O contato com os pobres foi transformando Bergoglio e suas opções, afirma autor de livro sobre o Papa.
Por José Maria Mayrink - O Estado de S. Paulo
Do papa Francisco só se deve esperar surpresas, adverte Francesco Strazzari,
de 69 anos, pároco da pequena Sovizzo, localizada nas montanhas vizinhas de
Vicenza, no norte da Itália. Strazzari acredita que, após a criação do Conselho
de Cardeais para ajudá-lo a governar a Igreja, Francisco tomará medidas radicais
e inovadoras, apesar da resistência indisfarçável de parte da Cúria Romana, "a
lepra do papado", como ele afirmou numa entrevista ao jornal La Repubblica,
divulgada na semana passada. Funcionários eclesiásticos do Vaticano que não
reconhecem o "cheiro das ovelhas" serão devolvidos às suas dioceses de origem ou
às congregações religiosas.
Francisco poderá permitir o diaconato para as mulheres e a ordenação
sacerdotal de homens casados. Na visão de Strazzari, no entanto, o papa não
mudará a doutrina clássica da Igreja com relação ao aborto, embora olhe com
compaixão a pessoa que aborta. Autor do livro Na Argentina para Conhecer o Papa
Bergoglio, a ser lançado nas próximas semanas, com apresentação do brasileiro
José Oscar Beozzo, o historiador, teólogo e jornalista Strazzari trabalha na
revista Il Regno, de Bolonha, pela qual correu boa parte do mundo para escrever
dossiês sobre Vietnã, Laos, Camboja, China, Irã, Iraque e Líbano, além de países
europeus no tempo do comunismo.
Na Argentina, chegou à conclusão de que não é possível ter uma imagem objetiva de Bergoglio sem inseri-lo no contexto do peronismo, da posição da hierarquia da Igreja no tempo da ditadura militar, da crise dos jesuítas argentinos e da situação econômica dos Kirchners. "Minha avaliação é que Bergoglio foi caminhando progressivamente, amadurecendo e fortalecendo a opção por uma Igreja dos pobres e para os pobres", afirma Strazzari em entrevista ao Aliás. As periferias, de que o papa Francisco tanto fala, o transformaram.
Quais as principais marcas desses sete primeiros meses do pontificado de Francisco?
Acredito que as características principais do papa argentino podem se resumir numa palavra: estilo. Se, como dizia em 1753 o escritor francês Buffon, o estilo é o homem, pode-se captar de seu estilo quem é o papa Francisco. Ele não é filósofo nem teólogo no sentido estrito, mas um pastoralista que carrega no coração a aventura humana nas suas múltiplas periferias. É um bispo da grande Igreja que tem solicitude por todas as igrejas. É um apóstolo, segundo as cartas de Paulo a Timóteo. E é um papa que enfim rompe com os esquemas tradicionais e tradicionalistas que tinham feito do ofício petrino uma função anacrônica e incapaz de respirar a plenos pulmões.
A pregação de uma Igreja pobre para os pobres está conquistando adeptos na hierarquia?
Pela conversa que tive com pessoas próximas dele, o papa Francisco tem duas palavras-chave: Jesus Cristo e os pobres. Tudo gira em torno dessa sua preocupação, que por sinal é a opção dos jesuítas, a partir do grande e mítico Arrupe, o superior geral dos jesuítas nos anos 1980 que enfrentou não poucas dificuldades até da parte do papa João Paulo II, que lhe impôs a destituição, perturbando toda a Companhia de Jesus. E essas duas palavras-chave remetem de imediato ao povo. Basta ver sua opção: não à residência renascentista no Palácio Pontifício. Mas não somente isso.
Mas como a Cúria Romana, "a lepra do papado", vai reagir às críticas e investidas de Francisco? Os poderosos do Vaticano tentarão barrar a ação do papa?
Que parte da Cúria Roma não gosta do estilo do papa Francisco salta aos olhos de todos. As resistências estão na ordem do dia. Os ataques, às vezes dissimulados, de prelados são confiados a determinados órgãos de imprensa que, nestes últimos tempos, se tornaram mais frequentes. Talvez também porque o papa Francisco dialogue e fale a jornais leigos como o La Repubblica, no qual seu fundador, Eugenio Scalfari, ateu declarado, lhe deu o espaço de três páginas em plena crise política italiana, relegando essa, por assim dizer, a segundo plano. Que muitos na Cúria pensem estar com os dias contados é uma coisa que se diz e se constata. Há muitos "empregados" eclesiásticos no Vaticano que não sabem o que é o cheiro das ovelhas. Serão devolvidos às dioceses de origem ou às congregações e institutos religiosos.
