Numa cidade-símbolo dos impasses da região, soja e gado, avançando sobre a mata. Extrativismo sustentável. Agricultores que resistem. As ONGs e os povos da floresta
Reportagem de Andrew Blackwell, na revista Piseagrama, parceira editorial de Outras Palavras
A viagem ao Brasil teria como motivo a carne bovina: a pecuária tem sido um dos principais motores do desmatamento na Amazônia. Acharíamos algum fazendeiro amistoso que nos daria informações privilegiadas sobre como a floresta virgem estava se transformando em hambúrgueres. Mas logo tomamos conhecimento da soja. Os agricultores estavam nivelando grandes extensões de floresta para produzir ração para animais e vender para a Europa.
Abandonamos o mote da pecuária e escolhemos Santarém como destino, cidade com um porto controverso, construído pela multinacional Cargill para exportar soja da Amazônia. Em Santarém, veríamos tudo: a selva imaculada, a floresta sendo devastada, os campos de soja e o porto, cruel punhal do agronegócio fincado no coração verde pulsante do mundo. Pelo menos, essa era a minha expectativa.
Então, como uma punição, Adam apareceu em meu escritório usando uma viseira verde e sacudindo um monte de papéis: o governo brasileiro acabava de anunciar um recorde de baixas taxas de desmatamento em 2010, as menores taxas de desmatamento já registradas. Filhos da mãe! Desde quando? Eu sempre achei que o desmatamento era como a morte ou os impostos. Ouvia sobre a destruição inexorável das florestas tropicais desde criança. E agora vinham me dizer que não era assim? Mas não importava, já tínhamos nossas passagens.
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Cidade alegre e agradável, com 250 mil habitantes, Santarém ocupa um canto amplo da margem onde o Amazonas encontra o seu poderoso afluente Tapajós. Saímos do hotel em busca de Gil, nosso guia e tradutor. Embora ele tivesse sido muito bem recomendado, eu estava um pouco apreensivo. Nos últimos dias, ele tinha me enviado emails erráticos que culminaram numa encomenda abrupta de eletrônicos. “Você pode me trazer um iPod Touch 4G de 32GB?”, ele escreveu. “Minha namorada está grávida e, se você me trouxer dois, batizo nosso filho com o seu nome”.
Como descrever Gil Serique? Um filho da floresta, nascido na selva às margens do Tapajós, numa vila sem eletricidade ou água corrente, acessível apenas por barco. “O paraíso!”, ele dizia. Agora era um guia poliglota, tradutor e cicerone para jornalistas visitantes e, acima de tudo, um típico vagabundo de praia da Amazônia, praticando wind-surfsempre que podia, lançando-se ao rio após simplesmente atravessar a rua de casa.
Gil assediava passantes com folhetos para promover seus serviços de guia, travava amizades com operadores de cruzeiros que passavam por Santarém, atualizava obsessivamente seu blog e seu status no Facebook (eram 3.103 amigos na última contagem). Sua casa era um ponto de encontro para qualquer um que se interessasse na floresta, na destruição da floresta, ou em surf, bebidas e conversa.
Nossa conversa finalmente tocou no desmatamento e na soja. A Amazônia é uma fronteira sob influência sucessiva de novas corridas. Nos últimos cem anos ela presenciou os ciclos da borracha e da madeira e a corrida do ouro. Agora, eram a soja e a bauxita. E a exploração se dava de muitas formas. Na opinião de Gil, no entanto, ela tinha um outro lado. “Consegui um trabalho muito mais interessante depois do início da devastação da Amazônia”, ele disse. “Normalmente, estaria guiando amantes da natureza, mas como o interesse pela preservação da Amazônia aumenta, trabalho cada vez mais com pessoas como vocês, que querem ver os problemas da natureza.”
