terça-feira, 23 de setembro de 2014

"Superamos a fome com a ampliação da rede de proteção social"

 O desafio, agora, é criar políticas específicas para as populações mais vulneráveis e melhorar a qualidade da nutrição do povo brasileiro, diz a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello
 
 Tereza Campello"Agora, precisamos de ações mais focadas", diz a ministra Campello
 
Pela primeira vez, o Brasil abandonou o vergonhoso mapa mundial da fome, revela o último relatório sobre segurança alimentar da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), divulgado na semana passada. Atualmente, apenas 1,7% da população não sabe se terá garantida a próxima refeição. Ainda que isso represente 3,4 milhões de bocas famintas, o País é apontado como uma referência mundial no combate à fome, devido à forte redução verificada nas últimas décadas. Em 1990, 25 milhões de cidadãos estavam subalimentados, 15% do total dos habitantes do País.

Entre os fatores que explicam o êxito brasileiro, a FAO aponta o sucesso das políticas sociais e de transferência de renda implantadas no Brasil na última década. “Quando criamos o Bolsa Família, pensamos num programa de abrangência nacional que não demorasse a trazer resultados no combate à fome e à miséria. Deu certo. Agora, precisamos de ações mais focadas”, comenta a ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello. Na entrevista a seguir, ela explica como o Brasil melhorou seus indicadores e fala sobre os desafios que ainda temos pela frente.
 
CartaCapital: As Nações Unidas apresentam o Brasil como uma referência no combate à fome. O que fizemos de diferente?
Tereza Campello: Na última década, conseguimos retirar mais de 15 milhões de brasileiros da condição de subalimentação. Em números absolutos, só perdemos para China e Indonésia. Nesse período, 60 milhões de chineses e quase 17 milhões de indonésios deixaram de passar fome. Só que essas nações são bem mais populosas. Em termos relativos, nosso avanço foi bem maior. Hoje, apenas 1,7% da população brasileira permanece com insegurança alimentar. Foi o maior avanço da América Latina.

Subalimentação no Brasil
CC: O que explica o êxito brasileiro?
TC: Primeiro, aumentou a quantidade de alimentos disponíveis para a população. A FAO leva em conta tudo o que foi produzido e importado pelo País, e desconta o que foi exportado ou usado para outras finalidades, como ração para animais. Só entra na conta o que está disponível para consumo humano. Mas todos sabem que o problema da fome não tem relação apenas com a disponibilidade de alimentos. Hoje, temos uma oferta suficiente para abastecer toda a população mundial, mas a fome persiste. A questão central é o acesso. É por isso que as Nações Unidas dão um enfoque especial à questão da renda. Não por acaso, a FAO destaca a elevação do salário mínimo nos últimos anos e o aumento na geração de empregos formais. Mas talvez o principal fator seja o aumento da rede de proteção social, sobretudo o êxito do Bolsa Família, que transfere renda à população mais pobre.
 
CC: Que impacto o Bolsa Família teve no recuo da desnutrição?
TC: Recentemente, Patrícia Constante Jaime, coordenadora de Alimentação e Nutrição do Ministério da Saúde, publicou um artigo sobre o tema, elaborado em parceria com um conjunto de especialistas. Esse estudo mostra uma reversão da curva do déficit de estatura nas crianças beneficiadas pelo programa. Hoje, temos um porcentual muito pequeno de crianças com déficit de peso. Mas esse não é o melhor indicador para avaliar o problema. A criança pode estar gorda e mal nutrida. Quando avaliamos o déficit de estatura, temos um retrato mais fiel. Se a criança come só farinha com água, ela pode até estar bem gordinha, mas não cresce como deveria. Não tem nutrientes suficientes para se desenvolver. Entre as crianças beneficiárias do Bolsa Família, houve significativa redução do déficit de estatura de 2008 a 2012. Elas não apenas deixaram de passar fome, estão crescendo mais.
 