O Conselho de Cardeais tende a ser um conselho fixo?
Sim, acho que um dos projetos do papa é fazer do Conselho de Cardeais (G8) um espécie de Conselho permanente, que teve sua origem nos votos expressos dos cardeais reunidos no conclave. O papa Francisco precisa dele, neste momento, para enfrentar os muitos problemas da Igreja que se acumularam nos últimos anos. Existem outros organismos (sínodo, congregações, conselhos pontifícios, conferências episcopais) com os quais o Conselho de Cardeais deverá estar em estreito contato.
É possível prever quais serão os próximos passos desse papa tão surpreendente?
Do papa Francisco só se deve esperar surpresas. Chamamos de surpresas porque, no passado recente, estávamos habituados a certa monotonia.
Homens e mulheres divorciados que tornaram a casar poderão ter mais acolhida na Igreja e acesso aos sacramentos, particularmente à eucaristia?
Creio que o papa Francisco retomará algumas colocações de bispos, teólogos e pastoralistas que, no passado, desafiando as iras da Congregação para a Doutrina da Fé, haviam chamado atenção dos fiéis e alimentado esperanças. Refiro-me em particular ao documento dos bispos do Reno (os grandes teólogos bispos Lehmann, Kasper, Seier), que apontava um caminho corajoso, doutrinariamente correto, para enfrentar o problema. O então prefeito da Congregação, cardeal Ratzinger, estigmatizou o documento com dureza e ironia. Voltou a circular também o estudo do grande teólogo moral B. Haring, que muito sofreu da parte da Congregação romana. Estão aparecendo outras publicações que convidam a hierarquia a enfrentar o problema com carinho e misericórdia.
Pode-se esperar a ordenação de homens casados para o ministério sacerdotal?
Certamente sim. O problema está debaixo do tapete há muitos anos. Foi posto em evidência a partir dos anos 1980 por cardeais como Pellegrino, de Turim; Konig, de Viena; Alfrink, de Utrecht; Hume, de Londres; Lorscheider, de Fortaleza; Martini, de Milão. Para não falar de teólogos do calibre de Rahner, Congar, Schillebeeckx. Perdeu-se muito tempo discutindo sobre viri probati (homens tirados da comunidade para receber a ordenação presbiteral) e esquecendo-se, como observa o ex-mestre geral dos dominicanos Timothy Radcliffe, que o ponto de partida é o batismo, não a ordem sacra.
Uma maior participação da mulher na Igreja inclui a discussão da ordenação?
Com relação às sacerdotisas, muitos teólogos sérios pensam que não se trata de uma questão dogmática, mas disciplinar. Então, a exclusão (das mulheres) se baseia em elementos que não têm suporte bíblico, como, aliás, se expressou uma comissão de especialistas biblistas, nos anos 1970, da qual fazia parte o jesuíta Carlo Maria Martini. É outro o discurso para as diaconisas, a favor das quais se vão multiplicando os pedidos de reintrodução. O cardeal Kasper e parte dos bispos alemães recentemente pediram isso.
Haverá avanços com relação aos ortodoxos e evangélicos? Até que ponto?
Esperamos que o papa Francisco incentive o movimento ecumênico, que está vivendo um tempo de hibernação. Ele, mestre nos gestos, intervirá para encontrar-se, a dois, sobretudo com os patriarcas das Igrejas cristãs. Esperam-se e estudam-se encontros com Bartolomeu de Constantinopla e Cirilo de Moscou.
Como o papa Francisco tratará o problema do aborto?
O aborto é com certeza uma chaga. O papa Francisco não tem intenção de ir além do ensinamento da doutrina clássica da Igreja. Mas se compadece com a pessoa que aborta. Enfrenta o drama do aborto como pastor, não como jurista. O problema/drama do aborto, sobretudo em algumas partes do mundo, é uma chaga que vai além de um indivíduo, causada por culturas e situações de degradação. É esse o motivo pelo qual o aborto, enquanto tal, não está na ribalta. Não porque seja inegociável, mas porque está inserido em contextos mais amplos.
A pobreza inclui o combate à riqueza ou sinais de riqueza no Vaticano?
A pobreza da Igreja e na Igreja é um ponto-chave de Francisco. Tem dado provas disso em meio a enormes dificuldades, metendo as mãos em instituições econômico-financeiras que certamente não foram modelo de clareza. Será um trabalho duro, que em grande parte dependerá da escolha de sagazes colaboradores. A escolha do arcebispo Parolin para secretário de Estado é uma esperança.
O senhor escreveu um livro sobre Francisco chamado Na Argentina para Conhecer o Papa Bergoglio. Por que esse enfoque local?
