domingo, 6 de julho de 2014

O futebol não é inimigo do conhecimento

Por Ana Helena Tavares, do Rio de Janeiro
Do Correio do Brasil

   


Por que subestimar a inteligência do povo a ponto de misturar um evento futebolístico que dura um mês com mazelas que já vêm de séculos?

Darcy Ribeiro disse que o “beijo não é inimigo do conhecimento”. Conhecedor como poucos da alma humana e do povo brasileiro, sabia também que o samba não é inimigo do conhecimento. E o futebol?

O futebol, seguindo a lógica dos que entendem o povo, também não é. Estádios superfaturados, mortes de operários durante as obras, arquibancadas dominadas pela elite branca… É verdade. Mas em que país isso tudo não ocorre?

Por que insistir com a velha mentira do “só no Brasil”? Por que subestimar a inteligência do povo a ponto de misturar um evento futebolístico que dura um mês com mazelas que já vêm de séculos?

Em que país o futebol é uma paixão como aqui? Em que país se vê árabes e judeus torcendo juntos? Quando a bola rola, jogue o Brasil bem ou mal, as expressões de alegria ou a tristeza invadem barracos e mansões. A euforia do gol é capaz de fazer filhos e pais brigados se abraçarem.

Não, o futebol não é inimigo do conhecimento. Impossível entender o Brasil sem decifrar o olhar do menino que brinca com uma bola enlameada num campinho no topo de um morro. Olhar que não difere do menino que joga numa quadra coberta.

Quando você pergunta a uma criança brasileira: ‘o que você vai ser quando crescer?’ E ela te responde: ‘Vou ser jogador de futebol!’Há aí um desejo que ultrapassa fronteiras de cor e de classe.

Repito: o futebol não é inimigo do conhecimento. As mentes mais brilhantes que este país já teve torciam com tal fervor por seus times que certamente deixavam todo resto de lado na hora dos jogos. Isso não as impediu de brilhar em suas áreas.

A pequena área de um campo de futebol é metáfora perfeita para muitas situações cotidianas. Jogadores e goleiros podem ser endeusados por um gol ou massacrados por um erro. Assim no jogo como na vida.

Se na platéia dos estádios de uma Copa as classes mais baixas não têm vez, é também verdade que ali as classes mais altas revelam seus instintos. Desde a vibração de Ângela Merkel, tida como a mulher mais poderosa do mundo, até as vaias a presidentes e a hinos adversários. É tudo humano.

E é o exageradamente humano que aparece ali, nas arquibancadas e no campo. Ou será que alguém acha que ser humano é ser sempre bom? Ou será que alguém acha que morder é monstruoso e ser racista não? É tudo humano, ridiculamente humano.

O jogador punido por mordidas jamais foi punido por suas atitudes racistas. Dentre as crianças que acompanham os jogadores na execução dos hinos, raríssimas  são negras. Um simpatizante do nazismo invadiu o jogo Alemanha X Gana e a transmissão oficial cortou na hora as imagens. Quem é então inimigo do conhecimento?

O futebol ou quem o dirige? E os meios de comunicação? Será que são amigos do conhecimento? Quantos debatem futebol dando ao esporte a riqueza de paixões e ódios, de alegrias e choros, que ele abrange?

Essa reflexão não vale só para o futebol. De que adiantou o corredor negro Jesse Owens ganhar quatro ouros na casa e na cara de Hitler, nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, chegando a fazer o fürer se retirar do estádio, se o episódio não serviu de lição?

Quem se lembra que Nelson Mandela conquistou o inimigo incentivando um time de rúgbi a ser campeão da copa do mundo da categoria? Quem tem conhecimento de que o Santos, de Pelé, parou uma guerra durante ida à África, em 1969?

Definitivamente, nem o futebol nem os outros esportes são inimigos do conhecimento. Inimigos do conhecimento são os que o filtram, o manipulam, escolhendo quem são os inimigos do povo sem nunca mostrar os verdadeiros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário