Lucas Simões
O Tempo
2016 é uma espécie de Novo Mundo a ser domado pela fome dos próximos Bolsonaros, Le Pens, Wilders, Trumps. É a colonização feita por 4G, organizada por robôs de Facebook, mas ainda carregada pelos valores seculares da Igreja que queimou hereges, da família patriarcal e conservadora que se modernizou, se institucionalizou, continuou em campo disputando o campeonato ano a ano.
Esse é o ano em que a era da informação free e da conectividade global não impediram o nacionalismo doente de prosperar à moda antiga, como erva daninha regada em nosso quintal. E nos fez mais inimigos uns dos outros, transformando imigrantes em criminosos; transfigurando diferenças, sexualidades e culturas em velhos pecados.
Estamos munidos de smartphones com acesso ao oráculo do Google, mas ainda somos a moral que um dia olhou os índios, suas redes, nudez e antropofagia, e pintou a imagem do diabo por cima, invocando a ausência da alma sagrada para justificar a “guerra justa” que dizimou os gentios da América. Isso faz toda a diferença. E não só.
Porque é essa guerra desonesta e, mais uma vez rotulada como justa, que teremos à frente, na expressão macabra de Donald Trump presente pelos próximos quatro anos. O retrato colonizador do século XXI está na face do novo presidente norte-americano, alguém muito além da tríade xenófoba, misógina e racista.
Trump se tornou referência do caos por saber atrair o público usando a própria insanidade estampada não apenas em sociopatas, mas também na imagética de pessoas comuns, de bem, que não aguentam mais conjunturas políticas cíclicas e só querem chegar em casa, esticar as pernas e ter um estímulo para ver o circo pegar fogo em frente à TV. “Agora, que se fodam vocês todos”, dizemos com uma cerveja em mãos, brindando com a engrenagem fortificada de uma direita que aproveitou a brecha da esquerda desiludida em ruínas para assumir as rédeas, dizendo que já podemos apagar a luz e fazer a oração protetora da noite em paz.
“Eles que se resolvam”. É o recado confuso de uma massa ignorada, recorrentemente invisibilizada e academizada por dissertações subjetivas sobre a condição social. Não adianta culpar o povo que há tempos não pode mais ser enquadrado como o mero pobre manipulável do século XX.
Pedir que 2016 acabe soa como a ingênua última cartada de quem espera virar a página, tomar um porre anestésico e começar a escrever uma nova história sem sequelas pretéritas. É sempre bom lembrar que a ressaca é passageira, mas somos resultado incondicional do passado, estejamos calados ou revoltados.
Nesses tempos em que o fascismo vem disfarçado de retomada Dos valores morais que cultuam o ódio cego em nome da família Adão e Eva, não basta consumir orgânicos, denunciar o racismo, abrir mão de privilégios, exaltar a parada LGBT e o feminismo, contar com a informação pulverizada dando conta da democracia, investir na economia solidária e continuar nadando na desonestidade do argumento de que a massa não sabe votar.
A ignorância anda de mãos dadas com a soberba intelectual, a mesma que costuma deixar o quebra-cabeça da história incompleto, sem ouvir o outro lado, o principal lado: indispensável para uma equação que não se resume a combater o opressor e salvar o oprimido.
Precisamos enxergar que o conservadorismo moderno não joga mais no time certo de ditadores e tampouco precisa de tanques de guerra para se impor. Nossa principal doença contemporânea é delatar o mal alheio e negar a percepção de que os perfis fakes que apontamos o dedo podem ser o reflexo do nosso próprio ego enrustido no espelho do banheiro, toda manhã.
Sim, está acontecendo. De verdade. Embora a ficção pareça mais palatável como forma de sobrevivência e a gente insista em se distanciar ou se assustar com o que não consegue mais chamar de realidade. Pois comece a treinar. Como acertou Michael Moore antes do furacão chegar: “primeiro preciso que você aceite a realidade, e, depois, talvez, só talvez, a gente encontre uma saída para essa encrenca”.
O mundo já acabou outras vezes. Resta saber como usaremos nossa expertise ou seja lá o que for para desarmar as bombas plantadas por nós e entre nós – não apenas contra nós. A pergunta intransigente é: como ouviremos o desconhecido, que enchemos a boca para chamar de “povo”, sem cometer os mesmos erros fatais de quem já esteve deste lado? Este, que se julga pertencente à esperança e à capacidade de mudança.
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