A BR-163 começa em Cuiabá, no extremo sul do Mato Grosso, e segue para o norte por mais de mil quilômetros, mergulhando diretamente na Amazônia. Construída no início da década de 1970, ainda está praticamente sem pavimentação nos trechos da selva e, durante a estação das chuvas, torna-se um rio de lama. Caminhões atolam em suas lendárias trilhas e buracos, e chegam a avançar menos de 100 quilômetros por dia. A BR-163 é sem dúvida uma das mais deploráveis estradas do mundo. No entanto, ela tem a peculiaridade de ser uma das duas únicas estradas que atravessam a Amazônia de norte a sul e, como tal, é foco não apenas do comércio mas também de muita ansiedade ambiental. Como Gil tinha mencionado, estradas trazem desmatamento. Você só derruba as florestas que pode alcançar, e só transforma selvas em fazendas se tem uma forma de escoar a carne ou a soja.
Uma vez que há uma estrada – mesmo sendo uma porcaria de estrada como essa – a civilização se forma ao longo dela, empurrando as bordas da floresta. Imagens de satélite mostram que, até o ponto em que atinge o Rio Tapajós, a BR-163 está produzindo terra devastada em cortes densos e perpendiculares, cada um com uma dúzia de quilômetros de comprimento, como os dentes de um ancinho gigante.
A estrada termina, finalmente, em Santarém, no extremo oeste do cais. E é exatamente aqui, e não a uma centena de metros do local onde a BR-163 fica sem continuação, que a Cargill Incorporated de Minnetonka, Minnesota, construiu o seu terminal de exportação de soja.
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A construção do porto de Santarém começou em 1999 e foi concluída em 2003, apesar da Cargill não ter feito o estudo de impacto ambiental solicitado, fato que resultou em sucessivas declarações de ilegalidade do terminal por parte dos tribunais brasileiros. No entanto, ele começou a funcionar.
Para a Cargill, a maior empresa privada dos Estados Unidos, a construção do terminal foi um movimento estratégico que permitiu que a soja chegasse ao mercado de forma mais rápida e barata do que antes. A soja do Mato Grosso podia embarcar para o norte pelo rio ou ir de caminhão pela BR-163. No terminal de Santarém, a soja podia ser descarregada e armazenada antes de embarcar diretamente para a Europa através do rio Amazonas.
Foi um incentivo, também, para os agricultores do Mato Grosso. Por que mandar apenas a colheita para o terminal da Cargill se era possível mandar a fazenda inteira? A terra era barata em torno de Santarém, e uma fazenda de soja construída próxima ao terminal da Cargill economizaria tanto na terra como nos custos de transporte. Os fazendeiros rumaram em peso para o norte. Em 2004, um ano após a abertura do terminal, o cultivo da soja na área saltou para 35 mil hectares (um aumento de mais de 2.000% em cinco anos).
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Nosso motorista, um homem animado e corpulento cujo apelido era Manga, acelerou impulsivamente rumo ao sul. Lá encontraríamos pessoas que passavam os dias derrubando árvores na floresta tropical. Mas era tudo perfeitamente legal, parte de um projeto sustentável de exploração madeireira. Nada para ficar alarmado, infelizmente.
Chegamos ao local por volta das 7 da manhã. Os madeireiros estavam reunidos em uma sala no edifício principal. Homens e mulheres de capacete e roupa de trabalho organizaram-se em círculo e fizeram pronunciamentos. Houve risos e aplausos. Eles deram as mãos e fizeram uma oração. Depois fomos todos para fora e entramos na traseira de um caminhão grande que sacolejou por uma estrada de terra esburacada na direção do rio Tapajós, no coração da floresta. Estávamos visitando o projeto AMBÉ.
A atividade madeireira em uma floresta protegida é provavelmente abominável para a maioria das pessoas, pelo menos para os que não são madeireiros. Afinal, o que protegidosignifica de fato? Aqui no Tapajós, entretanto, um grupo de pessoas que vivem à margem da floresta teve a concessão para a exploração “sustentável”. A ideia é que isso possa oferecer alternativas à agricultura de coivara e ao desmatamento ilegal, proporcionar desenvolvimento econômico e melhorar o padrão de vida da comunidade sem degradar severamente a floresta. É fundamental que as pessoas que ganham dinheiro com a floresta sejam de lá. Uma vez que estão vivendo dela, tornam-se os principais interessados na sua preservação: a comunidade só pode ser sustentada pela floresta se a floresta continuar a existir.
