segunda-feira, 22 de junho de 2015

Boff foi uma das inspirações para a encíclica do Papa



Encíclica do Papa vai reforçar visão
mais integral de ecologia, diz Leonardo Boff

Uma das inspirações para encíclica "verde", teólogo fala sobre futuro da "casa comum"

Jornal do Brasil

O teólogo e ecólogo Leonardo Boff, colunista do JB, foi uma das vozes que ajudaram a montar a encíclica do papa Francisco dedicada ao meio ambiente, divulgada nesta quinta-feira (18). Em entrevista por e-mail, ele falou sobre como seus textos e contribuições chegaram até Bergoglio, "uma das maiores lideranças mundiais, seja no campo religioso, seja no campo político". Comentou ainda sobre a forma como o papa tem lidado com questões delicadas e também sobre as respostas de potências mundiais às ameaças a "nossa única casa comum".

O Papa Francisco estabeleceu uma "relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta" na encíclica Laudato Si [Louvado seja] - Sobre o cuidado da casa comum, divulgada nesta quinta-feira (18) e publicada em português pelas Edições Paulinas. Em janeiro, durante visita às Filipinas, Francisco demonstrou preocupação com a ecologia, afirmando a "necessidade de ver, com os olhos da fé, a beleza do plano de salvação de Deus, a ligação entre o ambiente natural e a dignidade da pessoa humana".

Para Boff, "o escândalo da pobreza mundial num mundo de altíssimo consumo, a devastação dos ecossistemas e as ameaças que pesam sobre a casa comum, descuidada e maltratada" preocupam constantemente o papa Francisco.

Confira a entrevista com Leonardo Boff na íntegra:

JORNAL DO BRASIL - JB: Como foram suas conversas com o Papa durante a elaboração da encíclica? Houve um encontro pessoalmente?

Leonardo Boff - É com certo constrangimento que respondo às perguntas desta entrevista, para não dar a impressão de uma importância de minha parte que não tenho. Se me perguntarem: você ajudou o Papa a escrever a encíclica?  Devo dizer: não. Apenas ofereci tijolos com os quais, se ele quisesse, poderia construir alguma coisa. Nunca tive um encontro pessoal com o Papa Francisco, somente indireto. Primeiramente através de uma amiga comum, Clélia Luro, para a qual ele telefonava de Roma todos os domingos por volta das 10h.

Através dela ele mandava os recados a mim e me fazia as solicitações de textos. Primeiramente, me pediu um texto que o ex-Presidente da Assembléia da ONU (gestão 2008-2009), Miguel d'Escoto, e eu havíamos elaborado para ser o marco teórico da nova ONU que está sendo excogitada: "Declaración Universal del Bien Común de la Madre Tierra y de la Humanidad". O texto é urdido dentro do novo paradigma segundo o qual todas as coisas são interconectadas, formando um incomensurável sistema em evolução. Neste texto usávamos muito o termo "casa comum" para referir-nos à Terra.

Depois, quando o Papa esteve no Brasil novamente, por intermédia de uma pessoa, Dom Demétrio Valentini, bispo de Jales-SP, mandei entregar o livro que havia escrito em função de sua vinda ao Brasil: "Francisco de Assis - Francisco de Roma: uma nova primavera para Igreja"(Editora Mar de Ideias, Rio). Além disso, pedi para entregar em espanhol "Francisco de Assis: ternura e vigor" (Vozes), no qual abordava largamente a questão ecológica, pois ele o havia solicitado pela Clélia Luro. Junto mandei em espanhol a "Carta da Terra", com recomendações minhas para que a utilizasse, pois me parecia o mais importante documento sobre ecologia no início do século XXI, fruto de uma vasta consulta de mais de duzentas mil pessoas de todas as orientações, sob a direção de Michail Gorbachev; eu havia participado da redação e havia conseguido incluir o tema do cuidado, "o laço de parentesco com toda a vida" e a espiritualidade.

Escrevi ao Papa que a Carta da Terra afirmava a interdependência entre todos os seres e o valor intrínseco de cada um, contra o antropocentrismo tradicional. Outra vez enviei através do bispo de Altamira no Xingu, Dom Erwin Kräutler, que havia em 2014 ganhado o prêmio Nobel alternativo da Paz pelo Parlamento sueco e que passando por Roma o Papa o convidou para redigir algo sobre a Amazônia. Por ele mandei em espanhol o meu livro mais completo sobre ecologia, "Ecologia: grito da Terra-grito dos pobres" (Trotta), expressão assumida pela encíclica. Enviei o outro igualmente em espanhol "Cuidar la Tierra: hacia una ética universal", publicado no México (Dabar).

O principal foi um livreto com um DVD sobre as quatro ecologias, com belíssimas imagens onde abordo também a ecologia integral. Outros materiais foram enviados ao embaixador argentino na Santa, Sé Eduardo Valdés, amigo de Bergoglio, pois enviando diretamente ao Vaticano nunca se tem a certeza de que as coisas  cheguem às mãos do Papa. Através dele enviei um livro que considerava importante "Proteger la Tierra - cuidar la vida: como evitar el fin del mundo" (Dabar Mexico).

