Por Francisco Carlos Teixeira
Segundo relatório recentemente publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, a cada dia a polícia brasileira mata cinco pessoas. Da mesma forma, dezenas de policiais são mortos nos confrontos com o crime organizado, muitos deles – pessoas honradas – abatidos de forma desigual pelo tráfico fortemente armado. Outra organização independente, a “Human Rights Watch”, em relatório também deste ano, denunciou a sistematicidade da tortura nas prisões brasileiras, ressaltando que mesmo sob a custódia de um Estado (de Direito), a tortura é uma realidade cotidiana no Brasil. Em alguns casos recentes, como no Maranhão, as condições de tutela dos apenados chegou a causar condenações internacionais ao país. Refletir sobre números tão absurdos é uma necessidade imperiosa .
Em 28 de agosto de 1979 o general Figueiredo – aquele que pediu inutilmente para ser esquecido! – aprovava a Lei 6.683, que estabelecia a anistia para atos considerados criminosos, de motivação política, cometidos entre 1961 e 1979. A lei, aprovada ainda sob regime discricionário e autoritário, sem a plena capacidade do Congresso Nacional decidir, estabelecia um princípio único no mundo: os possíveis acusados de atos de violência e tortura cometidos sob cobertura do Estado autoritário eram colocados fora do alcance da Justiça. Em suma, os homens que torturam, sequestraram, mataram e se desfizeram de corpos e das provas de tais crimes, eram “anistiados” no mesmo diploma que “perdoava” os que lutaram pelo retorno da democracia no país.
A Anistia, uma luta de pessoas que sofreram a ditadura e do conjunto do povo brasileiro, foi, pela Lei de Figueiredo, violentada e depravada no Brasil. A Anistia, foi em princípio, um amplo movimento popular. Sob o impulso das ruas, de milhares de comitês e de centenas de atos pela liberdade de presos e retorno dos exilados, e pela reassunção de cargos de onde centenas de brasileiros foram alijados ao arrepio da lei exigia-se o restabelecimento dos direitos de todos os brasileiros. A ditadura, entretanto, abriu uma cunha jurídica no texto legal – de tipo jabuticaba, ou seja, tipicamente “nacional” - para proteger aqueles que torturaram e mataram pessoas indefesas, sob a tutela do Estado, na maioria dos casos em próprios, prédios, do Estado, sob administração do Estado e por funcionários do Estado. Assim, a ditadura se autoanistiou. Pegou, desavergonhadamente, carona nas lutas populares, para colocar no ninho alheio o seu ovo de impunidade. A violência era uma política de Estado e aquele Estado se autoanistiou em 1979.
Mas, não precisava ser assim. A Constituinte de 1988 poderia ter mudado isso. Não o fez. Sob impacto da ação do chamado “Centrão”, o então “blocão” da direita brasileira que armou o controle dos trabalhos da Assembleia Constituinte, bloqueou toda iniciativa nesta direção. Assim, o regime híbrido, dito de transição, entre a ditadura civil-militar e a democracia procurava, e conseguia, colocar-se à margem, para além, do alcance da Justiça. Os autores desta façanha – ou seja, os atores componentes da AD/Aliança de Democrática oriundos da ARENA/PDS que abandonaram, na vigésima quinta hora, a ditadura para unir-se ao projeto encabeçado por Tancredo Neves (trazidos por José Sarney, cujo o colo foi o depositório do levante nacional contra o autoritarismo) – foram capazes de barrar quaisquer esforços de imposição de punições, afastamentos ou demissão dos torturadores.
Da mesma forma, a o véu da corrupção foi mantido sob as instituições nacionais, confirmando a prática nacional de usar as leis somente contra os inimigos. No pós-Ditadura não houve CPIs, inquéritos ou investigações sobre homens e instituições que violaram as leis, que se enriqueceram de forma ilícita ou daqueles que quebraram as normas constitucionais em 1964 e nos anos subsequentes.
Tratava-se, claramente, dos limites de uma transição “tutelada”, onde homens do “antigo regime” reinavam como os condutores da abertura democrática. As presidências José Sarney e Collor de Mello, tiveram, claramente, a função de evitar que a história fosse escrita a partir de uma clara denúncia dos atos bárbaros da ditadura. Vieram, então, homens da resistência, que lutaram pela democracia: Itamar Franco, FHC e Lula da Silva. Cada um deles, ao seu modo, buscou corrigir os aspectos mais dolorosos do “esquecimento” do passado recente. Mas, em nome da “unidade nacional” e da “conciliação” de todos os brasileiros decidiram-se pelo “esquecimento” da história do tempo presente no Brasil. Todos que exigiam transparência, Justiça e restabelecimento de direitos foram vistos como “encrenqueiros”, “revanchistas” e “radicais”.
Este era o “transformismo” brasileiro: sempre negar o passado, sempre pregar o esquecimento, sempre defender a “paz social” – claro, que negros escravos, índios, os mortos e torturados, desde a Revolta dos Alfaiates na Bahia, passando pelas terríveis punições da Revolta da Armada, até os torturados durante o Estado Novo (1937-1945) e, depois, pelo Regime de 1964, culminando nos tantos “Amarildos” ficariam esquecidos em nome da “paz” e da “reconciliação” social.
