Por Miguel do Rosário
Do blog O Cafezinho:
Se vale alguma coisa viver nossa época, é assistir a esses “motins” na grande imprensa. São raros, muito raros, e protagonizados exclusivamente por jornalistas veteranos, cujo longo tempo de permanência no jornal lhes dá autoconfiança para divergirem das linhas editoriais determinadas pelos proprietários e seus capatazes internos.
Na verdade, acontece apenas na Folha. Globo, Estadão e Folha, os outros três do grupo dos quatro cavaleiros do apocalipse, mantêm um cada vez mais rígido controle sobre eventuais dissidências internas. Quem fizesse, no Globo, algo parecido ao que faz Janio de Freitas e agora Clovis Rossi, fez hoje na Folha, seria sumariamente demitido no dia seguinte.
Aliás, por isso eu costumo dizer a meus amigos que, hoje em dia no Brasil, jornalistas são os profissionais com menos direito à liberdade de expressão entre todos os trabalhadores.
Rossi denuncia o quanto é ridículo que nossos endinheirados fiquem “nervosinhos”, pessimistas e indignados enquanto enchem a pança. Os pobres, diz Rossi, é que deveriam estar tristes com o que o governo gasta em juros.
Eu acrescentaria o seguinte: já que tem gente querendo protestar durante a Copa, poderiam pedir a volta da CPMF. José Gomes Temporão, ministro da Saúde no governo Lula, em artigo na última edição da Carta Capital, lembra que a CPMF (o imposto sobre o cheque) corresponderia a R$ 50 bilhões por ano. Ou seja, nos sete anos em que ela deixou de existir, e incluindo 2014, foram tirados R$ 350 bilhões da saúde. Esse valor é quantas vezes superior aos gastos com estádios da Copa (sendo que os estádios foram feitos, em sua maioria, com dinheiro privado, embora com financiamentos do BNDES)? Quantas pessoas poderiam ser tratadas, quantas vidas seriam salvas, se a CPMF não fosse derrubada após uma campanha midiática liderada, como sempre, pelo Globo, pela direita, e com apoio inclusive de setores irresponsáveis da ultra-esquerda?
Outra coisa que eu agregaria ao texto de Clovis Rossi é que os “nervosinhos” estão quase todos aqui no Brasil, porque os investidores estrangeiros continuam acreditando no Brasil e tanto os investimentos produtivos (investimento estrangeiro direto), quanto os investimentos na bolsa, tem registrado um aumento constante.
Por uma ironia triste atual da nossa história, só quem não acredita no Brasil são os ricaços do Brasil. Talvez porque lêem demais nossa mídia urubuzeira. Investidores estrangeiros e os pobres do Brasil, imunes à mídia brasileira, continuam acreditando no país: os primeiros apostando alguns bilhões, na construção de novas fábricas por aqui; outros trabalhando duro, e votando na esquerda para presidente.
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Quem deveria ficar “nervosinho”
Por Clovis Rossi, na Folha.
Há algo de profundamente errado em um país, um certo Brasil, em que os ricos choram (e de barriga cheia), ao passo que os pobres parecem relativamente felizes. Na ponta dos mais ricos, refiro-me à pesquisa da consultoria Grant Thornton que “Mercado” publica hoje e que mostra um absurdo recorde de pessimismo entre os executivos brasileiros.
Na ponta dos pobres, valem as sucessivas pesquisas que mostram satisfação majoritária com o governo Dilma Rousseff, a ponto de 11 de cada 10 analistas apostarem, hoje por hoje, na reeleição da presidente. Como ninguém vota em governo que o faz infeliz, só se pode concluir que uma fatia majoritária dos brasileiros, especialmente os pobres, está rindo.
Que a economia brasileira tem problemas, ricos, pobres e remediados estão cansados de saber. Problemas conjunturais (o crescimento medíocre dos anos Dilma ou a forte queda do saldo comercial, por exemplo). Problemas estruturais que se arrastam há tantos séculos que nem é preciso relacioná-los aqui. Daí, no entanto, a um pessimismo recorde vai um abismo.
Um país em que há pleno emprego e crescimento da renda não pode ser campeão de pessimismo nem pode ficar em 32º lugar, entre 45, no campeonato mundial de pessimismo. É grotesco.
Grotesca igualmente é uma das aparentes razões para o surto de pessimismo que vem grassando desde meados do ano passado. Seria a diminuição do superavit primário, ou seja, do que sobra de dinheiro nos cofres públicos depois de descontadas as despesas e tem servido exclusivamente para o pagamento dos juros da dívida. Foi por isso que o ministro Guido Mantega apressou-se a divulgar os dados de 2013, para acalmar os “nervosinhos”.
Quem deveria ficar nervoso, mas muito nervoso, não apenas “nervosinho”, é exatamente quem está contente com o governo.
Basta fazer a comparação: os portadores de títulos da dívida pública (serão quantos? Um milhão de famílias? Cinco milhões no máximo?) receberam do governo, no ano passado, R$ 75 bilhões. É exatamente quatro vezes mais do que os R$ 18,5 bilhões pagos às 14 milhões de famílias (ou 50 milhões de pessoas) que recebem o Bolsa Família.
Quatro vezes mais recursos públicos para quem tem dinheiro para investir em papéis do governo do que para quem não tem renda. Seria um escândalo se os pobres tivessem voz. Mas quem a tem são os rentistas que ficam reclamando da redução do que recebem, como se houvesse de fato a mais remota hipótese de que o governo deixe de honrar sua dívida. Fazem um baita ruído com os truques contábeis que permitiram o superavit, mas não dizem que, com truque ou sem truque, a dívida líquida diminuiu este ano, de 35,16% do PIB em janeiro para 33,9% em novembro, última medição disponível.
Ou, posto de outra forma: o governo, supostamente irresponsável, gasta menos do que arrecada e ainda pinga 1,3% de tudo o que o país produz de bens e serviços na conta dos mais ricos e apenas 0,4% na dos pobres entre os pobres. E os ricos ainda choram.
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