O Banco Mundial mediu o efeito dos impostos e das políticas de transferência de renda sobre a desigualdade econômica em países da América Latina.
Os pesquisadores notaram que, no Brasil, no Uruguai e no México, esses fatores têm gerado uma redução sensível das disparidades de renda, enquanto no Peru o impacto foi pequeno, e na Bolívia, nulo.
O estudo, intitulado “Social gains in the balance” (“Ganhos sociais na balança'', em tradução literal), constatou que a desigualdade no Brasil diminui quando são descontados do rendimento das pessoas os tributos diretos, como o Imposto de Renda, o IPTU e o IPVA, assim como quando são contabilizados os impactos dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família.
Já os tributos indiretos (aqueles que são embutidos nos preços dos produtos, como o ICMS e o ISS) aumentam a desigualdade, mas não o bastante a ponto de reverter a redução provocada pelos impostos diretos e pela transferência de renda, segundo o Banco Mundial.
O trabalho mede a desigualdade econômica por meio do coeficiente de Gini, um indicador que varia de zero a um, em que zero significaria igualdade total e um seria uma situação de desigualdade extrema.
Foram definidos diferentes conceitos de renda e para cada um deles foi calculado o coeficiente de Gini, como indica o gráfico mais abaixo.
Renda de mercado: é o rendimento bruto das famílias, antes da intervenção do Estado por meio de impostos diretos e de programas de transferência de renda. Quando se considera a renda de mercado da população, o índice de Gini no Brasil é de 0,579.
Renda líquida de mercado: é a renda de mercado menos os impostos diretos. Nesse caso, o coeficiente de Gini cai para 0,565. Isso ocorre porque o Imposto de Renda é progressivo, ou seja, os que ganham menos são isentos ou pagam menos. Os impostos diretos retiram parte do rendimento dos mais ricos, diminuindo a desigualdade.
Renda disponível: é a renda líquida de mercado mais o dinheiro recebido por programas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Quando esse valor é contabilizado, temos a maior queda da desigualdade, em que o coeficiente de Gini fica em 0,544.
Renda pós-fiscal: é a renda disponível menos os impostos indiretos. Os pesquisadores calcularam o peso de tributos como ICMS e ISS na renda das famílias de diversos estratos sociais. Como os pobres são mais afetados do que os ricos por esse tipo de tributação, o coeficiente de Gini teve ligeira alta nesse cenário, para 0,546.
Opinião
É possível que alguns dos leitores que chegaram até aqui estejam indignados com a informação de que os tributos, ao menos os diretos, têm o lado bom de reduzir a desigualdade econômica.
Para muita gente, imposto é sinônimo de roubo. O raciocínio é mais ou menos o seguinte: “Sou eu que acordo cedo para trabalhar, fui eu que estudei e me preparei para chegar aonde cheguei. Por mérito próprio, sem nenhuma ajuda do Estado, construí meu patrimônio e não é certo que o governo tire parte dele para transferir a quem não teve a mesma competência que eu”.
Essa ideia só parece justa para quem não percebe a enorme desigualdade de oportunidades no país.
Vou tomar como exemplo um caso pessoal. O neto da empregada dos meus pais frequentou minha casa durante parte da infância. Ele se chamava Edicarlo e tinha a minha idade.
Eu sempre soube, não sei como, que teria um futuro melhor que o dele. Eu estudava em uma escola melhor e não tinha feito nada a mais que ele para merecer isso. Meus pais podem ter feito, mas eu não. Quando estávamos na terceira série, vi que ele ainda estava aprendendo multiplicação, enquanto eu já passava pela fração.
Depois, comecei a estudar inglês e francês fora da escola regular, o que, nem precisaria dizer, era impensável para o Di, como era chamado. Isso para não falar que meu pai me ensinava música e discutia comigo meus trabalhos de história e filosofia, enquanto minha mãe corrigia meu português (e até hoje lê todos os posts que escrevo, mas aí já são outros quinhentos).
Além do mais, meus vizinhos e colegas também eram filhos da classe média e desenvolvemos, juntos, padrões de comportamento que depois se revelaram adequados aos anseios dos empregadores. Mais tarde, vários dos meus amigos se infância se tornaram excelentes contatos profissionais. Enfim, tínhamos todas as condições de entrar no mercado de trabalho pelo andar de cima.
Já na faculdade, em uma determinada manhã recebi a notícia de que Di havia sido assassinado, após uma briga em um campeonato de futebol na favela. Além de não ter nenhum dos benefícios que eu tinha por ser de classe média, ele ainda enfrentava o desafio de morar em um ambiente altamente instável, para dizer o mínimo. Se Di quisesse chegar aonde eu cheguei, ele deveria ser muitas vezes mais competente do que eu.
