi mantido sob as instituições nacionais, confirmando a prática nacional de usar as leis somente contra os inimigos. No pós-Ditadura não houve CPIs, inquéritos ou investigações sobre homens e instituições que violaram as leis, que se enriqueceram de forma ilícita ou daqueles que quebraram as normas constitucionais em 1964 e nos anos subsequentes.
Tratava-se, claramente, dos limites de uma transição “tutelada”, onde homens do “antigo regime” reinavam como os condutores da abertura democrática. As presidências José Sarney e Collor de Mello, tiveram, claramente, a função de evitar que a história fosse escrita a partir de uma clara denúncia dos atos bárbaros da ditadura. Vieram, então, homens da resistência, que lutaram pela democracia: Itamar Franco, FHC e Lula da Silva. Cada um deles, ao seu modo, buscou corrigir os aspectos mais dolorosos do “esquecimento” do passado recente. Mas, em nome da “unidade nacional” e da “conciliação” de todos os brasileiros decidiram-se pelo “esquecimento” da história do tempo presente no Brasil. Todos que exigiam transparência, Justiça e restabelecimento de direitos foram vistos como “encrenqueiros”, “revanchistas” e “radicais”.
Este era o “transformismo” brasileiro: sempre negar o passado, sempre pregar o esquecimento, sempre defender a “paz social” – claro, que negros escravos, índios, os mortos e torturados, desde a Revolta dos Alfaiates na Bahia, passando pelas terríveis punições da Revolta da Armada, até os torturados durante o Estado Novo (1937-1945) e, depois, pelo Regime de 1964, culminando nos tantos “Amarildos” ficariam esquecidos em nome da “paz” e da “reconciliação” social.
“Glória, à todas as lutas inglórias, da nossa História”! Assim, a história do Brasil se construiu em continuidades e esquecimentos.
Tratava-se de “superar o passado”, “esquecer uma página triste da nossa história”. Queimar os registros da escravidão, para apagar a “mancha” na histórias nacional.
No entanto, esforços foram feitos por familiares dos presos e desaparecidos do Regime de 1964, colocando em questão o “esquecimento”, e algumas entidades, entre elas “Tortura Nunca Mais”, insistiram em buscar toda a verdade. Em enterrar, não a história do tempo presente, mas, os corpos ainda insepultos da ditadura. Coube a Dilma Rousseff, ela mesmo uma militante anti-ditadura, dar o passo mais avançado, instalando uma Comissão da Verdade.
A Comissão, de mandato e poderes restritos, possui o mérito de abrir aqui e ali frestas no silêncio e recusar-se, pela primeira vez no Brasil, a “virar a página” de um livro que ainda não foi escrito. Os resultados, ainda que parciais, já são uma ruptura, uma novidade, na sociedade brasileira. De posse de tais resultados cabe, ainda uma vez, bater ás portas do STF e pedir que o silencio e o esquecimento sejam, desta vez, quebrados. Por que? Porque é história, nossa história, nosso tempo e nossa obrigação. Mas, há algo ainda maior a exigir o fim do silêncio: a história, entre nós, se repete!
A tortura, como no geral a violência, a truculência e arrogância cotidiana nas relações sociais no Brasil – em especial entre a dita “elite” (aqueles mesmos que não andam de ônibus ou de trem e metrô e para os quais tudo vai bem!) e a massa do povo -, não foi uma invenção do regime de 1964. No máximo tornou-se, desde então, uma política de Estado. Nem mesmo, como poderíamos pensar de forma indulgente, foi produto de um ensinamento técnico importado do exterior, seja de manuais franceses da primeira Guerra da Indochina ou da Guerra da Argélia, seja dos manuais norte-americanos utilizados urbi et orbi. Uma elite com mais de 400 anos de escravidão não precisa de lições de como torturador seu próprio povo. A novidade era, em 1964, a transformação da tortura em política de Estado, sua extensão e sua aplicação por objetivos específicos e contra grupos de militância política cujos membros, muitos, eram oriundos da própria elite do país.
Antes, na escravidão e na República Velha, a tortura era para escravos, pobres, migrantes – internos e externos – e marginais, no melhor sentido da expressão, todos aqueles estranhos à “boa sociedade”.