O ar mudou quando entramos na floresta, tornando-se de repente rico e terroso, o calor do dia amenizado pela umidade e pela sombra. O caminhão nos deixou e foi embora, e acompanhamos uma equipe de levantamento na sua ronda matutina. Cascatas de ruído de insetos, um ruído quase eletrônico, e o som das chamadas e respostas: a paisagem sonora faz a selva.
Eu imaginava que uma exploração sustentável da madeira envolveria uma dezena de pessoas boazinhas e uma motosserra. Em vez disso, encontrei, junto com as pessoas boazinhas, maquinaria pesada e um negócio de verdade. Poderia ter tirado fotos que pareceriam o pesadelo de qualquer preservacionista – caos de toras e lama.
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Durante o café da manhã, enquanto planejávamos o nosso dia, um norte-americano forte e de meia-idade aproximou-se da nossa mesa e começou a conversar com Gil sobre wind-surf. Então ele se virou para mim com um cartão de visita na mão: era Rick, um homem de Michigan que é dono de sua própria floresta. Ele disse que havia uma série de equívocos por aí sobre a Amazônia e a atividade madeireira e achou, evidentemente, que a minha presença em Santarém era uma oportunidade única para contar a sua história.
“Nos Estados Unidos, costumavam mostrar na televisão terrenos baldios queimados e, nesse cenário, um caminhão de madeireira”, disse ele. “A suposição era de que os madeireiros devastavam a terra e esvaziavam o lugar, mas não é bem assim.” Segundo Rick, de todas as árvores que crescem na floresta tropical, apenas 5 ou 6 espécies são comercialmente viáveis. O desmatamento na Amazônia sempre foi extremamente seletivo. “Se não houvesse a criação de gado e o cultivo de soja, uma pessoa comum não seria capaz de sentir a falta de uma única árvore. Não há mercado para 94% da floresta.” Rick sabia, porém, que era mais complicado do que isso. “A pior coisa que os madeireiros fazem é abrir estradas”, admitiu. Isso cria o acesso para a agricultura comercial. Mais tarde, falamos com um de seus colegas sobre isso e ele reafirmou: “Os madeireiros não destroem a floresta, mas abrem as portas”.
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Desanimado com o fracasso do Brasil em protagonizar o seu papel na história do horror ambiental, pedi socorro à Igreja Católica. Adam tinha descoberto um padre ativista que prometeu nos dizer coisas inflamatórias e pessimistas sobre a situação da Amazônia. Procuramos pelo padre Edilberto Sena não na sua igreja, mas na sua estação de rádio, o que testemunha a sua proximidade com a teologia da libertação. Ele nos disse que o desmatamento era apenas uma parte da história.
“Perguntamos ao governo: ‘por que insistem nos grandes projetos de hidrelétricas na Amazônia?’ Eles planejam construir 38 hidrelétricas na Amazônia!” Sena trouxe o mesmo espírito desafiador para a luta contra o cultivo de soja. A organização fundada por ele,Frente de Defesa da Amazônia, tinha uma parceria com o Greenpeace para protestar contra o terminal da Cargill. Mas a colaboração não durou muito. “O Greenpeace tem dinheiro. Mas isso não ajuda muito quando você não tem um ponto de vista holístico. Eles defendem a floresta e os animais mas esquecem-se de que o ambiente inclui as pessoas que vivem aqui. Essa é a diferença: nós defendemos o nosso povo.”
Sem levar em conta as pessoas – no ativismo e nos parques nacionais – algo essencial fica faltando. E Sena não se referia apenas às populações indígenas. Incluía também os pequenos produtores rurais que haviam sido deslocados por causa da soja e as mais de 20 milhões de pessoas espalhadas pela bacia amazônica, seja no campo ou em grandes cidades como Manaus. “Antes de 2000, não conhecíamos a soja”, disse. Mas em 2001 os fazendeiros da soja começaram a aparecer. “Chegavam com dinheiro e compravam a terra”, disse enfaticamente. “Não vieram para viver aqui. Vieram só para cultivar.”
