As igrejas, no ritmo do Evangelho do cego de nascença (Jo 9, 1-41) que católicos e católicas escutam nas missas deste domingo (26) começam a 'ver o país'.
O país do povo que resiste ao jugo do turbocapitalismo. (MTST)
Por Mauro Lopes
A opção preferencial pelos ricos e a política de terra arrasada contra os pobres do governo Temer está levando as igrejas católica e luterana para um confronto que começa a lembrar a dicotomia existente no período da ditadura militar no país. É impressionante a sequência de pronunciamentos de algumas das mais expressivas lideranças das duas igrejas que foi claramente pautada pela agenda dos movimentos sociais: o primeiro foi no Dia Internacional da Mulher, depois houve uma onda impulsionada pelo Dia Nacional de Paralisação e Luta em 15 de março e o momento culminante aconteceu na quinta-feira (23) com uma dura nota da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) contra a reforma da Previdência Social, considerando-a uma escolha “pelo caminho da exclusão social” (aqui).
O fato é que a emenda constitucional que restringe os gastos públicos, a aprovação da terceirização selvagem das relações de trabalho e a tentativa de liquidação da Previdência Social compõem o centro do governo nascido com o golpe contra uma presidente eleita e rompem os dois grandes pilares do pacto social brasileiro, a CLT e a Constituição de 1988.
O primeiro pronunciamento, no Dia Internacional da Mulher, foi da Conferência dos Religiosos do Brasil, que reúne mais de 35 mil religiosos e religiosas de congregações –mulheres, em sua imensa maioria. Sua presidente, irmã Maria Inês Vieira Ribeiro, distribuiu uma carta na qual se expressou “com o coração entristecido por, mais uma vez, ver os interesses de poucos solaparem os direitos de muitos, especialmente das crianças e jovens mais pobres e vulneráveis. Literalmente querem nos tirar as migalhas.” A freira convocou a mobilização de todos os religiosos e religiosas: “Ou nós nos mobilizamos e defendemos o direito das nossas instituições e dos pobres, ou mais uma vez pagaremos a conta dos desmandos palacianos”.
No Dia de Lutas, em 15 de março, quando mais de um milhão de pessoas foram às ruas em todo o país, os franciscanos e os jesuítas divulgaram notas contundentes, enquanto comunidades de base da Igreja Católica acorreram às manifestações.
Frei Fidêncio Vanboemmel, OFM, superior da Província Franciscana da Imaculada Conceição do Brasil, que reúne mais de 400 franciscanos nos Estados de SP, Rio, ES, PR e SC, lançou uma nota logo na manhã de quarta (15) na qual anunciou um “posicionamento frontalmente contrário à Reforma da Previdência Social”. O posicionamento, segundo Vanboemmel, é “baseado na realidade que nossos confrades encontram nos ambientes onde vivem e convivem e no compromisso com a Justiça, exigência irrenunciável do Evangelho”. Ele qualificou a emenda da Previdência de “ato de covardia com os mais pobres”.
A Companhia de Jesus, ordem a que pertence o Papa Francisco e que reúne mais de 16 mil jesuítas ao redor do mundo, emitiu um comunicado em nome de todos os seus líderes que estavam reunidos no dia 15 em São Leopoldo (RS) afirmou olhar com “esperança de que mobilizações como a de hoje ajudem a sensibilizar os nossos governantes e congressistas a rever seus posicionamentos”.
No mesmo dia, o Cimi (Conselho Indigenista Missionário) distribuiu um parecer de sua assessoria jurídica apontando a inconstitucionalidade e perversidade dos efeitos da reforma contra os povos originários do país (aqui).
A seguir, os luteranos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) pronunciaram-se numa carta que historia os posicionamentos corajosos de seus pastores no último ano e “admoesta as autoridades diante do quadro brasileiro com a Palavra do Senhor: Executai o direito e a justiça e livrai o oprimido das mãos do opressor; não oprimais ao estrangeiro, nem ao órfão, nem à viúva; não façais violência, nem derrameis sangue inocente neste lugar (Jeremias 22.3)”.