Foi o Estado Novo (1937-1945) que generalizou, ampliou, treinou e montou as bases da violência sistemática de Estado como política no Brasil. Órgãos públicos como Deops, Dops, Polícia Especial – foram, numa expressão corrente – “o ovo da serpente”, todos gestados no Estado Novo. Depois, na “democracia” estabelecida em 1945 e tolerada pelas elites até 1964 (malgrado os golpes “falhados” em 1954, 1955, 1956 e 1961) criaram-se centros policiais de tortura e morte, com os mesmos homens do Estado Novo: as “invernadas”, como de Olaria no Rio de Janeiro, as “escuderias” policiais – como a autodenominada “Le Cocq” -, as “Rotas” e os esquadrões que torturavam e matavam.
Depois de 1964, os esquadrões da morte vicejaram. Policiais treinados na torturado foram emprestados aos órgãos militares, delegados organizaram “repúblicas” próprias onde exerciam o direito de vida e morte sobre oponentes do regimes, criminosos de direito comum ou quaisquer outros que merecessem sua atenção.
Pelo menos em duas ocasiões, uma em 1963/1964, e a outra de quando da criação da chamada Operação OBAN, em 1969, policias, militares, grandes empresários e autoridades civis se uniram para montar e financiar centros de tortura no país. Muitos destes policiais, alguns com codinomes de “doutor” ou de “capitão” passaram-se, mais tarde, pura e simplesmente para o crime organizado, e lá estão, ainda hoje, impunemente.
A cadeia explicativa da tortura no Brasil (enquanto uma política sistemática) ainda hoje vigente une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão mantidos vivos na “democracia” de 1946-1964 (como os Dops), a simbiose polícia PMs militares e grandes empresários temerosos do “comunismo”, com autoridades civis, aos quais juntar-se-iam a polícia civil, os paramilitares e milicianos dos nossos dias.
Uma exemplar história sem rupturas
Deixamos passar, ignoramos, maltratamos todas as possibilidades, desde 1945, passando pela Constituição de 1988, até hoje, de criar formas jurídicas, e princípios políticos, que pudessem impedir a repetição do trauma histórico, fundante da pior vicio da vida política brasileira: a violência sistemática contra pobres. Pior de tudo: os políticos que fundaram e refundaram a “democracia” brasileira, como os liberais de 1945 e 1946 e os homens no poder em 1985 e 1988, preferiram um discurso, e uma construção da narrativa de nossa história, centrada no “esquecimento”, em “virar a página”, em “deixar no passado” e em “perdoar à todos” (como se vítimas e algozes fossem iguais) que enlutaram e envergonharam a história do tempo presente no Brasil.
No Brasil, nenhum lugar seria Nuremberg!
E no Brasil, ninguém seria acusado de tramar contra a liberdade, em organizar-se, em prédios e sob a cobertura do poder público, para sequestrar, torturar, matar, ocultar e, então, mais uma vez, repetir toda a história. Os homens que compuseram o Tribunal de Segurança Nacional, entre 1935 e 1945, não só não foram tocados ou “incomodados” em seus postos e nos seus salários, como ganharam cargos prestigiosos, na “democracia” de 1945-1964, na mais alta magistratura do pais. Muitos tornaram-se ministros do Supremo Tribunal Federal e de outras instâncias. Torturadores do Estado Novo tornaram-se delegados da polícia e do Dops depois de 1945 e foram eles que ajudaram e participaram da repressão depois de 1964. Suas vítimas foram esquecidas, os crimes ocultados. Trauma transforma em recalque e repetição.
Crimes mal-ditos, ocultados, como traumas guardados no fundo d´alma, se repetem. Os mesmos homens, “grandes” juristas como Francisco Campos e Carlos Medeiros, que apoiaram e fundaram o Estado Novo, tornaram-se os redatores dos Atos Institucionais liberticídas de 1964 e chefes de polícia de 1937, como Filinto Müller, assumiram funções de coordenação da repressão e de poder depois de 1964. O trauma mal-dito, oculto, transforma-se me repetição. Os torturados de 1935 e 1937 renasceram nos “Amarildos” de 2013.
Mas, nem então, foi dito basta! A nossa história não se repete como comédia, como quereria Marx. Pior, a história do Brasil gagueja o mesmo trauma: da escravidão, das Leis Celeradas da República Velha, dos porões do Estado Novo até o Regime de 1964 somos uma sucessão de gaguejos. Graciliano Ramos, Stuart Angel Jones, Amarildo: são todos um só!