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Descemos a BR-163 no carro de Manga para nos encontrarmos com Nestor, um pequeno agricultor que tinha sobrevivido à febre da soja, mantendo a sua fazenda. Nestor nos vendeu cervejas e nos levou para um passeio nos seus campos de mandioca. “Antes tinha muita gente que vivia aqui e possuía pequenas propriedades”, disse. Mas nos primeiros 5 anos da década de 2000, os compradores do sul fervilhavam e disputavam terra. A maioria vendeu. “Venderam a terra. Os tratores vieram e acabaram com tudo.” Paca, uma pequena cidade próxima, havia sido completamente apagada do mapa para dar lugar à soja. Até mesmo o terreno da igreja pentecostal do lugarejo tinha sido vendida. “Derrubaram a igreja para plantar soja”, disse o filho de Nestor, rindo. “Você nem imagina que antes tinha uma igreja lá.” Nestor culpou os políticos locais, que, segundo ele, trouxeram a Cargill: “O governo convidou essas pessoas para trazerem o progresso. E talvez tenham trazido mesmo, mas junto trouxeram muita coisa ruim…”
O frenesi tinha mudado o ambiente local, de forma sutil mas óbvia. Encontramos diversos agricultores que se queixaram sobre os produtos químicos que as fazendas de soja vizinhas usavam no cultivo e sobre como a monocultura da soja tinha aumentado as pragas nas pequenas propriedades próximas. “Há muita doença nesses campos”, alegaram sobre os campos de soja. “Planto arroz e não colho nada. Se planto feijão, os insetos comem tudo. Não conseguimos colher nada.” Um homem me disse que os produtores de soja só conseguiam prosperar por causa dos fertilizantes. Disse também que as largas aberturas de terrenos no território modificaram os ventos e a temperatura, e que a simples ausência de sombreamento piorava a vida ao redor. Quando antes andavam grandes distâncias em um dia de trabalho, agora a grande extensão das fazendas de soja significava menor proteção do sol escaldante e, logo, menores distâncias caminhadas.
Aqueles que tinham vendido as terras e se mudado para Santarém se arrependeram e queriam voltar. Outro pequeno agricultor que encontramos na estrada confirmou a informação: “Muitos pensavam que, uma vez na cidade, o dinheiro nunca se acabaria”, disse ele. “Mudaram-se para a cidade, compraram casa, TV, geladeira. Mas não investiram na educação e acabaram sem emprego. Quando o dinheiro acaba e eles não têm trabalho, lamentam ter vendido a terra.”
Não paramos de ouvir comentários sobre famílias que se arrependeram de ter vendido suas propriedades – vindos de Nestor, de outros fazendeiros e do padre Sena. Aqui, a preocupação acerca dos efeitos da soja na floresta era menos manifesta do que os seus efeitos na sociedade, sobretudo no empobrecimento das pessoas que haviam vendido as suas fazendas.
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Outra coisa interessante sobre Nestor era que seu terreno estava em chamas. Grande parte da nossa conversa se deu no meio de um campo ardente, olhando para fantasmagóricas pilhas de cinzas em forma de árvore. O fogo foi na verdade o motivo pelo qual havíamos parado para falar com Nestor. Afinal, eu estava ali para ver o desmatamento, e se um campo de árvores queimadas não era desmatamento, não sabia mais o que desmatamento era. E de fato eu não sabia. Na Amazônia, o desmatamento é um assunto desanimadoramente confuso.
No caso do Nestor, por exemplo, você poderia pensar que um toco carbonizado é um toco carbonizado, mas não é assim. Nestor estava apenas alternando a colheita. A coivara tem um aspecto assustador, mas é parte da rotina anual de um agricultor. O pedaço de terra que Nestor estava queimando já havia sido cultivado várias vezes. Ele iria plantar mandioca e, em seguida, deixar que o campo se cobrisse de árvores para descansar.