“Glória, à todas as lutas inglórias, da nossa História”! Assim, a história do Brasil se construiu em continuidades e esquecimentos.
Tratava-se de “superar o passado”, “esquecer uma página triste da nossa história”. Queimar os registros da escravidão, para apagar a “mancha” na histórias nacional.
No entanto, esforços foram feitos por familiares dos presos e desaparecidos do Regime de 1964, colocando em questão o “esquecimento”, e algumas entidades, entre elas “Tortura Nunca Mais”, insistiram em buscar toda a verdade. Em enterrar, não a história do tempo presente, mas, os corpos ainda insepultos da ditadura. Coube a Dilma Rousseff, ela mesmo uma militante anti-ditadura, dar o passo mais avançado, instalando uma Comissão da Verdade.
A Comissão, de mandato e poderes restritos, possui o mérito de abrir aqui e ali frestas no silêncio e recusar-se, pela primeira vez no Brasil, a “virar a página” de um livro que ainda não foi escrito. Os resultados, ainda que parciais, já são uma ruptura, uma novidade, na sociedade brasileira. De posse de tais resultados cabe, ainda uma vez, bater ás portas do STF e pedir que o silencio e o esquecimento sejam, desta vez, quebrados. Por que? Porque é história, nossa história, nosso tempo e nossa obrigação. Mas, há algo ainda maior a exigir o fim do silêncio: a história, entre nós, se repete!
A tortura, como no geral a violência, a truculência e arrogância cotidiana nas relações sociais no Brasil – em especial entre a dita “elite” (aqueles mesmos que não andam de ônibus ou de trem e metrô e para os quais tudo vai bem!) e a massa do povo -, não foi uma invenção do regime de 1964. No máximo tornou-se, desde então, uma política de Estado. Nem mesmo, como poderíamos pensar de forma indulgente, foi produto de um ensinamento técnico importado do exterior, seja de manuais franceses da primeira Guerra da Indochina ou da Guerra da Argélia, seja dos manuais norte-americanos utilizados urbi et orbi. Uma elite com mais de 400 anos de escravidão não precisa de lições de como torturador seu próprio povo. A novidade era, em 1964, a transformação da tortura em política de Estado, sua extensão e sua aplicação por objetivos específicos e contra grupos de militância política cujos membros, muitos, eram oriundos da própria elite do país.
Antes, na escravidão e na República Velha, a tortura era para escravos, pobres, migrantes – internos e externos – e marginais, no melhor sentido da expressão, todos aqueles estranhos à “boa sociedade”.
Foi o Estado Novo (1937-1945) que generalizou, ampliou, treinou e montou as bases da violência sistemática de Estado como política no Brasil. Órgãos públicos como Deops, Dops, Polícia Especial – foram, numa expressão corrente – “o ovo da serpente”, todos gestados no Estado Novo. Depois, na “democracia” estabelecida em 1945 e tolerada pelas elites até 1964 (malgrado os golpes “falhados” em 1954, 1955, 1956 e 1961) criaram-se centros policiais de tortura e morte, com os mesmos homens do Estado Novo: as “invernadas”, como de Olaria no Rio de Janeiro, as “escuderias” policiais – como a autodenominada “Le Cocq” -, as “Rotas” e os esquadrões que torturavam e matavam.
Depois de 1964, os esquadrões da morte vicejaram. Policiais treinados na torturado foram emprestados aos órgãos militares, delegados organizaram “repúblicas” próprias onde exerciam o direito de vida e morte sobre oponentes do regimes, criminosos de direito comum ou quaisquer outros que merecessem sua atenção.
Pelo menos em duas ocasiões, uma em 1963/1964, e a outra de quando da criação da chamada Operação OBAN, em 1969, policias, militares, grandes empresários e autoridades civis se uniram para montar e financiar centros de tortura no país. Muitos destes policiais, alguns com codinomes de “doutor” ou de “capitão” passaram-se, mais tarde, pura e simplesmente para o crime organizado, e lá estão, ainda hoje, impunemente.
A cadeia explicativa da tortura no Brasil (enquanto uma política sistemática) ainda hoje vigente une os porões da polícia do Estado Novo, os órgãos de repressão mantidos vivos na “democracia” de 1946-1964 (como os Dops), a simbiose polícia PMs militares e grandes empresários temerosos do “comunismo”, com autoridades civis, aos quais juntar-se-iam a polícia civil, os paramilitares e milicianos dos nossos dias.
Uma exemplar história sem rupturas
Deixamos passar, ignoramos, maltratamos todas as possibilidades, desde 1945, passando pela Constituição de 1988, até hoje, de criar formas jurídicas, e princípios políticos, que pudessem impedir a repetição do trauma histórico, fundante da pior vicio da vida política brasileira: a violência sistemática contra pobres. Pior de tudo: os políticos que fundaram e refundaram a “democracia” brasileira, como os liberais de 1945 e 1946 e os homens no poder em 1985 e 1988, preferiram um discurso, e uma construção da narrativa de nossa história, centrada no “esquecimento”, em “virar a página”, em “deixar no passado” e em “perdoar à todos” (como se vítimas e algozes fossem iguais) que enlutaram e envergonharam a história do tempo presente no Brasil.
