Dom Vincenzo Paglia, recordou publicamente o testemunho luminoso do arcebispo mártir, assassinado durante a celebração eucarística pelos esquadrões da morte ligados ao governo militar, porque denunciava a violência do regime.
No altar a camisa azul manchada de sangue
“Com a missa de hoje”, disse Dom Paglia, “se cumpriu aquela celebração que foi interrompida pelo sangue” e a das exéquias igualmente marcadas pelo massacre perpetrado pelo Exército contra os fiéis. Vermelho, cor do martírio. No grande altar montado para a cerimônia foi exposta, junto com outras relíquias, a camisa azul de Dom Romero, manchada de sangue. A mensagem foi clara: a morte não venceu.
Papa: Dom Romero soube guiar, defender e proteger seu rebanho
Cidade do Vaticano (RV) - O Papa Francisco enviou uma carta, neste sábado (23/05), ao Arcebispo de San Salvador, Dom José Luis Escobar Alas, Presidente da Conferência Episcopal de El Salvador, pela beatificação de Dom Oscar Arnulfo Romero.
“A beatificação de Dom Romero, que foi pastor desta querida arquidiocese, é um motivo de grande alegria para os salvadorenhos e para aqueles que se alegram com o exemplo dos melhores filhos da Igreja. Dom Romero, que construiu a paz com a força do amor, deu testemunho da fé com a sua vida entregue até o fim”, frisa o Papa na nota.
“O Senhor nunca abandona o seu povo nas dificuldades e se mostra solícito com as suas necessidades. Ele vê a opressão, ouve os gritos de seus filhos e vem em seu auxílio para libertá-los da opressão e levá-los para uma nova terra, fértil e espaçosa, onde jorra leite e mel. Como um dia escolheu Moisés para que, em seu nome, guiasse o seu povo, Ele continua suscitando pastores segundo o seu coração, que apascentem com ciência e prudência o seu rebanho.”
“Neste bonito país centro-americano, banhado pelo Oceano Pacífico, o Senhor concedeu à sua Igreja um bispo zeloso que, amando a Deus e servindo aos irmãos, tornou-se imagem de Cristo Bom Pastor. Em tempos difíceis de convivência, Dom Romero soube guiar, defender e proteger o seu rebanho, permanecendo fiel ao Evangelho e em comunhão com toda a Igreja. O seu ministério se destacou pela atenção especial aos pobres e marginalizados. No momento de sua morte, enquanto celebrava o Santo Sacrifício de amor e reconciliação, recebeu a graça de identificar-se plenamente com Aquele que deu a vida por suas ovelhas”, sublinha Francisco na missiva.
“Neste dia de festa para a Nação salvadorenha e também para os países irmãos latino-americanos, damos graças a Deus porque concedeu ao bispo mártir a capacidade de ver e ouvir o sofrimento de seu povo. Ele foi modelando o coração do povo para que no nome de Deus, o orientasse e iluminasse, fazendo de sua obra um exercício pleno da caridade cristã
Vaticano \ Eventos
Oscar Romero é beato. Grande multidão em San Salvador
Multidão participa da missa de beatificação de Dom Romero - EPA
San Salvador (RV) - Dom Oscar Arnulfo Romero é beato. Mais de 200 mil pessoas, dentre elas vários chefes de Estado, participaram neste sábado (23/05), em San Salvador, capital salvadorenha, da cerimônia de beatificação do arcebispo mártir, assassinado por ódio à fé, em 24 de março de 1980.
“Um homem de fé profunda e esperança inquebrantável”, disse o Prefeito da Congregação das Causas dos Santos, Cardeal Angelo Amato, que presidiu a missa de beatificação. A festa litúrgica de Dom Romero será em 24 de março, dia de sua morte.
A opção pelos pobres feita por Romero era evangélica, não ideológica
“O sangue do arcebispo mártir, derramado em 24 de março de 1980, se misturou no altar com o sangue redentor de Cristo. Homem virtuoso, sacerdote bom e bispo sábio. Amava Jesus, Maria, a Igreja e o seu povo. A sua opção pelos pobres não era ideológica, mas evangélica. Romero permanece ainda hoje conforto para os desfavorecidos e marginalizados da terra, luz das nações e sal da terra”, frisou o purpurado.
O martírio de Romero não foi uma improvisação
O Cardeal Amato recordou que o “martírio de Romero não foi uma improvisação, mas o ápice de um caminho espiritual. Com o seu tudo e com o meu nada faremos muito”, escreveu Dom Romero em seu diário quando era seminarista. O purpurado lembrou que uma reviravolta em sua vida de pastor manso e quase tímido aconteceu com a morte de Padre Rutilio Grande, em 12 de março de 1977, jesuíta salvadorenho, pároco dos campesinos oprimidos e marginalizados. “A partir daquele momento, ele recebeu do Espírito Santo o dom da fortaleza que o tornou cada vez mais explícito na defesa do povo oprimido e dos sacerdotes perseguidos”, disse ainda o Cardeal Amato.
