SAÚDE NÃO É NEGÓCIO NEM MERCADORIA, É DIREITO DE CIDADANIA 
O Brasil, na última década, apesar das crises enfrentadas pelo capitalismo internacional, conseguiu manter o crescimento com distribuição de renda, melhorou o consumo e alcançou o pleno-emprego. Entretanto, atualmente vive uma crise econômica – acrescida de crise política decorrente das contradições internas – ampliada por interesses externos, que se impõem com a intenção de manter a ordem hegemônica do capitalismo planetário.
No plano internacional a rearticulação das forças de mercado – liderada pelos EUA, que buscam manter a sua hegemonia e perpetuar o modelo capitalista predatório e concentrador de riqueza -, tem colocado de joelhos governos de vários países e deixado marcas de destruição nessas nações. Na América Latina, a sua principal estratégia é desestabilizar os governos progressistas e derrotar as experiências que recolocaram em cena projetos de sociedades solidárias, justas, fraternas e igualitárias, as quais emergiram em oposição ao fracassado experimento neoliberal que acirrou as desigualdades e deixou uma multidão de miseráveis vagando pelo continente.
Este mundo unipolar, porém, está sendo colocado em xeque com a busca de alternativas internacionais multipolares, como o pacto sul-americano e a criação do BRICS (bloco econômico composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) que, em setembro de 2014, criou duas instituições que dão significado e impulsionam mudanças na ordem mundial: o New Development Bank (NDB) e o Contigent Reserve Agreement (CRA). Estas instituições guardam características similares, mas com volume maior de recursos que o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que foram e continuam sendo instituições-chave para a hegemonia norte-americana.
A presença do Brasil no BRICS abre espaço para novas cooperações nos campos econômico, educativo, científico e tecnológico que podem repercutir positivamente no campo da saúde, especialmente para a independência na produção de medicamentos e insumos para a saúde. Deve ainda ser considerada a possibilidade de novos rumos na articulação política entre os países que compõem o Bloco e as relações norte-sul, particularmente em consonância com políticas de proteção social voltadas para a preservação de direitos.
Essas iniciativas, aliadas ao desencantamento em relação ao neoliberalismo após as intervenções em países da zona do euro nas crises econômicas de 2008 e 2009, particularmente no que se refere à ruptura da proteção social e às perdas dos direitos sociais da classe trabalhadora, indicam possibilidades de mudanças na dinâmica internacional e devem ser analisadas e consideradas no debate interno.
Em nosso País, o projeto de desenvolvimento com distribuição de renda realizou conquistas que, ainda que insuficientes, não podem ser desconsideradas. A saída de enorme contingente de pessoas da miséria, o aumento real do salário mínimo e a menor taxa de desemprego registrada na série histórica do IBGE são mudanças que tiveram influência sobre os determinantes sociais da saúde, impactaram a qualidade de vida e mudaram indicadores de saúde como a queda da mortalidade infantil e o aumento da esperança de vida. Apesar dessas conquistas, o Brasil precisa avançar, pois continua sendo um dos países mais desiguais do mundo.
Hoje se observa uma insatisfação da população com os políticos e a agudização da crise política institucional e de representação. Também está claro o esgotamento do projeto de desenvolvimento baseado no crescimento econômico com distribuição de renda, que reduziu a pobreza e permitiu a ampliação do consumo com base em amplas desonerações sobre produtos, sem que isso significasse efetiva mobilidade social.
Esse projeto, focalizado no enfrentamento das urgências das desigualdades sociais não contribuiu para o alargamento da consciência de cidadania, está esgotado e se revela inviável diante de baixo crescimento econômico; sem dúvida precisa ser revisto. Entretanto, discordamos radicalmente quanto a solução por meio de ajustes neoliberais que dilapidam os direitos sociais, penalizam os mais pobres, deixando intacta a acumulação capitalista. Estes ajustes e esta economia política mercantilista não nos servem!
Está posto o desafio para a construção de uma nova hegemonia na sociedade e no interior do Estado brasileiro, que impulsione um projeto de desenvolvimento capaz de enfrentar o problema estrutural da desigualdade social, comprometido com a preservação do meio ambiente e que compreenda os recursos naturais como bem da humanidade e não como mercadoria; que priorize a produção de alimentos saudáveis; que ofereça serviços públicos de saúde e educação relevantes para o bem-estar e que construa uma sociedade solidária, justa, fraterna e igualitária onde todos possam viver de forma digna. Nesta perspectiva, o combate ao capitalismo e a defesa do socialismo devem ser pauta política e horizonte de todos os movimentos sociais comprometidos com um mundo melhor.
