Brasil de Fato
O adeus a Bento Rodrigues
O dia 5 de novembro de 2015 ficou marcado na história como o maior desastre ambiental do país
Era cerca de 16 horas quando uma movimentação estranha começou a ser percebida pelos moradores de Bento Rodrigues, pequeno distrito da cidade de Mariana, em Minas Gerais. Entre os cerca de 600 habitantes, os gritos rapidamente se espalharam. "A barragem estourou!", diziam alguns moradores, que durante a correria alertavam sobre a feroz lama de rejeitos que estava prestes a atingir o bairro, que surgiu por volta do século XVIII, tornando-se uma das primeiras unidades mineradoras no estado.
Acostumados com o ambiente e rotina da mineração, bastaram alguns segundos para que os moradores entendessem que a barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco (um empreendimento conjunto da Vale e da BHP Billiton), havia se rompido. Mesmo os que se recusaram a acreditar de imediato no que acontecia, por não ouvirem nenhum aviso oficial ou alerta sonoro, não demoraram muito em perceber a gravidade da situação.
Panelas no fogo, roupas, documentos, fotografias, carros, animais… Tudo precisou ser deixado para trás para se chegar às partes mais altas do vilarejo. Em meio à desolação e busca por notícias sobre o paradeiro de amigos, parentes e vizinhos, houve quem conseguisse parar e, entre lágrimas, observar a enxurrada de lama destruir ruas, casas, escola e posto de saúde.
Já não era mais possível enxergar o que até pouco antes era Bento Rodrigues, a não ser por alguns carros e telhados que se deslocavam pelo distrito, flutuando sem rumo nesse rio de barro. Das 200 casas, pouco mais de 20 ficaram em pé. Entre moradores e trabalhadores da mineradora, morreram 19 pessoas.
Em breves minutos, tragados pela lama, afundaram e se perderam objetos pessoais, plantações, lares, memórias e vidas: foi o adeus a Bento Rodrigues.
O antes e o depois de Bento Rodrigues
Os sons em Bento Rodrigues aos finais de semana eram tradicionais: crianças brincando pelas ruas, pequenos bate-papos com vizinhos e amigos em frente de casa, festas e reuniões familiares. Com tudo debaixo da lama, o dia 6 de novembro era para ser o mais silencioso do pequeno povoado mineiro. Mas, dessa vez, o ambiente de Bento Rodrigues foi preenchido pelo barulho de helicópteros e grupos de resgate, que circulavam pelo vilarejo à procura de sobreviventes.
Segundo o relatório "Antes fosse mais leve a carga: Avaliação dos aspectos econômicos, políticos e sociais do desastre da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG)", do Grupo Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS), a lama de rejeito causou uma "destruição socioambiental por 663 km nos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce até chegar na foz do último, onde adentrou 80 km2 ao mar".
O distrito de Bento Rodrigues, hoje totalmente destruído, foi apenas o primeiro local atingido e, portanto, uma das paradas da reportagem para o especial Marcas da Lama - Um ano de resistência na Bacia do Rio Doce.
"Ali era a casa de Paulo César, ali era a casa de Dona Geralda, ali o terreno do meu sogro, mais ali o bar da Sandra, aqui era a casa de Joaquim". É assim que Joana D'arc Norberto, 43 anos, inicia a conversa com a equipe do Brasil de Fato, enquanto percorre o que restou de Bento Rodrigues, quase um ano depois do ocorrido.
Mesmo que muitos imóveis ainda estejam marcados pela destruição da lama ou tenham desaparecido completamente do mapa, os mais de vinte anos morando no distrito garantiram à dona-de-casa minuciosidade na memória. Os locais exatos das casas dos amigos ainda são lembrados.
Foram poucos os pertences recuperados por Joana e sua família. Embora sua casa tenha sido uma das poucas que não foram atingidas diretamente pela enxurrada, por se localizar na parte alta do povoado, se passaram dias até que ela e os vizinhos pudessem voltar ao local, e muitos pertences foram saqueados.
"A gente sempre pedia pra entrar lá, pra tirar alguma coisa e poder levar – pra quando Deus abençoar, e a gente tiver uma nova casa –, poder levar. A gente queria conseguir tirar alguma coisa, mas não podia entrar. Hoje, não tem mais nada, porque os outros saquearam tudo", lamenta.
Mãe de seis filhos, Joana caminha pela antiga casa lembrando como ela foi um dia (ver vídeo). "Toda vez que eu volto aqui é uma tristeza", diz, garantindo que, mesmo assim, faz questão de retornar sempre que possível a Bento Rodrigues. Ela ainda tem esperança de resgatar algum pertence, alguma memória.
Quando Joana se mudou para Bento Rodrigues, com pouco mais de 20 anos, ela estava grávida do primeiro filho. A vida no pequeno povoado logo se tornou a vida que sempre quis. Das lembranças mais felizes, se destacam os passeios a cavalo. O trajeto do distrito até o centro de Mariana durava cerca de duas horas de carroça, quando se podia admirar a paisagem, da qual ela lembra com gosto.