Contudo, o pior gaguejo, o entalo da fala, o lapso da razão, deu-se em 2010. Portanto, em plena democracia da Nova República fundada em 1988. Neste ano, o Supremo Tribunal Federal, recusou a ação da OAB questionando a validade da Lei 6.683 e reafirmaram a anistia dos torturadores. A democracia brasileira, e suas sumidades jurídicas, tiveram uma chance única na proposta da OAB: romper com as continuidades, impor o respeito pela dignidade humana e a punição pelo pior de todos os crimes. O STF, então, recusou-se “a abrir velhas feridas”.
Indo além, a Justiça brasileira estendeu a anistia aos torturadores vindouros num futuro imprevisível: crimes em curso, como sequestro e ocultação de cadáveres, e, acima de tudo, os crimes posteriores à própria anistia – como o atentados contra os jovens do Riocentro, a OAB e o poder legislativo do Rio nos últimos anos da ditadura – foram prévia, e futuramente, anistiados. Na ocasião, a justiça encenou uma farsa, e em 2010 o STF tornou tal farsa numa tragédia permanente da vida brasileira.
Uma massa de policiais civis, militares e alcaguetes comemoraram sua liberdade de tipo “007”: a liberdade para matar!
Quando deu-se de forma debochada, evidente, pornográfica a tortura, morte e ocultação do pedreiro Amarildo, no Rio em 2013, estávamos repetindo, gaguejando, a nossa própria história. Os crimes cometidos contra as massas de escravos brasileiros, contra os trabalhadores migrantes, estrangeiros e nacionais, na República Velha, contra os oponentes do Estado Novo e, enfim, dos resistentes contra o regime de 1964 se repetiriam de forma sistemática e crescente. Agora, restabelecida formalmente a “democracia”, as vítimas não seriam mais grupos de advogados, militantes, professores e estudantes da classe média brasileira. Depois de 1988, com a anistia e a decisiva e forte ação do STF de não punir a tortura no Brasil, os trabalhadores, os “associais” e “marginais”, os pobres, negros, gays e índios seriam o alvo central de um poder que nunca prestou conta, em toda nossa história, de seus crimes. Mata-se sistematicamente. Impunemente. Abertamente. Cadáveres são ocultados por funcionários públicos, arrastados em praça pública por viaturas públicas; negros nus reencenam involuntariamente aquarelas de Debret, amarrados e espancados em postes públicos, por “justiceiros” e por homens que, com fardas e viaturas públicas, somam mais de cinco dezenas de mortes por “autos de resistência”, protegidos pelo Estado e amparados pela Justiça.
A decisão do STF, em 2010, como o general Figueiredo em 1979, será inesquecível. A decisão dos nossos juízes supremos anistiou previamente, por ausência de sentido de justiça e ignorância de nossa história, aqueles que matariam Amarildo e, agora, Dona Claudia Ferreira.
(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ
Dois artigos sobre o retorno da Marcha : o primeiro: sobre a afrontosa e obscura persistência do erro, do Jornal O Povo online e o segundo artigo: a carta aberta aos organizadores da Marcha, do jornalista Marcos Sacramento.
De O POVO:
Marcha da Família: a afrontosa e obscura persistência do erro
O cinquentenário do golpe de estado civil-militar de 1964 aproxima-se, e com ele a necessidade de reforçar o compromisso para com a democracia e de acentuar a natureza equivocada daquela iniciativa politicamente desastrada, para que nunca mais volte a se repetir no Brasil.
Infelizmente, setores antidemocráticos, persistentes, ao invés de fazerem autocrítica pelo incentivo dado àquele atentado contra a democracia, programam para hoje manifestações de louvação à ditadura e, impenitentemente, planejam incitamentos de caráter golpista contra as instituições democráticas reerguidas com tanto sacrifício.
O pretexto para a ação dos saudosistas da ditadura são os 50 anos da Marcha da Família com Deus pela Liberdade – um evento programado, naquele ano, por segmentos das classes abastadas e de alguns estratos da classe média tradicional da cidade de São Paulo, em favor da intervenção militar contra o governo constitucional de João Goulart. A Marcha foi articulada para tentar dar legitimidade à ação armada traiçoeira que se planejava contra as instituições, como se o desejo de um único segmento da sociedade pudesse ser imposto pela força à maioria dos cidadãos, expressa nas urnas.
Ora, nenhum segmento da sociedade tem legitimidade para rasgar uma Constituição oriunda do poder constituinte originário do povo, nem mesmo as Forças Armadas (no caso, foi uma facção militar), que são uma instituição subordinada ao poder eleito e que fazem juramento de respeitar a Constituição. A ideia de que a democracia só deve ser acatada enquanto o adversário não mexer nos meus interesses é a negação da própria democracia.