CC: Esse estudo revelou uma queda expressiva da desnutrição, mas desnuda uma prevalência muito maior de casos nas regiões Norte e Nordeste, onde o déficit de estatura ainda é identificado em 19,2% e 12,6% das crianças monitoradas, respectivamente.
TC: Sim, até porque o Norte e o Nordeste sempre tiveram maior prevalência da desnutrição e da fome. Mas, em apenas quatro anos, houve uma redução acentuada mesmo nessas regiões.

Desnutrição no Brasil
CC: Neste ano, a FAO usou uma nova metodologia para calcular seu índice de prevalência de subalimentação. O que mudou?
TC: A FAO sempre considerou a disponibilidade de alimentos em cada país e aspectos relacionados à renda da população. Mas não considerava o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que atende cerca de 43 milhões de crianças e adolescentes no Brasil. Todos os dias, as escolas públicas oferecem refeições a um contingente de estudantes do tamanho da população argentina. Aliás, eles não incluíam na conta nem os que se alimentavam fora de casa. Ficavam de fora os trabalhadores que comiam na cantina da fábrica, os que frequentavam restaurantes populares. Por isso, a FAO passou a incluir essa variável, e refez os cálculos dos anos anteriores. Todos os países monitorados pelas Nações Unidas tiveram os seus indicadores revisados pelos mesmos critérios.
 
CC: O avanço nos últimos anos é inegável, mas ainda existem 3,4 milhões de brasileiros subalimentados. Segundo especialistas, a fome persiste em comunidades de difícil acesso: indígenas, ribeirinhos, quilombolas, ciganos e população de rua.
TC: Graves problemas estruturais, que afetam milhões de habitantes, demandam medidas de grande impacto. O êxito brasileiro no combate à fome e à pobreza deve-se ao fato de que não optamos por projetos pilotos, modelos customizados, específicos para cada grupo social. Por isso, quando criamos o Bolsa Família, pensamos num programa de abrangência nacional, que não demorasse a trazer resultados no combate à fome e à miséria. Deu certo. Agora, precisamos de ações mais focadas.
 
CC: Que tipos de ações?
TC: Sabemos, por exemplo, que nos quilombos ainda há muita insegurança alimentar. São comunidades geralmente isoladas, muito fechadas, que não têm acesso a uma grande variedade de alimentos. Isso também gera insegurança alimentar. Os povos ribeirinhos da Amazônia costumam comer sempre peixe e farinha. Alguns chegam a desenvolver doenças pelo consumo excessivo dessa mesma fonte de alimentação. A dieta não é equilibrada. Podem até não passar fome, mas não estão bem alimentados. Em algumas comunidades indígenas, os indicadores de desnutrição são elevadíssimos. Há comunidades muito isoladas, nas quais só chegam os aviões do Exército. Para elas, estamos fazendo políticas específicas. Desenvolvemos estratégias de busca ativa diferenciadas para indígenas, quilombolas e população de rua, na tentativa de incluí-los nos programas sociais do governo federal.
 
CC: É possível citar alguns exemplos?
TC: Até os formulários desses grupos mais vulneráveis são diferenciados. No caso dos indígenas, registramos a etnia, sua localização exata, todas as informações necessárias para chegar até eles e ver quais são as suas demandas. Dependendo do tamanho da população, criamos um Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) dentro da própria comunidade indígena. Outro exemplo: contratamos assistência técnica específica para quilombolas e indígenas desenvolverem suas culturas tradicionais. Não queremos romper com o desenho cultural dessas comunidades, mas elas também precisam de certo suporte tecnológico para se desenvolver. Precisam de sementes, de equipamentos agrícolas. Ao mesmo tempo, não podemos tratá-los como um agricultor familiar convencional. Não adianta, por exemplo, fazer manejo florestal em reservas extrativistas. Precisamos de soluções adequadas para a forma como eles estão acostumados a garantir a própria sobrevivência.
 