Mas o foco da questão está no que impulsiona os novos desmatamentos, o que não é tão simples quanto apontar para quem está segurando uma motosserra. Há quem corte árvores com incentivos do governo para áreas “subdesenvolvidas”. Um agricultor de soja pode ter chegado no norte porque a terra era muito cara em seu estado de origem, ou porque a Cargill se estabeleceu no Pará. Uma série de coisas pode incentivar o desmatamento, mesmo à distância. Um agricultor de soja usando terras anteriormente cultivadas poderia argumentar que não está destruindo a Amazônia, mas e se o antigo pequeno agricultor que vendeu a ele a sua terra vai em busca de terra nova em outro lugar? A quem deve ser atribuída a destruição?
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Fomos encontrar os fazendeiros de soja. “Descobri que a terra era barata no Pará”, disse Luiz. “Então, compramos e viemos cultivar a terra. É por isso que estamos aqui.” Luiz era um homem baixo de sessenta e poucos anos, com olhos lacrimejantes e andar titubeante. Ele era um fazendeiro de soja, com 300 hectares sob o arado, próximo à terra de Nestor. Tive a impressão de que estava bêbado. “Você teria se mudado para cá sem o porto da Cargill?” Adam lhe perguntou. Luiz franziu a testa e balançou a cabeça enquanto Gil traduzia. “O que eu faria aqui?” Ele tinha vindo pela mesma razão que os outros fazendeiros de soja. Ele sabia que, enquanto o preço da soja era o mesmo no Pará ou em Mato Grosso, o custo do transporte aqui era muito menor. “Só estamos aqui por causa da Cargill”, ele disse.
“Os ambientalistas.” Ele cuspiu a palavra. Ambientalistas. “Eles vieram com essas leis proibindo desmatar mais do que 20% da área.” Ele tinha sido forçado a arrendar terras adicionais, a fim de ter um cultivo grande o suficiente. Isso não fazia sentido para ele. A terra era rica e plana e deveria ser cultivada. E a floresta que havia na sua propriedade nem era mata virgem, ele disse. Não havia madeira de lei remanescente, macacos ou frutas. Para ele, a lei deveria pressupor que a floresta a ser preservada fosse uma florestade verdade.
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A Cargill autorizou a nossa visita. Foi uma semana de telefonemas e emails para São Paulo e Minnesota para convencê-los de que éramos inofensivos. Tínhamos finalmente acesso ao terminal da maior empresa privada dos Estados Unidos na Amazônia, responsável pela bolha da soja de Santarém, marco zero da devastação da floresta amazônica. Em termos de destruição de habitats e mudança climática, aquele era o templo da perdição.
Ou não. Adam diz que eu não posso falar assim porque não é verdade. A soja, ele diz, nunca foi a causa principal do desmatamento na Amazônia. Nunca foi responsável por mais do que um décimo da sua destruição. Um mísero décimo! O frenesi da soja no Pará dominou a mídia e os ambientalistas mas, quando olhamos para a Amazônia como um todo, a soja não se iguala ao desmatamento causado pela pecuária. Na verdade, mesmo a coivara praticada por agricultores como Nestor conta mais para o desmatamento do que a soja. O que significa que talvez eu devesse ter apresentado Nestor como um vilão (apesar dele ter sido amigável e nos vendido cerveja barata) e devesse ter sido simpático ao Luiz, apesar dele ter cambaleado e gritado como um bêbado idiota.
Por que, então, tanto auê em torno da soja? A resposta, quem sabe, é que a soja entrou em cena com uma velocidade assustadora – e que, com a Cargill, os ambientalistas encontraram um alvo concreto. Em 2006, o Greenpeace divulgou o relatório Eating up the Amazon [“Comendo a Amazônia”], chamando a atenção para a Cargill. O relatório rastreou o cultivo da soja em terras desmatadas e seu caminho, através do porto da Cargill, para a Europa, onde ela termina como ração para frango e boi vendidos nos McDonald’s. Isso estabeleceu o problema de uma maneira poderosa. Afinal, um ativista que pode gritar “J’accuse!” a um McNugget é um ativista que conseguiu focar bem o caso. Além disso, a conexão com o McNugget abria dois pontos fracos estratégicos para o Greenpeace atacar: o terminal de Santarém e a diretoria do McDonald’s.