Parti da ideia de que não se pode ter uma imagem objetiva do papa Bergoglio se ele não for inserido na história de seu país: o peronismo, as crises dos jesuítas argentinos, a posição da hierarquia argentina no tempo da ditadura, a situação econômica com os Kirchners. Minha avaliação é que, no curso de sua história, Bergoglio foi caminhando progressivamente, amadurecendo e fortalecendo a opção por uma Igreja dos pobres e com os pobres. Um pouco como Câmara (d. Hélder) no Brasil, Samuel Ruiz no México e Romero (Oscar) em El Salvador. No primeiro período da sua vida, como provincial dos jesuítas, não era assim, como aliás ele mesmo admitiu recentemente. As periferias o transformaram.
Osservatore Romano/Reuters
Francisco diz não compartilhar da visão
vaticanocêntrica da Igreja
Na Argentina, chegou à conclusão de que não é possível ter uma imagem objetiva de Bergoglio sem inseri-lo no contexto do peronismo, da posição da hierarquia da Igreja no tempo da ditadura militar, da crise dos jesuítas argentinos e da situação econômica dos Kirchners. "Minha avaliação é que Bergoglio foi caminhando progressivamente, amadurecendo e fortalecendo a opção por uma Igreja dos pobres e para os pobres", afirma Strazzari em entrevista ao Aliás. As periferias, de que o papa Francisco tanto fala, o transformaram.
Quais as principais marcas desses sete primeiros meses do pontificado de Francisco?
Acredito que as características principais do papa argentino podem se resumir numa palavra: estilo. Se, como dizia em 1753 o escritor francês Buffon, o estilo é o homem, pode-se captar de seu estilo quem é o papa Francisco. Ele não é filósofo nem teólogo no sentido estrito, mas um pastoralista que carrega no coração a aventura humana nas suas múltiplas periferias. É um bispo da grande Igreja que tem solicitude por todas as igrejas. É um apóstolo, segundo as cartas de Paulo a Timóteo. E é um papa que enfim rompe com os esquemas tradicionais e tradicionalistas que tinham feito do ofício petrino uma função anacrônica e incapaz de respirar a plenos pulmões.
A pregação de uma Igreja pobre para os pobres está conquistando adeptos na hierarquia?
Pela conversa que tive com pessoas próximas dele, o papa Francisco tem duas palavras-chave: Jesus Cristo e os pobres. Tudo gira em torno dessa sua preocupação, que por sinal é a opção dos jesuítas, a partir do grande e mítico Arrupe, o superior geral dos jesuítas nos anos 1980 que enfrentou não poucas dificuldades até da parte do papa João Paulo II, que lhe impôs a destituição, perturbando toda a Companhia de Jesus. E essas duas palavras-chave remetem de imediato ao povo. Basta ver sua opção: não à residência renascentista no Palácio Pontifício. Mas não somente isso.
Mas como a Cúria Romana, "a lepra do papado", vai reagir às críticas e investidas de Francisco? Os poderosos do Vaticano tentarão barrar a ação do papa?
Que parte da Cúria Roma não gosta do estilo do papa Francisco salta aos olhos de todos. As resistências estão na ordem do dia. Os ataques, às vezes dissimulados, de prelados são confiados a determinados órgãos de imprensa que, nestes últimos tempos, se tornaram mais frequentes. Talvez também porque o papa Francisco dialogue e fale a jornais leigos como o La Repubblica, no qual seu fundador, Eugenio Scalfari, ateu declarado, lhe deu o espaço de três páginas em plena crise política italiana, relegando essa, por assim dizer, a segundo plano. Que muitos na Cúria pensem estar com os dias contados é uma coisa que se diz e se constata. Há muitos "empregados" eclesiásticos no Vaticano que não sabem o que é o cheiro das ovelhas. Serão devolvidos às dioceses de origem ou às congregações e institutos religiosos.
O Conselho de Cardeais tende a ser um conselho fixo?
Sim, acho que um dos projetos do papa é fazer do Conselho de Cardeais (G8) um espécie de Conselho permanente, que teve sua origem nos votos expressos dos cardeais reunidos no conclave. O papa Francisco precisa dele, neste momento, para enfrentar os muitos problemas da Igreja que se acumularam nos últimos anos. Existem outros organismos (sínodo, congregações, conselhos pontifícios, conferências episcopais) com os quais o Conselho de Cardeais deverá estar em estreito contato.
É possível prever quais serão os próximos passos desse papa tão surpreendente?
Do papa Francisco só se deve esperar surpresas. Chamamos de surpresas porque, no passado recente, estávamos habituados a certa monotonia.
