Sanitarista detona estudo do CFM sobre o Mais Médicos: “Erros grosseiros levam a conclusões falsas; é cientificamente furado”
médico sanitarista Hêider Pinto
por Conceição Lemes
Saúde/Medicina é uma área do Jornalismo em que não dá para no dia seguinte simplesmente dizermos: “sinto muito, nós erramos”.
Em função de uma informação equivocada, podemos jogar o leitor numa roubada.
Levá-lo a adotar um tratamento que não funciona e lhe tirar a chance de cura, por exemplo.
Não dá para fazer Jornalismo em Saúde/Medicina na base do “eu acho” nem se fiar cegamente no dr. Google.
Há reportagens, artigos, de primeiríssima linha.
Mas há também de informes publicitários disfarçados de informação séria, passando por profissionais desatualizados a charlatães, vendendo soluções miraculosas.
Daí ser vital em toda reportagem de Saúde/Medicina eu, como jornalista, ouvir profissionais atualizados, competentes e éticos, para que a informação ao leitor seja baseada nas mais modernas evidências científicas.
Pois bem, a edição nº759 do Jornal Medicina, do Conselho Federal de Medicina (CFM), tem como uma das chamadas de capa: Estudo mostra que Mais Médicos não privilegia áreas vulneráveis.
O artigo ocupa a página 5 inteira (na íntegra, ao final).
Algumas informações se destacam, a começar pelo título, subtítulo e intertítulo:
No decorrer do texto, o jornal do CFM chega a outras conclusões. Uma delas é esta: (o negrito é nosso):
Segundo constatação do Conselho Federal de Medicina (CFM), que mapeou a localização dos mais de 17 mil bolsistas que atuavam até abril deste ano, 11.591 intercambistas, o equivalente a 68% do total, atuam fora dos locais mais carentes e mais vulneráveis.
Que o CFM é contra o Programa Mais Médicos, desde o seu início em 2013, não é novidade.
O ex-presidente Roberto Luiz d’Ávila (2010-2014) e o atual Carlos Vital Tavares Corrêa Lima (empossado em outubro de 2014) sempre fizeram críticas contundentes ao Mais Médicos.
A diferença é que, agora, neste artigo as críticas são baseadas num estudo feito pelo próprio CFM.
“Ao contrário do diz a matéria do CFM, os médicos do Mais Médicos estão, sim, atendendo às pessoas que mais precisam”, rechaça o médico sanitarista Hêider Pinto, coordenador do Programano governo Dilma.
“O CFM usou métodos inadequados de análise, por isso chegou a conclusões falsas à luz da ciência”, afirma.
“Será que a vontade de criticar o Mais Médicos é tanta que cegou os editores a ponto de levar o CFM, uma entidade respeitada, a divulgar um estudo com erros grosseiros?, vai mais fundo o sanitarista.
Diante dessas divergências, esta repórter perguntou ao CFM:
1) Quem fez a pesquisa?
2) Pelo que eu noto a pesquisa trabalha com números absolutos. Por que não trabalha com proporções?
3) Em consequência, estudo considera os municípios de forma homogênea. É como se a cidade do Rio de Janeiro não tivesse a Rocinha, por exemplo. Por que os municípios foram considerados de forma homogênea?
A íntegra da resposta do CFM, via assessoria de imprensa, está abaixo. Atentem ao último parágrafo; o negrito é nosso.
A reportagem “70% não estão em áreas carentes”, publicada na edição nº 259 do Jornal Medicina, foi elaborada pela equipe de imprensa do Conselho Federal de Medicina (CFM), que considerou informações obtidas por meio da Lei de Acesso à Informação junto ao Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde do Ministério da Saúde.Informamos que as informações prestadas pelo Ministério não traziam o estabelecimento de atuação dos profissionais, motivo pelo qual não foram analisadas as alocações segundo bairro ou região administrativa dentro de um determinado município.Vale ressaltar que a referida reportagem não tem caráter científico e teve como foco apenas dimensionar a distribuição geográfica dos 17.044 intercambistas do Programa Mais Médicos em atuação no País até abril de 2016.
Considerando que o CFM está falando para médicos e a medicina hoje é baseada em evidências, o mínimo que se poderia esperar que o tal estudo adotasse critérios científicos.
Em nenhum momento do texto foi dito que não era científico. Logo, supõe-se que fosse científico.
Em consequência, muitos médicos desavisados que leram o tal artigo devem ter arrumado mais um motivo para bater no Mais Médicos.
Só que, agora, com base num “estudo” com erros metodológicos.
Se fosse num jornal, revista ou site/blog para a população em geral, certamente choveriam críticas de médicos, detonando a falta de embasamento científico.
E eles estariam cobertos de razão. O fato de ser para público leigo não é habeas corpus para eu, Conceição Lemes, ou qualquer outro jornalista, fazer ou publicar estudo com conclusões meia-boca, sensacionalistas, apenas para destaque na mídia.
Numa publicação médica, fazer isso é um absurdo. Num veículo de um conselho de ética, simplesmente imperdoável.
“A análise do CFM comete dois erros relativamente primários em termos de pesquisa, que nem estudantes de Medicina cometeriam hoje em dia”, atenta Hêider Pinto. “Eles aprendem as noções básicas para fazer uma pesquisa geralmente no início do curso, na disciplina de iniciação científica.”
O primeiro erro é trabalhar com números absolutos em vez de proporções.
Tomemos este exemplo para facilitar a compreensão.
Município A: É pobre, tem 10 mil habitantes e recebeu 2 profissionais do Mais Médicos.