Evidentemente, era perfeitamente legítimo que segmentos civis descontentes procurassem demonstrar sua discordância às políticas do governo, inclusive, através de manifestações pacíficas. O inaceitável foi a opção pelo caminho ilegal e ilegítimo do golpe de estado para substituir o governo do qual discordavam, passando por cima da Constituição. No entanto, foi essa a concepção que estava na base da equivocada Marcha da Família com Deus pela Liberdade.
Mais repudiável ainda é a provocação dos antidemocratas renitentes, de hoje, que tentam reeditá-la, mesmo estando informados sobre as desgraças e os descaminhos trazidos pela ditadura.
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Por Marcos Sacramento Do Diário do Centro do Mundo:
Caros organizadores da Marcha da Família 2,
Embora falte pouco para o evento, vou cometer a ousadia, um tanto romântica, de sugerir uma mudança na pauta. Por que não marcham pela Cláudia da Silva Ferreira, a auxiliar de serviços gerais morta em um tiroteio no Rio de Janeiro e arrastada enquanto era socorrida pela viatura da PM?
A morte de Cláudia foi emblemática. Combinou pobreza, truculência policial, racismo e violência contra a mulher. O mais horrível é que se não fosse filmado o caso seria mais um a engrossar estatísticas da criminalidade.
Cláudia é mártir e merece que marchem por ela. Como vocês já estarão nas ruas, nada mais justo que homenageá-la. Você poderiam, também, marchar em homenagem às 16,9 mil mulheres assassinadas no país entre os anos de 2009 e 2011.
Marchem para denunciar o racismo endêmico que garante dois pretos ou pardos em cada três vítimas de homicídio, marchem contra a posição do país no topo do ranking de desigualdade social, marchem pelos aposentados que depois de trabalhar a vida inteira ainda precisam puxar um carro de picolé ou de pipoca para complementar a renda.
Mas por favor, não ponham as mazelas na conta do PT ou da Dilma. Isso é coisa de conversa de botequim, de gente mal informada. Você sabem muito bem que os problemas dos nosso país não foram causados só pelas duas letrinhas ou pelos dois últimos presidentes da república. Não sou petista, sequer voto no partido, só não tolero falatório sem fundamento.
Os problemas vêm de séculos, dos tempos da colonização, de uma formação econômica baseada na escravidão e de um sistema político feito por e para favorecer a elite. Tem causas múltiplas, não se restringe ao PT ou ao PSDB, ao DEM ou ao PSOL. Nosso empresariado tem uma boa parcela de responsabilidade ao financiar políticos em benefício próprio ou empreender visando apenas o lucro, sem responsabilidades sociais.
Por que não protestam contra o dono da Rede TV, que inaugurou uma mansão de 17 800 metros quadrados enquanto funcionários da emissora estavam com salários atrasados?
Ou então pelo caso de sonegação de impostos da Rede Globo, conhecem essa história? O “cidadão de bem” que vocês tanto defendem vai se horrorizar com ela.
Marchem pelas vítimas dos “justiceiros”. Ano passado, um caminhoneiro atropelou e matou uma criança de dois anos, aqui no Espírito Santo. Foi linchado e morto. João Querino de Paula era o nome dele. Marchem por ele, que não teve direito a ampla defesa e contraditório. Marchem pela menina atropelada, vítima da falta de infraestrutura das periferias, onde a combinação de vias sem sinalização de trânsito com a ausência de áreas de lazer contribui para ceifar vidas.
Marchem pelo tenente Leidson Acácio Alves Silva, morto com um tiro na cabeça durante patrulha no Rio.
Mas deixem os militares de fora do protesto. Vocês sabem que eles ficaram no poder entre 1964 e 1985, sentem até saudade dessa fase, mas talvez tenham se esquecido que esse regime ditatorial catalisou as desigualdades sociais e deixou a economia brasileira em frangalhos.
Enfim, há muitos motivos para marchar. Daria para encher parágrafos e mais parágrafos de motivos nobres para vocês irem às ruas. Deixem essa paranoia de que estamos a beira de uma ditadura comunista para os hang outs de Lobão e Olavo de Carvalho. Quem acredita nisso crê até no Walter Mercado, aquele do “ligue djá”, lembram?