Através do mesmo embaixador enviei vários artigos em espanhol sobre questões ecológicas que saem no JB Online, onde colaboro já há vários anos. Lembro-me que escrevi num bilhete para ser entregue ao Papa, no qual havia uma citação da Carta da Terra que achava que devia constar na encíclica, como de fato consta no número 207: "Como nunca antes na história o destino comum nos obriga a buscar um novo começo... que nossa época possa ser lembrada pelo despertar de uma nova reverência face à vida, pelo compromisso firme de alcançar a sustentabilidade, pela intensificação da luta pela justiça e pela paz e pela alegre celebração da vida" (palavras finais da Carta da Terra).

Nem eu nem o embaixador recebemos qualquer retorno. Qual não foi a surpresa do embaixador Eduardo Valdes quando, no dia anterior à publicação da encíclica, isto é, no dia 17 de junho, o Monsenhor Fernandez do Vaticano se comunicou com ele para lhe agradecer todos os materiais meus que ele havia encaminhado ao Papa Francisco. Para terminar: fiz o que o Papa Francisco me pedia, sem qualquer pretensão de influenciá-lo. A encíclica é dele e ele é seu autor. Comumente, o Papa trabalha com um corpo de peritos que o servem e com outros especialistas convidados. O que posso dizer é que sinto ressonâncias de meus pensamentos e  modos de dizer na encíclica que não são apenas meus, mas de quantos trabalham a partir do novo paradigma de uma ecologia integral. Mas fui apenas um simples servo, como se diz no Evangelho.

JB: O que o senhor poderia dizer a respeito dele e da forma como está conduzindo questões delicadas na Igreja?

Considero o Papa Francisco uma das maiores lideranças mundiais, seja no campo religioso seja no campo político. No campo religioso, usou da ternura de São Francisco para tratar as pessoas, particularmente os mais pobres. Mas tratou com a firmeza de um jesuíta aqueles que macularam a imagem da Igreja cristã com abusos sexuais e crimes financeiros. Neste ponto, ele foi duro e agiu como um médico. Limpou o Vaticano e talvez tenha muito que limpar ainda.

O fato mais visível é que ele trouxe uma primavera à Igreja depois de tempos de volta à grande e velha disciplina. Os cristãos sentem a Igreja como um lar espiritual e não como um pesadelo a ser suportado com desalento. Politicamente ele tem promovido o diálogo entre os povos, aproximado Cuba aos Estados Unidos e vice-versa e pregado insistentemente o encontro como forma de superar preconceitos e fundamentalismos e criar espaço para a paz. E o faz com tanta doçura e convicção que dificilmente alguém deixa de dar-lhe atenção.

O escândalo da pobreza mundial num mundo de altíssimo consumo, a devastação dos ecossistemas e as ameaças que pesam sobre a casa comum, descuidada e maltratada, o preocupam constantemente, pois pressente situações de traços apocalípticos, se nada de sério fizermos para conter o aquecimento global. Creio que a encíclica irá reforçar uma visão mais ampla, sistêmica, integral de ecologia, inserindo especialmente a questão social, mental e profunda. Espero que a discussão agora seja mais enriquecida e não apenas reduzida ao ambientalismo.

JB: O senhor tem visto avanços significativos nesta questão entre as principais potências mundiais?

Há uma inconsciência irresponsável e culposa acerca das ameaças que pesam sobre nosso futuro
Vejo poucos avanços porque os interesses econômicos se sobrepõem à preocupação pela salvaguarda da única casa comum que temos para morar. Há uma inconsciência irresponsável e culposa acerca das ameaças que pesam sobre nosso futuro.

Se o que a comunidade científica mundial diz fosse ouvido, outros seriam os resultados dos encontros organizados pela ONU sobre o aquecimento global e a crescente erosão da biodiversidade que, segundo o conhecido biólogo Edward O. Wilson, oscila entre 27-100 mil espécies que desaparecem definitivamente da evolução, a cada ano.

Vivemos tempos de Noé, onde as pessoas comem e bebem, casam e dão-se a casar sem se dar conta do anúncio de um tsunami. Desta vez será diferente. Não haverá uma Arca de Noé que salve alguns e deixa perecer os demais. Todos poderemos ter o mesmo destino trágico. O Papa fala destas questões, mas como homem de fé, lembra que Deus, é o "o Senhor amante da vida", texto que usa mais de uma vez e que concede à esperança a última palavra e não ao desastre.

JB: Como o senhor vê o futuro da Terra? Há esperança?

Meu sentimento oscila entre a catástrofe e a crise. Como estudioso da questão já há mais de 30 anos e lendo os últimos dados científicos tenho a impressão de que nossa vez já chegou. Fizemos tantas e tão graves agressões  contra a mãe Terra que já não merecemos mais viver sobre ela. Ademais, de ano em ano são mais de três mil espécies que chegam ao seu clímax e naturalmente desaparecem do processo da evolução. Não poderá ter chegado a nossa vez?

Por outro lado, como homem de fé, sei que o desígnio do Criador, inscrito nas circunvoluções do processo cosmogênico, pode levar a nossa pequena nave ao porto mesmo tendo ventos contrários. Mesmo que ocorra uma catástrofe que liquide a vida visível de nosso planeta (só 5% é visível, o resto, os 95% são invisíveis como as bactérias, vírus e fungos) acredito que a última palavra a terá a vida. Como não sei. Faço uma aposta positiva, creio e espero.



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