Romero não é símbolo de divisão, mas de paz e fraternidade
“A sua caridade se estendia também aos perseguidores para os quais pregava a conversão ao bem. Portanto, ele não é símbolo de divisão, mas de paz, concórdia e fraternidade”, concluiu o purpurado.
Grande alegria entre os mais de 200 mil fiéis
Incontentável a alegria de milhares de fiéis reunidos na Praça do Divino Salvador do Mundo, em San Salvador. O postulador da causa de beatificação, Dom Vincenzo Paglia, recordou publicamente o testemunho luminoso do arcebispo mártir, assassinado durante a celebração eucarística pelos esquadrões da morte ligados ao governo militar, porque denunciava a violência do regime.
No altar a camisa azul manchada de sangue
“Com a missa de hoje”, disse Dom Paglia, “se cumpriu aquela celebração que foi interrompida pelo sangue” e a das exéquias igualmente marcadas pelo massacre perpetrado pelo Exército contra os fiéis. Vermelho, cor do martírio. No grande altar montado para a cerimônia foi exposta, junto com outras relíquias, a camisa azul de Dom Romero, manchada de sangue. A mensagem foi clara: a morte não venceu.
Por Carlos Dada *
Penduradas na parede do meu escritório estão cópias de duas das várias ameaças de morte recebidas por Óscar Arnulfo Romero Galdámez, o monsenhor Romero, durante seus três anos de arcebispado em São Salvador, capital de El Salvador, entre 1977 e 1980. Uma delas, assinada pela “União Guerreira Branca” e dirigida ao “Assim Chamado Arcebispo Romero” o condena à morte “assim como temos matado a tantos padres comunistas”. A outra, assinada por A Falange, é de maio de 1979 e traz uma enorme suástica, “símbolo do inimigo acérrimo do comunismo” além de um texto no qual avisam que ele “está à cabeça de um grupo de clérigos que em qualquer momento receberão uns 30 projéteis na cara e no peito”.

Monsenhor Romero foi assassinado por um franco-atirador enquanto celebrava a missa, em 24 de março de 1980. A Comissão da Verdade de El Salvador estabeleceu que os autores intelectuais do crime foram o major Roberto D’Aubuisson, um militar reformado que fora treinado na Escola das Américas; e Mario Molina, filho do ex-presidente e general Arturo Molina. O assassinato encerrou a última possibilidade de evitar uma guerra civil; logo El Salvador foi tomado por um conflito armado que durou doze anos e deixou 100 mil mortos.
Como os assassinos de Romero eram gente de extrema direita, e sobretudo porque o major D’Aubuisson – fundador dos Esquadrões da Morte, grupos paramilitares cujo objetivo era eliminar qualquer suspeito de ser comunista ou apoiar à guerrilha de esquerda – se converteria depois em um renomado político, fundador e líder histórico do partido conservador Arena e em presidente da Assembleia Legislativa, o crime caiu na impunidade. A importância de Romero foi minimizada durante as duas décadas em que a Arena governou El Salvador. No resto do mundo, no entanto, parece que a figura de Romero seguiu crescendo.
Hoje em dia, a barbárie do assassinato é tão evidente que até o atual presidente da Arena reconheceu o monsenhor Romero como líder espiritual do país, e o seu candidato a prefeito de São Salvador incluiu entre as promessas de campanha erigir uma praça em homenagem ao arcebispo. Eles ainda estão longe de assumir também a responsabilidade do seu líder histórico neste crime (e em muitos outros) mas o reconhecimento da importância de Romero é um grande sintoma que vem de mãos dadas com o reconhecimento oficial do seu martírio pelo Papa Francisco. O Vaticano já anunciou que o beatificará o mais rápido possível; provavelmente ainda este ano.
À semelhança do fundador da Igreja
Sei que este é, ou deveria ser, um dia de celebração para todos os membros da comunidade católica salvadorenha. Mas falar da sua beatificação ou sua canonização desde uma perspectiva puramente católica me parece muito pouco. O martírio de Romero deve ser uma festa ecumênica na qual participem católicos, evangélicos, judeus, muçulmanos, agnósticos e ateus. (Conheço algumas pessoas que não creem em Deus mas acreditam, sim, no monsenhor Romero e rezam para ele. Por mais incongruente que pareça, não chega a ser anormal aqui na região. No México há mais devotos da virgem de Guadalupe do que católicos.)
O reconhecimento do martírio de Romero é uma reparação histórica
Trata-se de uma festa de todos porque, para além do aspecto religioso, o reconhecimento do martírio de Romero é uma reparação histórica: o estabelecimento inequívoco de que, na sua defesa dos pobres e indefesos, e na sua denúncia das graves violações de direitos humanos, ele agiu inspirado na doutrina social da Igreja e não no marxismo, como acusaram os seus inimigos para justificar o ódio que os levou a assassina-lo.
