terça-feira, 14 de julho de 2015

Lévinas e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça, por Carla Silene Gomes


 


GOMES, Carla Silene Cardoso Lisbôa Bernardo. Lévinas e o outro: a ética da alteridade como fundamento da justiça. Rio de Janeiro, 2008. p.90 Dissertação Mestrado – Departamento. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

 DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Este trabalho nasceu do questionamento pessoal quanto aos fundamentos do que hoje é denominado justiça.

Questionamento que impulsionou o desejo de encontrar uma nova perspectiva, um referencial crítico ao modelo de humanidade altamente individualista e competitivo da atualidade, bem como aos modelos contratualistas de justiça que, fundamentados na igualdade homogeneizante, resultam em exclusão, intolerância e indiferença entre os seres humanos.


Por ser a filosofia o campo de conhecimento que procura refletir acerca das condutas humanas em busca de um sentido para o agir humano, esse foi o caminho por nós escolhido.

Tomando um cenário próximo - o cotidiano profissional como operadora do direito - por ponto de partida, e sentindo a angústia, a inquietação, com o descaso e a falta de compromisso e responsabilidade de uma pessoa em relação à outra, partimos em busca de um novo referencial de justiça.

Nesse contexto é que nos deparamos com Emmanuel Lévinas e nos interessamos por sua ética da alteridade.

O modo ímpar e profundo de pensar o humano desse autor despertou-nos o interesse, se revelando como uma possível saída para a humanidade da egolatria e do individualismo.

Buscar compreender a justiça através de teorias e mais teorias contratualistas pareceu-nos um ato reflexivo tendente apenas ao percurso de um caminho com retorno ao mesmo ponto de partida.

Sentimos a necessidade de ir além e, ao nos encontrarmos com a crítica à filosofia ocidental proferida por Emmanuel Lévinas, tivemos a oportunidade de experenciar um modo de pensar que não retorna ao lugar de onde partiu.

Enxergamos o pensamento levinasiano como uma proposta de reflexão e de crítica – não a única, muito menos a definitiva – ao modelo individualista, competitivo e totalizante da sociedade contemporânea, que faz da justiça mero instrumento de satisfação de desejos pessoais de uma pequena parcela da população.

Emmanuel Lévinas fala-nos do “Rosto que me interpela”, do “Outro”, que nos permite resgatar a nossa subjetividade ao nos apontar para uma responsabilidade incondicional por ele. Um “Rosto que clama”, vários Rostos que se nos apresentam diariamente exigindo-nos justiça.

São milhares de pessoas que morrem ou que sobrevivem como mortos-vivos ante uma sociedade totalitária e fechada em si mesma. Passando pela vida nessa sociedade marcada pelo isolamento, pela competição, pela dominação, fingimos não ver, e por vezes não enxergamos mesmo, aquelas pessoas que são estranhas ao Eu próprio; sem darmos conta de que, assim agindo, estamos negando a nossa própria condição humana.

Emmanuel Lévinas nos demonstra que ao vivermos nesse fechamento, nessa interiorização excludente em busca de simplesmente existir, frustramo-nos constantemente, pois bloqueamos nossa sensibilidade, enclausuramo-nos no Eu próprio e, consequentemente, perdemos nossa subjetividade, nossa razão de viver.

Esse, porém, tem sido o móvel da sociedade contemporânea, a forma de se pensar e de se ver as coisas: a competição, o isolamento, o fechamento, a negação ao Outro, a indiferença...

O pensamento de Emmanuel Lévinas se opõe exatamente a esse modelo. Criticando contundentemente a filosofia ocidental, ele questiona o homem e a sociedade atuais e propõe o acolhimento, a responsabilização incondicional pelo Outro como caminho para o reencontro do sentido da existência humana.

Através da nossa sensibilidade à interpelação do Rosto do Outro que se apresenta diante de nós, surge uma responsabilidade anterior a qualquer reflexão, uma responsabilidade traçada numa disposição ética, que se converte em justiça diante de tantos outros Rostos e que resgata a individualidade.

Defende Emmanuel Lévinas que é através da saída de si mesmo, que ocorre quando percebemos e acolhemos o Outro, é que o sujeito encontra a si próprio.

Na abertura ao Outro que se encontra fora de nós, ressurgimos como um novo Eu, um “Eu-com-o-outro”.

