quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Hospício de Barbacena: loucos ou excluídos?

Por Cynara Menezes

Cerca de 70% dos ¨loucos¨ do hospício não tinham de fato problemas mentais. Eram filhos rebeldes internados à força pela família.



(foto: Luiz Alfredo/Revista O Cruzeiro)

No conto Sorôco, sua mãe, sua filha (Primeiras Estórias, 1962), João Guimarães Rosa conta a história de um homem que leva a mãe e a mulher para a estação do trem que as transportará para o hospício em Barbacena (MG).
“O que os outros se diziam: que Sorôco tinha tido muita paciência. Sendo que não ia sentir falta dessas transtornadas pobrezinhas, era até um alívio. Isso não tinha cura, elas não iam voltar, nunca mais. De antes, Sorôco agüentara de repassar tantas desgraças, de morar com as duas, pelejava. Daí, com os anos, elas pioraram, ele não dava mais conta, teve de chamar ajuda, que foi preciso. Tiveram que olhar em socorro dele, determinar de dar as providências de mercê. Quem pagava tudo era o Governo, que tinha mandado o carro. Por forma que, por força disso, agora iam remir com as duas, em hospícios. O se seguir.”
Entre 1903 e meados da década de 1980 multidões de pessoas supostamente loucas eram enviadas ao Hospital Colônia de Barbacena. Provavelmente como a mãe e a filha do viúvo Sorôco, a maioria dos que foram parar ali não precisava ser internada: cerca de 70% dos “loucos” de Barbacena não tinham de fato problemas mentais. Eram filhos rebeldes internados à força pela família, homossexuais, mendigos, prostitutas, viciados em drogas, mulheres rejeitadas pelos maridos. “Um depósito de improdutivos, indesejados, desafetos”, como define o cineasta mineiro Helvécio Ratton em seu documentário Em Nome da Razão (1979). Mais ou menos como algumas de nossas cadeias hoje em dia.
As imagens em preto e branco feitas por Ratton nos transportam imediatamente para o inferno: pessoas nuas, jogadas pelo chão, jovens, idosos e até crianças. O cineasta conseguiu penetrar os muros do hospital graças ao psiquiatra italiano Franco Basaglia, referência mundial na reformulação do tratamento de doenças mentais, que liderava naquele momento o movimento anti-manicomial e abriu as portas de Barbacena a um grupo de defensores dos Direitos Humanos. Entre eles, o jovem Helvécio Ratton, que tinha 30 anos quando fez o documentário. Basaglia comparou Barbacena a um campo de concentração nazista. Calcula-se que 60 mil pessoas tenham morrido no Colônia.


(Ratton em ação em Barbacena)

Fiquei impressionada particularmente com a imagem de uma moça que Ratton mostra em seu documentário, cantando, à capela, seu dramático cotidiano no hospital… Quem seria? Uma sambista? Certamente alguém que jamais seria internada nos dias de hoje. Outro rapaz, levado para lá pela polícia, retorna para a família lobotomizado, como um robô.
Recentemente, a jornalista Daniela Arbex publicou o livro Holocausto Brasileiro (Geração Editorial) em que reconta a tragédia do Hospital Colônia de Barbacena a partir de documentos históricos, de reportagens como a de Luiz Alfredo Ferreira para a revista O Cruzeiro, em 1961, e relatos de sobreviventes. Daniela falou com o blog por e-mail:
Cynara Menezes – Qual o perfil dos internos em Barbacena?
Daniela Arbex – 70% não sofriam de doença mental. Muitos eram alcoolistas, prostitutas, meninas que haviam perdido a virgindade antes do casamento, pessoas tímidas. Havia de tudo, inclusive os considerados insanos.
CM – Me parece, vendo o filme, que havia também alguns autistas…
DA – Sim, muitas crianças enviadas para lá tinham algum tipo de deficiência física ou mental. Eram os enjeitados pela sociedade e suas famílias. Havia cerca de 30 crianças na unidade.
CM – No caso específico das mulheres: rebeldia era uma razão para internação?
DA – Era, sim. Muitas meninas foram enviadas para o Colônia como forma de punição por terem desafiado as normas vigentes. A maioria morreu por lá.
CM – Após escrever o livro, isso alterou de alguma maneira tua percepção sobre a prática de internar doentes mentais ou viciados em drogas?
DA – O livro consolidou a visão que eu já tinha sobre a necessidade de humanização dos nossos modelos de atendimento. Recuperação e tratamento caminham lado a lado com acolhimento.

Leiam o livro e vejam o filme de Helvécio Ratton. Para se dar conta, como ele costuma dizer, “do que os seres humanos são capazes de fazer com outros seres humanos”.

Publicado em 31 de outubro de 2013
no site socialistamorena.cartacapital.com.br

 

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