segunda-feira, 24 de março de 2014

A pobreza do outro e os novos tempos da Igreja


‘Se tenho fome, o problema é biológico. Se meu irmão tem fome, o problema é teológico’.
 
 
Por Maria Clara Bingemer*

A Igreja respira encantada com o papa Francisco e o movimento que inaugurou e mantém de volta ao Concílio Vaticano II e sua renovação. Seu pontificado vem marcado por essa retomada do espírito de liberdade e abertura daquele inesquecível evento eclesial que aconteceu há 50 anos.

Na América Latina, a recepção deste Concílio se deu em uma direção bem marcada de fidelidade ao contexto do continente, feito de pobreza, injustiça e opressão. Toda a Igreja do continente releu o grande evento do Vaticano II com uma atenção qualificada àquelas grandes maiorias que se encontravam mais necessitadas, mais fragilizadas e mais empobrecidas. A chamada opção preferencial pelos pobres foi o nome cunhado para "batizar" essa escolha evangélica feita pela comunidade eclesial naquele momento histórico.

Após um tempo longo que já foi chamado por grandes teólogos e pessoas da Igreja de "inverno eclesial", onde parecia que – entre outras a primordialidade dos pobres havia ficado na sombra, eis que foi lançado recentemente em Roma o livro do prefeito para a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, Gerhard Müller: Ao lado dos pobres. Trata-se da mais alta autoridade em termos de doutrina da Igreja Católica e, portanto, guardião da indiscutível legitimidade do conteúdo do livro.

Mas há mais: Müller não escreveu o livro sozinho. Acompanhou-o outro teólogo: o pai da Teologia da Libertação, o sacerdote peruano da Ordem dos Pregadores, Gustavo Gutiérrez. No prefácio, Joseph Sayer, presidente da Obra Assistencial Misereor, identifica o teólogo peruano como uma pessoa apaixonada.  E como não haveria de sê-lo quem passou a vida servindo os pobres, vivendo junto a eles e lidando apaixonadamente com a pergunta: “Como se pode falar do amor de Deus perante a miséria dos pobres e a injustiça do mundo?"

Ou seja, o alerta lançado por Hans Jonas após a Segunda Grande Guerra e o Holocausto nazista — "Como falar de Deus depois de Auschwitz"? — ecoa novamente diante de outro genocídio: aquele cotidiano que mata continuamente milhares e mesmo milhões de pessoas em todo o planeta. Gustavo Gutiérrez  descobriu, vivendo perto dos pobres, que toda teologia deve fazer-se esta pergunta e deixar-se atingir por ela, para então construir seu discurso sobre Deus.  Pois, concordando com a frase de Berdiaev, se eu tenho fome, é um problema biológico. Se o meu irmão tem fome, é um problema teológico”.

E foi justamente a pobreza do outro a interpelar com pungente insistência a fé que levou Gutiérrez a criar a corrente chamada Teologia da Libertação, que posteriormente ganhou muitos adeptos não apenas na América Latina mas também no Hemisfério Norte e no mundo inteiro.  Essa teologia e seus protagonistas também conheceram dificuldades e conflitos devido à opção de fazer teologia ao lado dos pobres e a partir de suas interpelações.  Foram convocadas a testemunhar e provar sua pertença eclesial e sua ortodoxia.

A teologia de Gustavo Gutiérrez ofereceu essa prova em suas obras, nas quais o compromisso inarredável com os pobres se alia indissoluvelmente à mais profunda espiritualidade cristã e à mais profunda fidelidade à Igreja.  Ela ajudou a Igreja a redescobrir o compromisso com a justiça e o anúncio da boa-nova aos pobres como um de seus imperativos centrais.

O papa Francisco, em prólogo feito ao livro, agradece profundamente aos autores que chamam assim a atenção para este tema fulcral na Igreja: a pobreza do outro, que é critério de verificação da confissão de fé cristã.  Afirma sua esperança de que os leitores terão o coração tocado pela exigência de uma conversão a esses que, maltratados pela sociedade injusta, são os prediletos de Deus. E diz literalmente: ´´E bem saibam, amigos leitores, que nesta exigência e nesta via me encontram desde agora com vocês, como irmão e sincero companheiro de caminho´´.

O cardeal Müller, o teólogo Gutiérrez e o papa Francisco querem dizer que enquanto a pobreza empalidecer no rosto do outro o fulgor de sua imagem e semelhança com Deus, a Igreja não pode descansar.  O que importa nem é tanto tal ou qual corrente teológica.  Importa, sim, a realidade vital dos pobres.  Enquanto esta for uma interpelação dolorosa e cruel lançada à consciência da humanidade, as preocupações e a reflexão da Teologia da Libertação estarão mais do que vivas.
 
SIR/Jornal do Brasil
 
* Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga e professora do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de vários livros, como "Deus amor: Graça que habita em nós" (Editora Paulinas) e "O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença" (Editora Rocco).
 

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