Abandonem a logorreia beligerante à Reinaldo Azevedo (toc, toc, toc) e Rodrigo Constantino (vade retro) e combatam o bom combate, a busca por um país mais justo, sem desigualdades.
O filme “Gran Torino” pode ser uma boa lição para vocês. Ele conta a história de um veterano da Guerra da Coréia coberto de preconceitos e ressentimentos com orientais. Até que as circunstâncias o levam a salvar um vizinho asiático. Walt, personagem de Clint Eastwood, escolheu seguir o caminho do bem e combateu o bom combate.
Na madrugada do dia 1º de abril de 1964 (com o Golpe Militar em andamento desde o dia anterior), Rubens Paiva, deputado federal por São Paulo, fez um apelo ao vivo pela Rádio Nacional em defesa da legalidade do presidente João Goulart. O áudio está disponibilizado com exclusividade no Portal EBC.
Ouça o áudio histórico de Rubens Paiva no dia 1º de abril de 1964 na íntegra:
Durante a declaração, o deputado criticou abertamente o então governador de São Paulo, Ademar de Barros, um dos apoiadores do Golpe.
Militar diz que ordem partiu do gabinete do ministro. Deputado federal foi preso em casa em 20 de janeiro de 1971 e torturado até morrer. Seu corpo foi desenterrado dois anos após a morte. E nunca mais encontrado
JULIANA DAL PIVA
Rio - "Recebi a missão para resolver o problema, que não seria enterrar de novo. Procuramos até que se achou (o corpo), levou algum tempo. Foi um sufoco para achar (o corpo). Aí seguiu o destino normal”. Com essa frase, 43 anos depois, o coronel reformado do Exército Paulo Malhães admite pela primeira vez que foi um dos chefes da operação montada em 1973 para sumir com o corpo do então deputado federal Rubens Paiva, que estava enterrado na areia, na Praia do Recreio dos Bandeirantes.
Para localizar o corpo de Rubens Paiva, duas equipes trabalharam durante cerca de 15 dias na praia. Junto com Malhães, também participou da missão o coronel reformado José Brant Teixeira, parceiro de diversas outras operações. Além dele, os sargentos Jairo de Canaan Cony e Iracy Pedro Interaminense Corrêa. Apenas Cony está falecido.
O oficial admite que sabia de quem era o corpo procurado. “Eu podia negar, dizer que não sabia, mas eu sabia quem era sim. Não sabia por que tinha morrido, nem quem matou. Mas sabia que ele era um deputado federal, que era correio de alguém”, conta.
Aos 76 anos, um dos mais experientes oficiais do Centro de Informações do Exército (CIE), o militar contou ao DIA que recebeu a missão do próprio gabinete do ministro do Exército em 1973 e que viu colegas graduados como o coronel Freddie Perdigão Pereira recusarem o trabalho: “É um troço que você tem que pensar duas vezes antes de fazer. Ele não quis”.
Malhães diz que estava investigando uma guerrilha no sul do Brasil durante a prisão do deputado. Só ao receber a missão, é que foi informado de que o corpo tinha sido inicialmente enterrado em 1971 no Alto da Boa Vista. Mas, na ocasião, os militares temiam que obras na Avenida Edson Passos acabassem revelando o cadáver. Então, o corpo foi retirado do local no mesmo ano e novamente enterrado na Praia do Recreio dos Bandeirantes. Em 1973, o coronel conta que o CIE resolveu dar uma “solução final”.
“A preocupação foi aquela velha briga. Foi o negócio de enterrar. Eles enterram o cara, tiraram cara do lugar que estava enterrado que era no Alto da Boa Vista porque ia passar na beira de um estrada. Aí, tiraram o cara e levaram para o Recreio e enterraram na areia. Só que a Polícia do Exército (PE) quase toda viu isso. Esse translado”, explica.
De acordo com Malhães, O Exército avaliava que a a operação era necessária porque alguns agentes do DOI-Codi ameaçavam tornar o caso público. “O Leãozinho viu, não sei mais quem viu também, mas o troço veio a tona. O Leão dizia que enterraram na praia”, afirma.
Malhães só faz mistério sobre o destino dado após a localização do cadáver. “Pode ser que tenha ido para o mar. Pode ser que tenha ido para um rio”, completa. Em outubro de 1974, o militar recebeu a Medalha do Pacificador com Palma.