Pela sensibilidade, pré-racional, o Eu, fechado em si mesmo, é conduzido para fora, para o exterior, e se torna responsável por aquele que se lhe coloca à frente, conduzindo-o além do Eu.

Essa subjetividade sentinte motiva a transformação individual e, por conseqüência, a da sociedade.

O pensamento de Emmanuel Lévinas situa a ética como “filosofia primeira” e a tem como decorrente da relação Eu-Outro, configurando uma nova perspectiva de reflexão, a de pensar a si mesmo e à sociedade a partir e com o Outro.

O Outro é a base de toda a construção levinasiana, o cerne da relação humana.

Numa sociedade complexa como a nossa, onde a existência é plural, surge a necessidade do direito, que para Emmanuel Lévinas deve ter origem na relação com o Outro, pois é da interpelação do Rosto do Outro que vem a negativa à violência natural do Eu.

Compreender o nascimento da justiça no surgimento do Outro é aceitar que não será a instância jurídica que promoverá a assunção de responsabilidade, não será a lei ou a norma que impedirá a violência, não será uma sentença que propiciará a harmonia nas relações humanas.

Não se trata aqui de esvaziar o direito, mas de propiciar uma revisão das bases nas quais ele se fundamenta, demonstrando, numa atitude reflexiva filosófica, que o direito, enquanto fruto de uma sociedade que não acolhe o Outro, resulta na intolerância, na indiferença, na não assunção de responsabilidade.

Em outras palavras, o direito é imprescindível para a existência plural do homem, mas só tem sentido quando assentado no reconhecimento da responsabilidade advinda da subjetividade acolhedora do Outro.

Na desenvoltura da pesquisa trilhamos o seguinte caminho: No primeiro capítulo fizemos uma abordagem do século XX e início do século XXI, período que denominamos de contemporaneidade, e inauguramos a perspectiva reflexiva de Emmanuel Lévinas.

Verificou-se que esse período se caracteriza pelas guerras, pelo progresso científico e desenvolvimento tecnológico, pela destruição e morte. Uma época em que a absolutização do sujeito provoca uma totalidade excludente e relações de dominação, de subjugação entre as pessoas.

Um momento em que o indivíduo, cada vez mais fechado em si mesmo, perde-se por completo e torna-se subjugado ao insaciável desejo de ter, de poder, de consumir.

Emmanuel Lévinas, ante essa realidade, percebe a necessidade da revalorização do sentido ético do humano e do respeito às diferenças; convidando ao reconhecimento do Outro como forma de consagração de uma sociedade plural, fraterna e pacífica.

No segundo capítulo perpassamos a construção do pensamento de Emmanuel Lévinas.

Partindo da crítica à ontologia fundamentadora da filosofia ocidental, constatamos que o sujeito contemporâneo restringe-se a Ser, trancado numa egologia que culminou nas guerras.

Vimos que sociedade contemporânea é uma sociedade totalitária, constituída pelo egoísmo e conduzida por uma filosofia do poder, a ontologia. Mostramos, ainda, que o nosso pensador construiu sua obra fazendo uma conexão com os fatos por ele presenciados e vividos.

Por fim, destrinchamos os momentos marcantes da evolução de seu pensamento, retratados, sobretudo, nas obras Da existência ao existente, Totalidade e Infinito e Outramente que ser, ou mais além da essência: Em Da existência ao existente Lévinas apresentou a o Outro como saída para a superação do horror e do trágico da impessoalidade do Ser; em Totalidade e Infinito lançou a idéia da presença do Outro como superação do egoísmo em si mesmo e, finalmente, em Outramente que ser, ou mais além da essência apontou a subjetividade sentinte como quem conduz o Eu a ser refém do
Outro, tornado-se diferentemente do Ser ou mais além da essência. Finalmente, no terceiro capítulo, conhecemos a estruturação da justiça em Emmanuel Lévinas.

Primeiramente como idéia de responsabilidade do Eu para com o Outro e, posteriormente, como justiça propriamente dita ante a chegada do terceiro, ou dos Outros.

Assim, objetiva-se a pensar o humano a partir dos conceitos levinasianos, notadamente na intransferível responsabilidade contraída no gesto ético, que deverá nortear a concretização da justiça para a consolidação de uma sociedade fraterna e solidária.