Romero se manteve apegado aos princípios mais elementares do cristianismo e do humanismo. Mediante a sua defesa dos mais desprotegidos, mediante o seu sacrifício pelos mais pobres, agiu à semelhança do fundador da sua igreja.
Isso se converteu em uma ameaça para todos aqueles que pretendiam manter os seus privilégios às custas da eliminação sistemática de qualquer um que os pusesse em risco. “Se me matarem”, ele disse, “eu ressuscitarei no povo salvadorenho”.
Entre os seus inimigos estavam não somente a ultradireita e os chefes militares daqueles anos. Havia também outro grupo, muito mais obscuro e do qual pouco se fala: vários bispos e sacerdotes que, em uma alta traição aos princípios cristãos e humanos mais elementares, bendisseram literalmente a repressão, conspiraram contra Romero, levaram a conspiração até Roma e se calaram diante do assassinato de seu próprio irmão. Abandonaram o seu arcebispo.
Se me matarem, eu ressuscitarei no povo salvadorenho.
A História é lenta para colocar tudo em seu lugar. Mas sempre termina colocando. Enquanto o monsenhor Romero é objeto de reconhecimento universal, os então todo-poderosos da cúpula militar, os coroneis Guillermo García, Eugenio Vides Casanova e Nicolás Carranza – que protegeram D’Aubuisson e o liberaram quando foi capturado com o plano da operação para assassinar o monsenhor – foram condenados nos Estados Unidos por crime de lesa humanidade.
O mártir da teologia da libertação, Dom Oscar Romero, e alguns seminaristas em Playa el Majahual, El Salvador, em 1978.
Vinte militares, entre eles quase toda a cúpula da geração militar conhecida “La Tandona”, esperam ainda um julgamento em Madri pelo assassinato de outros padres, incluindo os seis jesuítas massacrados pelo Batalhão Atlacatl em 1989. Devido a uma ordem de captura internacional, eles não podem sair de El Salvador, único país no qual agora estão (haja paradoxo!) em segurança.
Em 2010, o ex-presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter revisou o diário de seus anos na Casa Branca e fez uma observação, trinta anos depois, que considero pertinente citar: “Quando cheguei à presidência, a maior parte dos regimes na América do Sul e Central eram ditaduras militares.
Historicamente, os presidentes estadunidenses, tanto Democratas como Republicanos, apoiaram os ditadores e se opuseram energicamente – às vezes com a ajuda de tropas estadunidenses – a qualquer levantamento popular indígena ou de minorias que ameaçassem o statu quo. As razões para isso eram óbvias. Muitos desses líderes haviam sido treinados em West Point ou Annapolis, falavam inglês, eram familiarizados com o nosso sistema de livre comércio e estavam dispostos a formar sociedades lucrativas com corporações estadunidenses que tinham interesse nos recursos naturais desses países.
Estes incluíam bananas, abacaxi, bauxita, ferro, estanho, madeiras exóticas. Era politicamente conveniente taxar os indígenas ou outros grupos de comunistas, ou simplesmente revolucionários. Os sacerdotes católicos que apoiavam os cidadãos pobres e subjugados eram condenados pelo Vaticano como praticantes da teologia da libertação…”
A História tarda, mas chega.
Era politicamente conveniente taxar os indígenas ou outros grupos de comunistas, ou simplesmente revolucionários.
Hoje contamos com suficientes provas testemunhais e documentais contra D’Aubuisson, incluindo as confissões de seu chefe de segurança, de seu chofer e uma testemunha incidental. Mas não foi D’Aubuisson o único responsável pelo crime. Escondidos à sua sombra permaneceram sempre os outros dois mandantes do assassinato: o Capitão Eduardo Ávila Ávila, que se suicidou anos depois, atormentado pelos seus incontáveis crimes; e Mario Molina, um piloto civil que segue vivo, filho do ex-presidente Arturo Armando Molina.
Escondidos também estão aqueles que financiaram essa e outras operações dos chamados esquadrões da morte: empresários milionários, poderosos, impunes. Que se aproveitaram do seu dinheiro, do seu poder e da impunidade para dispor da vida de muitos outros seres humanos. Nenhum deles pagou pelos seus crimes.
Mas sempre chega o julgamento da História. Por isso é tão importante a declaração do Papa Francisco.
Em maio de 1977, Romero realizou a missa de exéquias para o sacerdote Alfonso Navarro, assassinado poucos dias antes por um esquadrão da morte autodenominado Unión Guerrera Blanca (o mesmo autor de uma das ameaças que guardo pregadas na parede).
Naquele dia se cumpriam dois meses do assassinato do seu amigo pessoal, o padre Rutilio Grande. Ali Romero disse: “Se não se pode crer na Igreja, se estão confundido padres com guerrilheiros; se estão confundindo a nossa missão evangelizadora com marxismo e comunismo, isso não é justo, irmãos. Mas se a calúnia chegar a se propagar, perguntemos então às outras forças que restam no mundo: e vocês, o que fazem?”.
A sua própria Igreja tardou trinta e cinco anos a responder. Agora Francisco o fez.