Assessor revela identidade de testemunha
Leão era o coronel reformado Ronald José Mota Batista de Leão, ex-chefe do Pelotão de Investigações Criminais (PIC). Em fevereiro, a Comissão Nacional da Verdade apresentou um relatório parcial sobre o caso e informou que recebeu uma carta de Leão informando que tinha vista Paiva ser recebido por dois agentes do Centro de Informações do Exército: Rubens Paim Sampaio e Freddie Perdigão Pereira.
Na divulgação do relatório, a Comissão Nacional da Verdade também apontou o nome de dois agentes que torturaram e mataram o deputado federal Rubens Paiva. De acordo com depoimentos de dois militares prestados a CNV, os autores do crime seriam o então tenente Antônio Fernando Hughes de Carvalho e o comandante do DOI, o também major José Antônio Nogueira Belham.
As informações foram obtidas por meio de um depoimento prestado por um militar que a comissão identificou apenas como “agente Y”. Um assessor da comissão, entretanto, confirmou ao DIA que a testemunha se trata do coronel da reserva Armando Avólio Filho, ex-integrante do Pelotão de Investigações Criminais da Polícia do Exército (PIC-PE).
Há um ano, em fevereiro de 2012, a CNV apresentou as primeiras conclusões de sua investigação até aquele momento. Na ocasião foram apresentados documentos que comprovavam que Rubens Paiva havia sido transferido para o DOI-Codi.
Em janeiro deste ano a Comissão da Verdade do Rio tornou público um depoimento do general reformado Raymundo Ronaldo Campos. Ele confessou que Exército montou uma farsa ao sustentar, na época, que Paiva teria sido resgatado por companheiros “terroristas”. A versão oficial era de que , ao ser transportado por agentes do DOI no Alto da Boa Vista, os militares entraram em confronto com um grupo de esquerda, quando Paiva havia conseguido fugir. Raymundo, era capitão, e conduzia o veículo supostamente atacado. Também estavam no carro os sargentos e irmãos Jacy e Jurandir Ochsendorf.
Rubens Paiva foi preso em casa no dia 20 de janeiro de 1971 por agentes do Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa). Horas depois, o deputado foi entregue ao DOI-Codi, no Rio, onde foi torturado até a morte. Deputado federal, eleito pelo PTB, mesmo partido de João Goulart, Rubens Paiva foi cassado em 1964, logo após o golpe militar. Após um período no exílio, retorna ao Brasil, mantendo suas atividades empresariais. Sua morte se deu em 21 de janeiro de 1971 e uma farsa foi montada para ocultar o crime.
Seu corpo nunca foi encontrado.
Do O Globo
No domingo, O GLOBO publicou, sob o compromisso de sigilo de fonte, o relato de Malhães sobre a operação que desenterrou o corpo de Rubens Paiva no Recreio dos Bandeirantes e o lançou ao mar, em 1973. Porém, o próprio coronel decidiu assumir publicamente o seu papel no episódio. Ele disse que o corpo foi enterrado inicialmente no Alto de Boa Vista e, posteriormente, levado para o Recreio, de onde o retirou, por ordens do gabinete do ministro do Exército (na época, Orlando Geisel), porque havia risco de vazamento da sua localização dentro da própria repressão.
O coronel reformado Paulo Malhães, de 76 anos, um dos mais atuantes agentes do Centro de Informações do Exército (CIE) nos anos de chumbo, finalmente deu as respostas perseguidas há décadas. Ele também confirmou ter desenterrado e sumido com o corpo do ex-deputado Rubens Paiva, morto sob torturas em janeiro de 1971, e explicou como a repressão fazia para apagar os vestígios de suas vítimas.
Um dos trechos marcantes do depoimento é o método de desaparecimento. Para evitar o risco de identificação, as arcadas dentárias e os dedos das mãos eram retirados. Em seguida, o corpo era embalado em saco impermeável e jogado no rio, com pedras de peso calculado para evitar que descesse ao fundo ou flutuasse. Além disso, o ventre da vítima era cortado para impedir que o corpo inchasse e emergisse. Assim, seguiria o curso do rio até desaparecer. Sobre Rubens Paiva, ao GLOBO, Malhães disse que lançou o corpo no mar. À Comissão da Verdade do Rio (CEV), contou que o destino do ex-deputado foi o mesmo rio da Região Serrana onde foram jogados outros desaparecidos políticos.
Rubens Paiva ao lado da família. Ele foi morto e enterrado no Alto da Boa Vista Foto: Arquivo