No Brasil, nenhum lugar seria Nuremberg!
E no Brasil, ninguém seria acusado de tramar contra a liberdade, em organizar-se, em prédios e sob a cobertura do poder público, para sequestrar, torturar, matar, ocultar e, então, mais uma vez, repetir toda a história. Os homens que compuseram o Tribunal de Segurança Nacional, entre 1935 e 1945, não só não foram tocados ou “incomodados” em seus postos e nos seus salários, como ganharam cargos prestigiosos, na “democracia” de 1945-1964, na mais alta magistratura do pais. Muitos tornaram-se ministros do Supremo Tribunal Federal e de outras instâncias. Torturadores do Estado Novo tornaram-se delegados da polícia e do Dops depois de 1945 e foram eles que ajudaram e participaram da repressão depois de 1964. Suas vítimas foram esquecidas, os crimes ocultados. Trauma transforma em recalque e repetição.
Crimes mal-ditos, ocultados, como traumas guardados no fundo d´alma, se repetem. Os mesmos homens, “grandes” juristas como Francisco Campos e Carlos Medeiros, que apoiaram e fundaram o Estado Novo, tornaram-se os redatores dos Atos Institucionais liberticídas de 1964 e chefes de polícia de 1937, como Filinto Müller, assumiram funções de coordenação da repressão e de poder depois de 1964. O trauma mal-dito, oculto, transforma-se me repetição. Os torturados de 1935 e 1937 renasceram nos “Amarildos” de 2013.
Mas, nem então, foi dito basta! A nossa história não se repete como comédia, como quereria Marx. Pior, a história do Brasil gagueja o mesmo trauma: da escravidão, das Leis Celeradas da República Velha, dos porões do Estado Novo até o Regime de 1964 somos uma sucessão de gaguejos. Graciliano Ramos, Stuart Angel Jones, Amarildo: são todos um só!
Contudo, o pior gaguejo, o entalo da fala, o lapso da razão, deu-se em 2010. Portanto, em plena democracia da Nova República fundada em 1988. Neste ano, o Supremo Tribunal Federal, recusou a ação da OAB questionando a validade da Lei 6.683 e reafirmaram a anistia dos torturadores. A democracia brasileira, e suas sumidades jurídicas, tiveram uma chance única na proposta da OAB: romper com as continuidades, impor o respeito pela dignidade humana e a punição pelo pior de todos os crimes. O STF, então, recusou-se “a abrir velhas feridas”.
Indo além, a Justiça brasileira estendeu a anistia aos torturadores vindouros num futuro imprevisível: crimes em curso, como sequestro e ocultação de cadáveres, e, acima de tudo, os crimes posteriores à própria anistia – como o atentados contra os jovens do Riocentro, a OAB e o poder legislativo do Rio nos últimos anos da ditadura – foram prévia, e futuramente, anistiados. Na ocasião, a justiça encenou uma farsa, e em 2010 o STF tornou tal farsa numa tragédia permanente da vida brasileira.
Uma massa de policiais civis, militares e alcaguetes comemoraram sua liberdade de tipo “007”: a liberdade para matar!
Quando deu-se de forma debochada, evidente, pornográfica a tortura, morte e ocultação do pedreiro Amarildo, no Rio em 2013, estávamos repetindo, gaguejando, a nossa própria história. Os crimes cometidos contra as massas de escravos brasileiros, contra os trabalhadores migrantes, estrangeiros e nacionais, na República Velha, contra os oponentes do Estado Novo e, enfim, dos resistentes contra o regime de 1964 se repetiriam de forma sistemática e crescente. Agora, restabelecida formalmente a “democracia”, as vítimas não seriam mais grupos de advogados, militantes, professores e estudantes da classe média brasileira. Depois de 1988, com a anistia e a decisiva e forte ação do STF de não punir a tortura no Brasil, os trabalhadores, os “associais” e “marginais”, os pobres, negros, gays e índios seriam o alvo central de um poder que nunca prestou conta, em toda nossa história, de seus crimes. Mata-se sistematicamente. Impunemente. Abertamente. Cadáveres são ocultados por funcionários públicos, arrastados em praça pública por viaturas públicas; negros nus reencenam involuntariamente aquarelas de Debret, amarrados e espancados em postes públicos, por “justiceiros” e por homens que, com fardas e viaturas públicas, somam mais de cinco dezenas de mortes por “autos de resistência”, protegidos pelo Estado e amparados pela Justiça.
A decisão do STF, em 2010, como o general Figueiredo em 1979, será inesquecível. A decisão dos nossos juízes supremos anistiou previamente, por ausência de sentido de justiça e ignorância de nossa história, aqueles que matariam Amarildo e, agora, Dona Claudia Ferreira.
(*) Professor Titular de História Contemporânea/IUPERJ
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