 “Não esqueçamos, em nosso favor, que em qualquer tempo e lugar, diferenças não são defeitos, os diferentes necessariamente não são oponentes, e a indiferença é o recolhimento egoísta do afeto na escura masmorra do desamor. Nossa harmonia é construída no cultivo das virtudes da indulgência, da fraternidade e do acolhimento. Ação, reação, transformação: caminhos da alteridade. Morte da indiferença, autoconhecimento, amor: caminhos da felicidade. Em quaisquer etapas: sempre alteridade na erradicação do personalismo. Hosana às diferenças e aos diferentes!”
( DUFAUX, Ermance de La Jonchére [Espírito]. Mereça ser feliz: Superando as ilusões do orgulho, p. 102.)


Considerações finais da Tese

Desde o início é possível constatar que esse trabalho tem a tônica de uma crítica à sociedade atual, ao homem contemporâneo e, especialmente, à estruturação da justiça.

Nesse contexto, o pensamento de Emmanuel Lévinas surge como uma importante contribuição na medida em que desnuda a realidade anti-humanista da contemporaneidade e indica uma orientação de construção da justiça fundada na ética da alteridade. Isto é, a obra levinasiana surge como uma alternativa de reformulação do ideal de justiça, onde prima-se pela abertura do Eu ao outro.

No entender de Lévinas, a racionalidade fundada na ontologia provocou o fechamento do homem em-si-mesmo e a redução do outro ao Mesmo, consequentemente, numa sociedade erigida no egoísmo, no individualismo, na satisfação de necessidades e desejos, onde cada pessoa perde seu sentido ao se ater a simplesmente Ser.

A busca desenfreada pelo desenvolvimento propiciou um constante estado de guerra em que os seres humanos passaram a ser contados como ‘mais um’, desprovidos de individualidade, sentimentos e importância, sem espaço para a abertura e responsabilidade incondicionais de um para com os outros.

A perda de um ou de alguns, ante o todo da sociedade, se justificou na necessidade de crescimento e não atingiu o Eu, uma vez que eles lhe eram estranhos, diferentes, distantes...

Enquanto elevadas cifras foram investidas em desenvolvimento, produção e utilização de produtos bélicos, milhões de pessoas morreram de fome, de sede, pela falta de recursos financeiros... Focado no objetivo de simplesmente Ser, reduzido e voltado exclusivamente para sua própria sobrevivência, o indivíduo contemporâneo vaga na impessoalidade; encerrado em sua mesmicidade, nada percebe além do ‘horror e do trágico de simplesmente haver’ (o il y a anunciado por Lévinas).

Buscando uma forma de se afastar da necessária responsabilidade pelo outro, os seres humanos se tornam cegos e surdos à realidade; se fecham e se tornam insensíveis ao Rosto que clama.

Bloqueando os sentimentos, dão vazão à razão que surge e livra o homem da situação incômoda do face a face, mantendo-o em-si-mesmo; o Eu retorna à sua interioridade e se torna impessoal, indiferente ao seu próximo, permanecendo inerte mergulhado em seus desejos individuais.

 Na ânsia de Ser, cada homem e, por consequência, a sociedade, assume posturas e realiza condutas que agridem frontalmente o ideal humanitário.

Para Lévinas, enquanto a sociedade se ativer meramente ao sentido do Ser na elaboração de suas formas de organização, especialmente no tocante à criação das leis, a ética não se realizará, dando lugar à indiferença, à intolerância e à violência.

Ante essa realidade que revela o predomínio de idéias totalizantes e de suas consequências: dominação, morte, guerra e destruição, o pensamento de Lévinas aparece como uma crítica atual e essencial à sociedade contemporânea e, ainda, como uma possível alternativa de mudança, de transformação.

Tendo construído um pensamento crítico à “egologia” sobre a qual a filosofia ocidental erigiu suas bases, Lévinas se opõe veementemente à totalização do Ser e convida seus leitores a uma mudança de referencial onde o Eu sede lugar ao outro.

Propõe ele que, na abertura, através da sensibilidade, do Eu ao outro, na saída do em-si-mesmo, é que o sujeito, o homem, se torna responsável pelo seu próximo e encontra o seu próprio sentido, realizando a justiça.