CC: A FAO também deu muita ênfase ao êxito do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Qual é o diferencial dele?
TC: Assim como o Bolsa Família, ele possui escala e grande impacto. Muitas crianças chegavam famintas às escolas, então decidimos distribuir comida a elas. Os estudantes têm acesso a frutas, arroz, feijão, carne, peixe, frango, uma nutrição bastante balanceada. Hoje, a maioria das escolas tem cozinhas para preparar alimentos frescos. Para receber os repasses federais, elas precisam usar um porcentual mínimo do dinheiro para comprar frutas, legumes e hortaliças. Ao menos 30% dos alimentos vêm da agricultura familiar, o que fortalece os pequenos produtores. São políticas simples, abrangentes e com impacto nacional.
 
CC: Além das ações focadas em grupos específicos, devemos aperfeiçoar as políticas de abrangência nacional?
TC: Podemos melhorar a assistência às mulheres durante a gravidez e às crianças nos primeiros anos de vida. Decidimos aumentar o valor dos benefícios pagos às mulheres do Bolsa Família durante a gestação, para que elas se alimentem melhor. Em contrapartida, elas precisam iniciar o pré-natal mais cedo. A curva é impressionante. Conseguimos antecipar em 60% o número de mulheres que iniciam seu pré-natal antes do quarto mês de gestação. Com isso, diminuímos a incidência de diabetes, de eclampsia, de complicações no parto. Isso é muito importante, porque os danos causados à criança durante a gestação muitas vezes são irreversíveis. Além disso, no Nordeste, decidimos aplicar superdoses de vitamina A ao vacinar as crianças, além de oferecer complementação de sulfato ferroso.
 
CC: Alguns especialistas se opõem à complementação nutricional com medicação.
TC: Sim, uma parcela expressiva dos especialistas da área de nutrição é contra a medicalização da nutrição. Mas temos uma situação colocada no Norte e Nordeste, e precisamos atuar de alguma forma. Continuaremos na estratégia de melhorar a qualidade da alimentação dessas pessoas, estimular uma dieta mais balanceada. Mas, enquanto o cenário não muda, precisamos intervir. Já temos 9 milhões de crianças vacinadas com megadose de vitamina A, para aumentar a imunidade delas. Se há carência dessa vitamina, a crianças ficam mais vulneráveis a infecções, mais propensas a morrer por tuberculose, pneumonia, asma. Também iniciamos a distribuição de sachês com complementação de nutrientes nas escolas de educação infantil. Decidimos não distribuir diretamente às famílias, porque é mais seguro ter a supervisão de médicos e especialistas nessa complementação.
 
CC: O País conseguiu superar o drama da fome, mas o brasileiro está engordando muito. Atualmente, metade da população adulta tem sobrepeso e 17,5% é obesa. Como enfrentar o problema?
TC: Primeiro, precisamos contextualizar um pouco essa história. Quando criamos o Bolsa Família, o que se dizia? Que o pobre iria pegar o dinheiro e comprar porcaria. À época, até mesmo especialistas em nutrição manifestaram contrariedade em pagar os benefícios em dinheiro à população. Havia o temor de que a obesidade entre os mais pobres chegasse a patamares superiores à média nacional. Mas isso não se verificou. Eles não têm uma nutrição pior que a dos ricos. O crescimento da obesidade ocorre em todos os segmentos sociais. Precisamos cuidar melhor das merendas escolares, reduzir os teores de sal, gordura e açúcar dos alimentos processados, já temos um pacto com as indústrias do setor nessa direção, além de avançar na discussão de uma regulamentação da publicidade de alimentos dirigidos ao público infantil. O que mais nos preocupa é o crescimento da obesidade e do sobrepeso entre crianças e adolescentes. O problema tende a persistir na vida adulta e trazer graves problemas de saúde.

Fome na América Latina
 
 

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