Hoje, ela conta que a rotina é totalmente outra. A imposição do abandono da vida rural, devido ao rompimento da barragem, fez com que Joana e a família ficassem por mais de um mês morando em um hotel. Em dezembro de 2015, se mudaram para um pequeno sítio em Mariana, onde, aos poucos, eles têm conseguido recuperar parte da antiga rotina. "Algumas coisas a gente conseguiu recuperar, mas outras não", diz, lembrando-se dos cavalos, mulas, galinhas e plantações que foram embora com a lama.
Com a decisão de que Bento Rodrigues deixará de existir – tomada em uma assembleia realizada em setembro –, uma comunidade será construída pela Samarco em um novo terreno. "Eles estão mexendo aqui e nós estamos ficando para trás. Isso que eles estão mexendo, eu acho que deve ser para nos dar as nossas casas. E todos nós ainda estamos esperando as nossas casas", desabafa a matriarca, enquanto passeia pelo que sobrou do povoado, vendo vários caminhões transitarem (ver capítulo 2).
Em nota, a Samarco informou que já iniciou o processo de realocação e reconstrução das comunidades afetadas em Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Gesteira. "As famílias já escolheram os terrenos onde os novos distritos serão erguidos. As obras serão entregues até 2019", afirma a mineradora.
Quando questionada sobre o que deveria ser feito em relação a Bento, Joana é categórica: "eu acho que deveria deixar para ser uma cidade histórica, preservar a memória de todo mundo".
As lembranças de infância de Manuel Marcos Muniz, mais conhecido como Marquinhos, são de Bento Rodrigues. Os ensinamentos da roça vieram dos pais, que se mudaram para o pequeno vilarejo quando ele ainda era um menino. A rotina da família era guiada pelas criações de animais e plantações ao redor da casa.
As transformações do povoado mineiro ocorreram ao compasso das mudanças em sua vida. Início dos estudos, primeira namorada, casamento, o nascimento da única filha. Aposentado e com 52 anos, hoje, a cada lembrança vasculhada na memória, um relato sobre Bento. “As raízes estavam todas ali”, diz.
Para acomodar a vida familiar, o trabalho da esposa e os estudos da filha, no início dos anos 2000, a rotina passou a ser dividida entre Bento Rodrigues e o centro do município de Mariana, onde também construiu uma casa. As criações de galinhas, porcos e a lavoura permaneceram no pequeno distrito e ficavam aos cuidados de um de seus irmãos. Já aos finais de semana, o próprio Marquinhos se responsabilizava pelo roçado e aproveitava a vida no campo com a família.
Em Bento Rodrigues, Marquinhos tinha três propriedades. A casa dos pais, como uma herança dividida entre ele e sete irmãos, e dois terrenos. Uma vez aposentado e com a filha crescida, o plano era voltar para o vilarejo, no qual pretendia passar o resto da vida. Ver a destruição após a passagem da lama foi “um sonho interrompido”, lamenta. Uma marca para a vida inteira; assim ele qualifica o momento em que soube que Bento não existiria mais (ver vídeo).
Felizmente, conta ele, os registros dessa rotina ficaram preservados nas fotografias guardadas na casa em Mariana. Nem tudo foi perdido na lama.
Foram 29 anos e dez meses. Este foi o tempo dedicado por Manuel Marcos ao trabalho na Samarco, na qual foi operador-mantenedor de bombas no mineroduto. Passado um ano do rompimento, a sua posição é de crítica à mineradora.
Segundo ele, pelo fato de possuir uma residência em Mariana, a empresa não o reconhece como atingido direto de Bento Rodrigues. Ainda que Marquinhos receba o cartão de auxílio financeiro, que tem sido pago mensalmente, o aposentado não foi enquadrado no grupo de moradores atingidos que receberam R$ 20 mil de indenização antecipada por morarem na comunidade.
De acordo com a Samarco, ele foi classificado no grupo de pessoas que apenas tinha terreno ou imóvel, ou seja, não moravam em Bento Rodrigues. Estes proprietários receberam o valor de R$ 10 mil cada como uma indenização antecipada. Marquinhos se recusou a ser enquadrado neste grupo por não concordar com o entendimento da empresa, uma vez que mantinha uma vida regular no distrito.
Para além disso, o terreno herdado dos pais foi desapropriado pelo governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel (PT), que, em setembro deste ano, assinou uma requisição administrativa de terrenos no distrito de Bento Rodrigues para que a mineradora construa o dique S4.
À reportagem, a Samarco informou que a construção do dique S4 foi autorizada por decreto do governo de Minas Gerais, que, "na prática, estabelece a requisição administrativa dos terrenos, que afeta a posse, mas não a propriedade. Caberá à Samarco repassar ao Estado as verbas para a indenização pelo uso da área, de acordo com os procedimentos a serem definidos pelo governo".
Na ocasião, o Movimento do Atingidos por Barragens (MAB) se posicionou dizendo que a ação do governo estadual apenas "simboliza um Estado refém dos interesses privados das mineradoras transnacionais".
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