A partir da abertura do Eu ao Rosto do outro, na concretização da relação da ética da alteridade levinasiana, é possível vislumbrar uma possibilidade de superação da barbárie e da inumanidade da civilização contemporânea.

 Em outras palavras, a remoção do totalitarismo impregnado na sociedade atual passa pela necessária transformação da subjetividade totalitária.

Tendo em mente a originalidade e a profundidade da concepção de Lévinas, que situa a ética como filosofia primeira e a abertura, o acolhimento e a responsabilidade do Eu perante o outro como irrestritos e pré-reflexivos, pode-se pensar em uma sociedade humanista.

O convite de Lévinas é para a superação da dimensão meramente profética do dever que o Eu tem, de assumir sua responsabilidade pelo outro e pelos outros – comportamentos até então impostos ou pela racionalidade, ou pela religião ou pela mística – e pela real concretização do sentido do humano que, segundo ele, se dá no acolhimento, na responsabilização pelo próximo.

Apesar da proposta levinasiana conter uma exigência – a do acolhimento do outro – ressoa também como uma saída para essa sociedade em crise, edificada sobre a guerra, sustentada na dominação e na “banalização do mal”, frutos do fechamento do homem em si-mesmo.

Para Lévinas, o resgate da humanidade passa pela assunção de responsabilidade incondicional do Eu pelo outro, vez que diante de uma subjetividade centrada na auto-realização e propiciadora de uma sociedade ególatra, a organização através de leis e a prática de atos de benevolência não têm se demonstrado suficientes.

 Na ótica levinasiana, é importante destacar, que a benevolência, amplamente aceita e apregoada na atualidade, é caracterizada como mera forma de manutenção do Eu-em-si-próprio e de distanciamento daquilo que lhe é exterior, diferente, que é outro; primeiramente porque o Eu pode escolher a quem ajudar, e em segundo lugar, porque obterá a satisfação decorrente da gratidão de quem foi ajudado.

Lévinas diz ser a responsabilidade perante o outro condição da subjetividade como dever e obrigação incondicional e pré-reflexiva, e ainda, como caminho para reencontro do Eu, mas não de um Eu ontológico e dominador, mas de um Eu que se orienta em Ser-para-o-outro.

Trata-se de uma responsabilidade que não decorre da intencionalidade ou da expansão do Ser sobre o Eu, mas de uma responsabilidade que surge na relação Eu-outro permitindo a este continuar sendo ele próprio, ou seja, não objeto de totalização ou reducionismo.

É importante esclarecer que para Lévinas o que há de humano no homem começa com a responsabilidade pelo outro, na relação de alteridade e não de identidade, onde o Eu se refere a si mesmo.

Dessa idéia de sociedade, de responsabilidade pelo outro e pelos outros que se apresentam como terceiros no pensamento de Lévinas, surge a noção de justiça, que se expressa como uma responsabilidade incondicional, infinita e irrecusável do Eu para com todos os seres humanos.

Trata-se de um estado de responsabilidade que surge no interior do Eu, em sua intimidade, e que exige a saída dele do egoísmo, do isolamento, do individualismo, conduzindo a humanidade à sua essência solidária e fraterna.

 A partir da responsabilidade decorrente da sensibilidade do Eu, surge a possibilidade de construção de uma nova humanidade, direcionada, estruturada e sustentada na vida, na liberdade, na verdade e na paz.

Contrariamente à proposta de coexistência pacífica do mundo contemporâneo, erigida no poder do vencedor, Lévinas apresenta como proposta de paz a ética da alteridade que permite uma convivência afetiva na medida que as pessoas se abrem para acolher uma às outras na bondade sem limites.

O trabalho de Lévinas, portanto, denuncia a violência entre os homens e apresenta a ética da alteridade como o recurso possível à realização do sentido profundo do humano.
Através do sentir, ao defrontar-se com o Rosto do outro, o Eu torna-se por ele responsável e, na concretização da ética da alteridade, se reencontra; ou seja, através da sensibilidade se torna possível o reencontro de cada indivíduo com a sua individualidade e não com o seu individualismo.

Destruindo a concepção de humano da sociedade contemporânea, que para Lévinas não passa de uma criação do Ser fechado em si-mesmo, sugere que a humanidade verdadeira encontra raízes na ética, que conduz o homem a compreender que a responsabilidade do Eu para com o outro constitui a essência da vida humana.