Dois dias depois, em 17 de março, Dom Francisco Biasin, bispo da diocese de Volta Redonda (RJ) publicou uma nota confrontando diretamente no novo eixo de poder do país: “É escandalosa a ascensão ao poder de pessoas de duvidosa reputação, sob suspeita de corrupcão ou em adiantado processo de investigação, para ocupar cargos de alta responsabilidade no Legislativo, no Judiciário e no Executivo.”
Não é coincidência a harmonia de movimentos dos católicos e luteranos no país simultaneamente a uma aproximação sem precedentes entre as duas Igrejas liderada pelo Papa Francisco e pelo presidente da Federação Luterana Mundial, bispo Munib Younan –sob oposição cerrada do conservadorismo católico.
O reitor da PUC-MG e bispo auxiliar de Belo Horizonte, Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, numa entrevista ao site italiano Settimana News advertiu: “Os brasileiros precisamos ter a consciência da gravidade do momento político, social, econômico e moral que vivemos nos últimos meses.”
A seguir, no dia 20 (segunda-feira), os 11 bispos da Província Eclesiástica de Belo Horizonte, liderados por dom Walmor Oliveira de Azevedo, arcebispo Belo Horizonte divulgaram um manifesto na defesa da Constituição de 1988, considerando a reforma da Previdência “inaceitável” e acusando frontalmente o governo e a visão neoliberal da economia: “Como afirma o Papa Francisco: a economia que promove a exclusão e a desigualdade social é comprometida com a morte: ‘Essa economia mata!’ (Evangelho da Alegria 53)”. Eles foram secundados, no dia seguinte, por uma nota nos mesmos termos emitida por Dom José Luiz Majella , arcebispo da Arquidiocese de Pouso Alegre, também de Minas Gerais.
Enquanto muitos bispos católicos começam a sair da letargia, é eloquente o silêncio dos arcebispos do Rio de Janeiro, dom Orani Tempesta, cuja Arquidiocese tornou-se um bastião dos “contras” católicos, de São Paulo, dom Odilo Pedro Scherer, que foi o candidato derrotado da Cúria romana contra o Papa Francisco em 20013.
A Igreja volta a ver
É eloquente que o movimento das duas igrejas aconteça no contexto da celebração do Tempo da Quaresma pelos católicos, que escutam neste domingo nas missas todo o capítulo 9 do Evangelho de João, num episódio conhecido como “a cura do cego de nascença” por Jesus. Depois de Jesus haver aplicado uma pasta de saliva e terra nos olhos do cedo, mandou-o lavar-se numa piscina do Templo, em Jerusalém: “O cego foi, lavou-se e voltou vendo claro” (v. 7).
Há nada menos que nove verbos gregos relacionados à visão. O verbo escolhido na frase, βλέπω (blepó) tem um significado denso: é um ver psíquico, ver com discernimento, ver alguma coisa física com percepção espiritual. Em outras palavras: ver com os olhos do coração. Foi assim que o homem cego “voltou vendo claro”. Passou a ver tudo para além da obviedade superficial, do olhar submetido à dimensão coisificada.
Ver- βλέπω, ver com o coração é uma maneira de encarar a vida e as relações. A este jeito de ver opõe-se outro, aquele que é a marca do capitalismo que tudo vê “com os olhos da planilha”. Ver com planilhas é tornar tudo número, coisa, contabilidade, meta, objetivo, dinheiro. É como o governo Temer vê o mundo e as relações, e este é o espírito que preside suas reformas.
Ao meditar sobre o Evangelho deste domingo o franciscano frei Gustavo Medella vincula esta qualidade do ver ao movimento que a Igreja Católica e a Igreja Luterana realizam: “Olhando a realidade que vivemos em nosso país, percebemos que enxergar demais, talvez um pouco além da tela das grandes emissoras de TV, também incomoda. O melhor é continuarmos cegos diante de todas as manobras que atendem a poucos privilegiados e subtraem do pobre o pouco que ele possui para viver. Nesta direção caminham propostas como a Reforma da Previdência, a flexibilização das leis trabalhistas e tantas outras. Neste contexto, pecado é contestar, equívoco é levantar a voz para gritar em favor da justiça. Como seguidores de Cristo, assim como o Mestre, temos o dever de incomodar, de apresentar um caminho diferente, mostrando que o respeito pelas pessoas e a promoção da vida são sempre o melhor caminho a seguir.”
outraspalavras.net
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