Por Jurimar Machado da Silva
Faz tempos que entramos numa nova era. Conforme os termos do filósofo francês Jean Baudrillard, a era dos simulacros e simulações. Ingressamos nessa nova fase por excesso de representação. É o hiper-real: mais real do que real. Nessa era, como diria outro francês, Guy Debord, falando da sociedade do espetáculo, o “verdadeiro é um momento do falso”. Em literatura, o autor está morto, não por desaparecimento, mas por excesso. Quando todos são autores, não há mais autor. O golpe político também vira simulacro e simulação. Mais real do que o real. Nada de golpes militares grotescos e primários.
O golpe hipermoderno simula um processo legal, constitucional e legítimo. É o golpe constitucional, midiático, parlamentar e judicial, com simulação de direito de defesa, ritual definido pela corte suprema, televisionamento ao vivo e análise permanente por especialistas, sem contar as pesquisas de opinião continuadas para justificar o direcionamento das ações. Nesse golpe hiper-real, somente o mérito não pode ser contestado, os votos estão definidos de antemão, a prova não precisa ser provada, não há convencimento possível dos jurados, o contraditório é apenas uma exigência procedimental, não incidindo sobre as decisões, e o acusador e juiz pode ser o principal beneficiário do julgamento, ou seja, do golpe.
É golpe porque se trata de armação, pretexto, simulação de crime grave para possibilitar a remoção do presidente da república fora das regras do jogo. É golpe, no caso brasileiro, porque se insere no presidencialismo um mecanismo do parlamentarismo, o voto de desconfiança, que derruba o governo, mas não chama nova eleição. É golpe porque o pretexto para a remoção da presidente foi praticado por outros presidentes, é praticado por governadores, e não era conduta criminalizada quando foi praticado pela atual presidente. O entendimento mudou após o “crime”. É golpe porque condena retrospectivamente com “lei” posterior ao ato condenável. É golpe porque julga por uma coisa, uma parte, e condena por outra, um suposto todo, o “conjunto da obra”. É golpe porque trapaceia. Induz o senso comum a pensar que está caucionando algo que não consta no processo. É golpe porque consuma o desejo de tomada de poder sem o voto. É golpe porque faz do casuísmo um princípio de universalidade.
É golpe porque simula combate à corrupção por parte de acusados de corrupção. No hiper-real, mais real do que o real, só o corrupto pode se apresentar como o verdadeiro honesto, aquele que, acima das suspeitas, continua a sustentar a sua inocência a ponto de se propor a varrer a sujeira da corrupção alheia. Crime mais-do-que-perfeito. O criminoso voltar para limpar a cena. Michel Temer, ficha-suja, formando um ministério anticorrupção com citados na Lava-Jato. É golpe porque reduz um julgamento jurídico-político a simplesmente político por ser feito por políticos sem paciência para simular uma relação do voto com o objeto da acusação. A prova de que não haveria simulação estaria nessa simulacro de autenticidade: cada político votou pelo que bem entendeu sem se dar o trabalho de referir-se ao que era imputado à acusada. É golpe por eliminar a sutileza do voto jurídico-político, por políticos, em favor do voto politiqueiro.
O legislador, o constituinte, pode ter imaginado um edifício institucional sofisticado. No golpe hipermoderno, ele rui. As instituições parecem funcionar quando apenas correspondem à manipulação golpista. No golpe hipermoderno, um vírus toma conta das instituições, que funcionam aparentemente na normalidade, mas é só uma ilusão. O STF afastou o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, para satisfação nacional. De onde o STF tirou previsão constitucional para tal decisão? O STF funcionará como Poder Moderador num governo Temer. De onde tirará legitimidade para essa postura? O STF dá seu golpe. Quanto mais é provocado, mais assume poderes que a Constituição não lhe deu. Vira fiador do golpe na medida em que define seu rito como se este autorizasse o julgamento legítimo de qualquer crime, mesmo, por hipótese, na ausência de prova. O único papel exclusivo do STF seria o julgamento da prova. Só a esse ele não se poderia furtar.
É golpe porque os golpistas não querem que o mérito possa ser julgado juridicamente por quem tem a atribuição constitucional de julgar méritos contestados por partes que se considerem lesadas. É golpe da metonímia ou da sinédoque, a parte pelo todo. É golpe porque usa a opinião favorável de uma maioria fragmentada como justificativa para desrespeitar as regras do jogo ou adaptá-las às circunstâncias. É golpe porque fez do oponente, o relator Anastasia, acusador legitimado sem a aleatoriedade de um sorteio generalizado. No golpe hipermoderno, cínico e retórico, o sofisma toma o lugar da racionalidade. Em vez de pressupor uma instância externa obrigada a simular neutralidade, pela não vinculação partidária, fixada em aspectos jurídicos, a prova da prova, fixa um simulacro de ausência de simulação, a política pela política sem disfarce, mas com uma sombra de justificativa jurídica: as pedaladas e os decretos.
Nos debates e entrevistas, os golpistas rapidamente se cansam de vínculo frágil com os crimes imputados à presidente e rasgam a bandeira: voto de desconfiança contra a incompetência da presidente. Afastamento por causa da inflação, do desemprego, da crise econômica. Nada que, na regra do jogo, permita o impeachment. É golpe porque faz do impeachment, instrumento do presidencialismo, um dispositivo do parlamentarismo, um parlamentarismo fake e de conveniência. Para Jean Baudrillard, o simulacro não esconde uma verdade, mas a ausência de verdade. O golpe hipermoderno não esconde a sua falsidade. Revela apenas que a regra do jogo é uma simulação, o fingimento de um princípio sólido que só existe para ser alterado pelos entendimentos e interpretações das hermenêuticas interessadas. Como disse outro pensador, outrora importante, “tudo que é sólido desmancha no ar”.
É golpe porque o posterior – o jogo político – amolda o anterior – a regra do jogo – à sua conveniência. Sem dissimulação.
Golpistas de cabelos brancos e peles marcadas como pergaminhos invocam, nas entrelinhas, uma sabedoria pragmática: quando tudo vai mal, a regra do jogo precisa ser adaptada para dar uma oportunidade ao ressurgimento do bem. É o famoso “f…erre-se” a norma. Eis tudo.
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