Município B: Tem 1 milhão de habitantes, melhores indicadores sociais e recebeu 20 médicos do Programa.
Qual dessas populações foi priorizada pelo Mais Médicos? A do município A ou do B?
Se você cravou Município B, porque em números absolutos recebeu maior quantidade de médicos, lamentamos informar: a sua resposta está errada.
A resposta certa é Município A.
– Como?! — alguns já questionaram.
É preciso considerar o número de habitantes por médico.
O Município A recebeu 1 médico para cada 5 mil habitantes.
Já o Município B, 1 médico para cada 50 mil habitantes.
Ou seja:
1) Proporcionalmente o município pobre recebeu mais profissionais do Mais Médicos que o com melhores condições sociais.
2) A população mais pobre foi priorizada 10 vezes mais do que a do município mais rico.
3) Se o município mais pobre tivesse a mesma população que o mais rico teria de ter recebido 200 médicos em vez de 20, que é quanto o caso que demos como exemplo recebeu.
– Ah, mas as cidades mais populosas do Brasil receberam Mais Médicos em números totais do que os municípios menores…
Isso é verdade.
A razão é simples. As 200 maiores cidades do Brasil, por exemplo, concentram metade da população, ou seja, a mesma quantidade de habitantes que todos os outros 5.379 municípios.
“O segundo erro óbvio da pesquisa do CFM é considerar os municípios de forma homogênea”, atenta Hêider Pinto.
A cidade do Rio de Janeiro é um ótimo exemplo para se verificar o equívoco.
A análise do CFM desconsidera que a média dos indicadores socioeconômicos do município esconde brutal diferença entre a situação da população da Zona Sul, a da Rocinha e da Zona Oeste, por exemplo.
Embora a média dos indicadores socioeconômicos da cidade do Rio de Janeiro seja alta para os padrões brasileiros, os da Zona Oeste e Rocinha estão muito abaixo da média do Brasil.
Se Rocinha e Zona Oeste fossem cidades, seriam municípios muito pobres.
Assim, considerar a cidade do Rio de Janeiro como homogênea e, portanto, com adequada quantidade de médicos e bons indicadores de saúde, leva à conclusão equivocada de que a Rocinha e a Zona Oeste têm também bons indicadores de saúde, médicos sobrando e, portanto, não precisam do Mais Médicos.
– Se for aplicada corretamente a proporção, qual seria o resultado correto se forem usados os mesmos números adotados pelo CFM ? – alguns avançarão.
Segundo o IBGE, a população estimada do Brasil para hoje, 20 de novembro de 2016, é de 206,7 milhões de habitantes e o Programa Mais Médicos tem cerca de 18.200 médicos.
Se considerarmos o país como um todo, teremos um médico do Mais Médicos para cada 11 mil habitantes.
Nas capitais e regiões metropolitanas, essa proporção é de um médico do Mais Médicos para 17 mil habitantes.
Já nos municípios com mais de 20% da população em extrema pobreza é de um médico do Mais Médicos para 6 mil habitantes.
Ou seja, enquanto para quem mora numa capital há um médico do Mais Médicos para cada 17 mil habitantes, em uma cidade pobre há três médicos para essas mesmas 17 mil pessoas.
O mesmo acontece quando avaliamos o Brasil por região.
Se no Sudeste há um médico do Programa para cada 17 mil habitantes, no Nordeste há um médico para cada 8 mil.
Ou seja, a população do Nordeste tem proporcionalmente o dobro de médicos do Programa que a do Sudeste.
É por isso que, mesmo o Sudeste tendo 80 milhões de habitantes e o Nordeste 54 milhões, o Nordeste, em números absolutos, tem mais médicos do Mais Médicos do que o Sudeste.
O doutor Hêider pergunta: Você acharia correto pegar, por exemplo, os indicadores econômicos de Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Manaus e Porto Alegre, e, ao constatar que estão muito acima da média nacional, concluir que as populações dessas cidades seriam as que menos precisam de médicos?
Se você respondeu sim, este é outro erro.
“É claro que os municípios mais pobres têm proporcionalmente mais gente que precisa de médicos”, ele esclarece. “Por isso, o Programa Mais Médicos garante três vezes mais profissionais nessas localidades.”
Mas isso não significa que o Programa devesse desprezar comunidades inteiras nessas cidades com baixos indicadores sociais e que não contam com atendimento médico.
Em português claro: nos bairros mais ricos do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Manaus e Porto Alegre já há médicos brasileiros atuando muito antes do Mais Médicos. E eles realmente não precisam do Mais Médicos.
Porém, há nas periferias mais pobres dessas mesmas cidades uma imensa população que ficava sem atendimento.
Mas, com o Mais Médicos essa população até então desassistida passou também a ter direito concreto ao atendimento básico de saúde.
“Por tudo isso, me espanta uma instituição respeitada como o CFM publicar uma pesquisa com erros tão primários como esses”, volta à carga o sanitarista Hêider Pinto. “É cientificamente furada.”
Considerando que os resultados do “estudo” não representam a verdade em termos científicos, estamos diante conclusões enganosas, para dizer o mínimo.
Alguns médicos mais rigorosos, desconhecendo a origem, talvez até carimbassem o “estudo” de “fajuto”, “ fraude”.
E, agora, CFM?
Sinceramente, eu, Conceição Lemes, como jornalista e cidadã, acho que fazer proselitismo político, em cima de um estudo mentiroso e de uma questão de saúde pública tão crucial a muitos milhões de brasileiros, é inconcebível. Ultrapassa a crítica. Fere a ética humana. Chega a ser criminoso.
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