Homens e mulheres divorciados que tornaram a casar poderão ter mais acolhida na Igreja e acesso aos sacramentos, particularmente à eucaristia?
Creio que o papa Francisco retomará algumas colocações de bispos, teólogos e pastoralistas que, no passado, desafiando as iras da Congregação para a Doutrina da Fé, haviam chamado atenção dos fiéis e alimentado esperanças. Refiro-me em particular ao documento dos bispos do Reno (os grandes teólogos bispos Lehmann, Kasper, Seier), que apontava um caminho corajoso, doutrinariamente correto, para enfrentar o problema. O então prefeito da Congregação, cardeal Ratzinger, estigmatizou o documento com dureza e ironia. Voltou a circular também o estudo do grande teólogo moral B. Haring, que muito sofreu da parte da Congregação romana. Estão aparecendo outras publicações que convidam a hierarquia a enfrentar o problema com carinho e misericórdia.
Pode-se esperar a ordenação de homens casados para o ministério sacerdotal?
Certamente sim. O problema está debaixo do tapete há muitos anos. Foi posto em evidência a partir dos anos 1980 por cardeais como Pellegrino, de Turim; Konig, de Viena; Alfrink, de Utrecht; Hume, de Londres; Lorscheider, de Fortaleza; Martini, de Milão. Para não falar de teólogos do calibre de Rahner, Congar, Schillebeeckx. Perdeu-se muito tempo discutindo sobre viri probati (homens tirados da comunidade para receber a ordenação presbiteral) e esquecendo-se, como observa o ex-mestre geral dos dominicanos Timothy Radcliffe, que o ponto de partida é o batismo, não a ordem sacra.
Uma maior participação da mulher na Igreja inclui a discussão da ordenação?
Com relação às sacerdotisas, muitos teólogos sérios pensam que não se trata de uma questão dogmática, mas disciplinar. Então, a exclusão (das mulheres) se baseia em elementos que não têm suporte bíblico, como, aliás, se expressou uma comissão de especialistas biblistas, nos anos 1970, da qual fazia parte o jesuíta Carlo Maria Martini. É outro o discurso para as diaconisas, a favor das quais se vão multiplicando os pedidos de reintrodução. O cardeal Kasper e parte dos bispos alemães recentemente pediram isso.
Haverá avanços com relação aos ortodoxos e evangélicos? Até que ponto?
Esperamos que o papa Francisco incentive o movimento ecumênico, que está vivendo um tempo de hibernação. Ele, mestre nos gestos, intervirá para encontrar-se, a dois, sobretudo com os patriarcas das Igrejas cristãs. Esperam-se e estudam-se encontros com Bartolomeu de Constantinopla e Cirilo de Moscou.
Como o papa Francisco tratará o problema do aborto?
O aborto é com certeza uma chaga. O papa Francisco não tem intenção de ir além do ensinamento da doutrina clássica da Igreja. Mas se compadece com a pessoa que aborta. Enfrenta o drama do aborto como pastor, não como jurista. O problema/drama do aborto, sobretudo em algumas partes do mundo, é uma chaga que vai além de um indivíduo, causada por culturas e situações de degradação. É esse o motivo pelo qual o aborto, enquanto tal, não está na ribalta. Não porque seja inegociável, mas porque está inserido em contextos mais amplos.
A pobreza inclui o combate à riqueza ou sinais de riqueza no Vaticano?
A pobreza da Igreja e na Igreja é um ponto-chave de Francisco. Tem dado provas disso em meio a enormes dificuldades, metendo as mãos em instituições econômico-financeiras que certamente não foram modelo de clareza. Será um trabalho duro, que em grande parte dependerá da escolha de sagazes colaboradores. A escolha do arcebispo Parolin para secretário de Estado é uma esperança.
O senhor escreveu um livro sobre Francisco chamado Na Argentina para Conhecer o Papa Bergoglio. Por que esse enfoque local?
Parti da ideia de que não se pode ter uma imagem objetiva do papa Bergoglio se ele não for inserido na história de seu país: o peronismo, as crises dos jesuítas argentinos, a posição da hierarquia argentina no tempo da ditadura, a situação econômica com os Kirchners. Minha avaliação é que, no curso de sua história, Bergoglio foi caminhando progressivamente, amadurecendo e fortalecendo a opção por uma Igreja dos pobres e com os pobres. Um pouco como Câmara (d. Hélder) no Brasil, Samuel Ruiz no México e Romero (Oscar) em El Salvador. No primeiro período da sua vida, como provincial dos jesuítas, não era assim, como aliás ele mesmo admitiu recentemente. As periferias o transformaram.
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