Em poucas semanas, a pressão tinha atingido toda a cadeia de abastecimento. A Cargill sentou-se à mesa de negociação, juntamente com todos os outros compradores importantes de soja brasileira. Sob os termos do acordo, conhecido como a moratória da soja, a Cargill não compraria soja de qualquer fazenda onde uma única árvore tivesse sido cortada a partir do início da moratória. O estranho da moratória da soja é que ela parece ter de fato funcionado. O desmatamento ocasionado pela soja na área de Santarém parou. Sei disso porque Adam me mostrou um gráfico, com base em dados do governo brasileiro.
Isso já era demais.
De qualquer modo, tivemos nossa chance. Adam, Gil e eu aparecemos no terminal da Cargill e fomos levados até uma sala de recepção climatizada onde aguardamos o gerente do terminal. Em uma vitrine em um canto da sala, uma taça de vidro com grãos de soja estava ao lado de garrafas de óleos de cozinha, potes de maionese e outros produtos alimentícios derivados de produtos da Cargill.
Por razões de segurança e precaução, não seria permitida a nossa entrada na usina. Nem veríamos um único grão de soja, além daqueles na vitrine da sala de recepção. Em vez disso, o gerente nos conduziu em um passeio em torno do centro de armazenagem, mostrando a baia dos caminhões – ali, também, a segurança era uma prioridade – e outras áreas completamente entediantes, sem nada de soja.
Em um trecho de concreto molhado entre a água e o centro de armazenamento, o gerente do terminal parou e virou-se para nós. “Aqui nós temos uma floresta para a preservação de árvores nativas”, disse. Olhamos em volta. Do que ele estava falando? À nossa esquerda havia um pequeno triângulo de grama com uma dúzia de árvores esmirradas. Só umas duas ou três podiam realmente ser chamadas de árvores. O resto era pouco mais do que uns ramos semi-nus saindo do chão. Essa era a floresta deles? “Tivemos algumas dificuldades no cultivo das árvores”, ele disse. “Mas cuidamos muito bem delas.”
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A Cargill, o Greenpeace e a Nature Conservancy concordaram que a moratória da soja foi um sucesso. Mas ela havia deixado alguns negócios inacabados. Por um lado, havia a questão da legalidade duvidosa do terminal da Cargill. E os pequenos agricultores? Isso, mais do que qualquer outra coisa, explica o abismo entre uma ONG internacional como oGreenpeace e um ativista local como o padre Sena. Na opinião dele, o Greenpeace e aNature Conservancy tinham assegurado um acordo fraco. A redução do desmatamento, segundo ele, era devida à desaceleração econômica global, não à moratória. E mesmo que a moratória tivesse conseguido parar com que os produtores de soja cortassem a floresta, o que dizer dos pequenos agricultores que eles haviam deslocado? Eles eram muito mais difíceis de rastrear. Enquanto isso, nada estava sendo feito para atenuar os danos já existentes e o terminal da Cargill continuava lá.
Quando Adam, depois, rastreou Andre Muggiati, um ativista do Greenpeace da Amazônia, ele quase admitiu isso. “Nós sempre soubemos que em algum momento teríamos que sentar à mesa com a Cargill para chegar a um acordo. Se você pedir o impossível, nunca chega a uma solução.” O ativismo não poderia fazer muito mais que isso. “O capitalismo e a livre iniciativa são legais no Brasil”, disse ele. “Você não pode chegar para a Cargill e dizer: ‘Vá embora!’. Você não pode chegar para os fazendeiros de soja e dizer: ‘Devolvam a terra aos camponeses.’”
Quem poderia discordar de Muggiati? Mas, por mais sensatas que fossem as suas palavras, elas poderiam ter saído da boca da própria Cargill, o que sugere paralelos desconfortáveis entre um gigante do agronegócio e as ONGs ambientalistas que se opunham a ele. É difícil não encontrar alguma ironia em um cara do Greenpeaceinvocando o realismo e o Estado de Direito, enquanto uma boa dose do ativismo público da organização depende justamente do idealismo e do desrespeito estratégico da lei.
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