O pensamento de Lévinas contribui para uma revisão tanto da vida em sociedade quanto da vida individual, nesta porque aponta para um caminho que rompe com o egoísmo, o individualismo e a solidão, naquela porque impede a dominação e a subjugação entre seres humanos.

Impende ressaltar que o homem da modernidade se constituiu a partir da busca da autonomia, rejeitando e contestando tudo que lhe era exterior, partindo e retornando sempre a si-mesmo, em busca da satisfação pessoal concretizada na posse, na conquista e na preservação daquilo que já tinha alcançado.

Esse homem ainda se faz presente na contemporaneidade e acredita que ser humano é defender seus direitos, é conquistar – seja sucesso, seja dinheiro, seja poder... – é se firmar por si mesmo, fechando os olhos a tudo que lhe é exterior.

Emmanuel Lévinas questiona esse sujeito, pois verificou que o homem que se fecha em-si-mesmo, na insensibilidade e na totalidade do Eu, ou seja, que se nega a perceber o outro, impede a própria condição humana. Para ele, o que faz do ser um humano é a assunção de responsabilidade pelo outro ser.

Diante do Rosto do outro que interpela o Eu, duas atitudes são possíveis: ou o Eu se expande e domina o outro, revelando sua indiferença ante a súplica de acolhimento do outro, consagrando o império da autonomia do Eu; ou o Eu acolhe o outro na sua alteridade, tornando-se por ele responsável.

A pergunta que surge é: A qual das duas deve se dar o nome de justiça?

Segundo Lévinas, somente na segunda hipótese, onde aparece a responsabilidade do Eu para com o outro é que a justiça encontra espaço e oportunidade para se realizar.

Disso decorre que, para o referido autor, todas as modernas teorias da justiça, uma vez que assentadas eminentemente na autonomia, não são capazes de concretizá-la. Justiça e ética são associadas em razão da alteridade e da sociabilidade no pensamento levinasiano.

Quando se rompe com as barreiras conceituais advindas da ontologia como filosofia primeira, surge a perspectiva do cuidado do Eu para com o outro e com os outros, portanto, da eticidade que acolhe e promove a justiça e a paz.

Lévinas convida a uma reflexão sobre as relações intersubjetivas resguardando a individualidade do Eu de uma ordem totalizadora através da ética da alteridade.
Para se falar em justiça não se pode raciocinar tendo por parâmetro uma filosofia que reduz o outro ao Eu, que conceitua o outro a mera categoria da massificação ou do não-Ser.

E, segundo Lévinas, a justiça fundada na razão, em última análise é uma justiça do Eu, incapaz de suportar, tolerar e muito menos ainda, acolher a diferença, o outro.

É preciso estar sob a luz da ética – que não é a ética derivada da ontologia, da filosofia política ou da filosofia do direito – mas a ética decorrente da relação primordial Eu-outro, a ética da alteridade.

Fato é que as orientações e os fundamentos das relações entre os seres humanos precisam ser revistos na contemporaneidade, especialmente porque as evoluções técnico-científicas não corresponderam aos anseios dos homens contemporâneos.

Nesse âmbito, a contribuição de Lévinas de uma reflexão da justiça a partir da ética da alteridade revela a crise da justiça como valor absoluto dos sistemas juridicamente encarregados de dizer o que é justo e se apresenta como uma alternativa para concretização do respeito ao outro, ao diferente, a não exclusão.

O pensamento de Lévinas, estruturado a partir da ética da alteridade possibilita a revisão crítica da tradição retributiva do direito, um proceder tendecioso à totalização, a estigmatização e a eliminação do convívio social. Justiça e ética caminham juntas. Para ser ético é preciso ser justo, responsável pelo Outro.

Rompe, portanto, Emmanuel Lévinas com a tradição de se pensar a justiça como uma forma de adequar a realidade ao pensado e introduz o conceito de justiça como o dever de pensar a realidade tornando-a justa e real a partir da ética da alteridade.

É fato que quando falamos de justiça admitimos, concomitantemente, a presença de instituições como o Estado e o Direito.

Mas ante uma justiça fundada na ética da alteridade essas instituições servem para resguardar a essencialidade da não violência na forma da responsabilidade de uns pelos outros, quem sabe, de uma justiça restaurativa.


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