Não considero racional, portanto, o argumento de que tudo o que tenho foi obtido exclusivamente por mérito meu. Sem falsa modéstia, acredito que aproveitei bem as oportunidades que tive, mas certamente tive mais oportunidades do que muita gente.
Há quem diga que o crescimento econômico seria suficiente para combater a desigualdade. Essa ideia está errada. A expansão do PIB (produto interno bruto) pode reduzir a pobreza, mas não a desigualdade. Pode aumentar a quantidade de bens e serviços a que parte dos pobres tem acesso, mas elevará também as posses dos mais ricos, sem diminuir significativamente a distância entre os dois grupos.
Por exemplo: os favelados só têm celular hoje por causa do capitalismo. Mas o mesmo capitalismo não deu a eles o acesso a boas escolas e hospitais nem aos contatos profissionais que os ricos têm desde pequenininhos – muito menos à herança a que os filhos de proprietários têm direito. Por mais que se melhorem as condições dos pobres, os ricos, se dependermos só do mercado, sempre terão melhores perspectivas.
A única forma que conheço de combater a desigualdade de oportunidades é o estabelecimento de políticas públicas com essa finalidade, nas áreas de educação, saúde e outras (além da transferência de renda como medida emergencial), que não podem ser bancadas senão com dinheiro de impostos. Projetos sociais de empresas são complementos importantes e talvez indispensáveis.
Mas é fundamental que existam programas sociais de Estado. Os empresários, quando desenvolvem um projeto em uma comunidade, por exemplo, podem aceitar as sugestões daqueles que são beneficiários. Porém, somente aceitam se quiserem. Já quando se trata de uma política de Estado em um país democrático, as decisões representam o conjunto dos cidadãos – até os mais pobres têm o direito de tentar influenciar e de exigir que as promessas sejam cumpridas. Se o setor público não oferece o retorno esperado, entramos em outro problema.
Aqui, precisaríamos de um complemento a esse estudo do Banco Mundial, que não examina a gestão do dinheiro público. (E nem é esse o objetivo da pesquisa, que é bastante abrangente e aprofundada ao mesmo tempo; o fato de não ter examinado essa outra seara não a torna, de maneira nenhuma, desimportante.)
Em tese, mesmo os impostos diretos podem ser usados para aumentar a desigualdade social – por exemplo, se toda a quantia arrecadada for distribuída para quem já é rico. Nessa questão, não há muito segredo. Para que o dinheiro público seja bem gasto, a população precisa acompanhar os movimentos dos seus representantes e examinar friamente suas atitudes. Friamente quer dizer: sem torcida. Sem argumentos falsos ou “memes” mentirosos.
Um exemplo clássico de argumento falso quando se fala em desigualdade de oportunidades é citar uma exceção como se ela tivesse potencial para virar regra. Claro que há pessoas que vieram de famílias extremamente pobres e subiram na vida. São casos excepcionais.
O que não faz sentido é dizer que, se um pobre ficou rico, todos deveriam ser capazes de ficar. Se isso fosse verdade, então todas as pessoas de classe média teriam de ser competentes o bastante para criar uma empresa como o Google ou Facebook. No Brasil, os que não conseguirem podem culpar os impostos, o custo Brasil etc. Mas mesmo nos EUA e em qualquer lugar do mundo, pessoas como Mark Zuckerberg são exceções. E as políticas públicas não podem ser direcionadas para as exceções.
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AdendoAlguns leitores parecem ter entendido que eu defendo a transferência de renda como única política pública de um governo.
Apesar de eu jamais ter dito isso, vou tentar deixar mais claro. Em certo parágrafo, afirmo: “A única forma que conheço de combater a desigualdade de oportunidades é o estabelecimento de políticas públicas com essa finalidade''. Para não haver dúvida, acrescento o seguinte: “nas áreas de educação, saúde e outras (além da transferência de renda como medida emergencial)''.
Adendo 2
Os resultados do Brasil apresentados pelo Banco Mundial foram baseados no estudo “Os efeitos da alta tributação no Brasil e dos gastos sociais sobre a distribuição da renda das famílias''. A íntegra desse trabalho pode ser acessada aqui.
(*)Sílvio Guedes Crespo é jornalista e cientista social e cobre economia e finanças há sete anos. Ganhou o prêmio Top Blog em 2010, pelo juri acadêmico, na categoria Economia, e o Prêmio CNH de Jornalismo Econômico em 2013, na categoria Blogs
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