De imediato o País precisa promover mudanças profundas, entre as quais destacam-se as mudanças na política e no sistema político. A reforma política deve propiciar a radicalização da democracia com a participação efetiva dos cidadãos e acabar com o financiamento empresarial das campanhas – mecanismo de captura da política pelo poder econômico – no qual prevalecem os interesses dos grupos financiadores em detrimento dos interesses coletivos da população.
O Movimento da Reforma Sanitária Brasileira sustentou no seu ideário um projeto civilizatório com amplas mudanças nos valores societários em relação à vida e ao planeta. Esse projeto, ainda a ser construído, está fundado nas bases de uma sociedade solidária e democrática, com a defesa do direito universal à saúde como direito de cidadania. O direito à saúde é um direito social que deve ser garantido pelo Estado, por meio de politicas econômicas, sociais e culturais, tal como conquistado na Constituição Federal de 1988, sendo incompatível com propostas nas quais a saúde é tratada como negócio ou mercadoria.
O Sistema Único de Saúde (SUS) nasceu referendado por uma inédita mobilização social, impulsionada pelo Movimento da Reforma Sanitária, que buscava tecer as bases de um projeto de País, pautado na justiça, na igualdade e nos direitos sociais. O SUS teve e tem por objetivo melhorar a saúde da população, cuidar de todos de forma integral com a qualidade e a complexidade que os problemas requerem e a população merece; adotou a participação social promovendo a democracia participativa como fundamento para a sua gestão.
Nestes 27 anos o SUS avançou e acumulou conquistas, especialmente se considerarmos a situação da saúde no período de sua criação. Entretanto, estamos muito distantes da situação ideal, os avanços alcançados não podem mascarar os problemas intrínsecos do SUS e nem aqueles extrínsecos, oriundos de setores da sociedade que boicotam a sua consolidação.
Para o Cebes, o SUS não é um sistema de saúde que possa sobreviver e se consolidar com políticas orientadas pelo projeto liberal, que não mede esforços em desconstruí-lo, que alimenta os interesses da indústria médica globalizada e transforma a saúde em puro mercado. O momento é crítico e a sobrevivência do SUS exige mudanças profundas na ordem econômica, política e social brasileira; exige, também, o compromisso efetivo do Estado, dos governos e da sociedade na sua defesa. Para que a saúde seja um direito de todos, assumida como um bem da sociedade, é necessário um novo acordo em nome do interesse público, que recomponha os princípios e as orientações constitucionais, os quais devem ser assegurados pelos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.
A luta por direitos sociais e em particular o direito à saúde deve ter como pressuposto a luta por um Estado democrático participativo, com justiça social e equidade. Os interesses de mercado avançam pelo mundo por meio de estratégias potentes. No continente latino-americano são travados embates importantes entre o mercado e os Estados em relação à saúde, e a resistência do SUS brasileiro é representativa para o ideário dos movimentos por saúde nestes países. O Brasil deve assumir compromissos e responsabilidades com os demais países latino-americanos, pois os avanços que conquistamos no campo da saúde inspiram as lutas pelo direito à saúde em países deste continente.
A voracidade do capital não tem limites, mercantilizou todos os aspectos da vida. Na saúde, transformou o cuidado em um negócio lucrativo; medicaliza a vida e a sociedade, induzindo o consumo de medicamentos e procedimentos médicos; explora os trabalhadores da saúde à exaustão e pratica estelionato vendendo planos privados de saúde que não atendem às necessidades das pessoas quando elas mais precisam, ou seja, nas situações de doenças graves e na velhice.
Para garantir os seus lucros, o mercado usa recursos públicos que são canalizados especialmente por meio de subsídios fiscais como a dedução de 100% no Imposto de Renda (IR) devido dos gastos com serviços privados realizados pelo contribuinte. Desse modo, os brasileiros que têm renda para gastar no mercado da saúde são incentivados à este consumo, com consequências negativas para a saúde pública, pois essa dedução diminui o montante de recursos arrecadados e, consequentemente, reduz a parcela que iria para o SUS. Ao fim e ao cabo, a grande maioria da população que não tem recursos para gastar com saúde privada e que paga impostos financia indiretamente os gastos privados com saúde de uma parcela minoritária da sociedade.
Do IR, as pessoas físicas podem deduzir os gastos com planos de saúde, médicos, dentistas, psicólogos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e hospitais, exames laboratoriais, serviços radiológicos, aparelhos ortopédicos e próteses ortopédicas e dentárias, entre outros. Não há teto para o abatimento de gastos com saúde (renúncia fiscal), diferentemente do que acontece com a educação, cujo limite de dedução é de R$ 3.375,83. A renúncia fiscal se aplica também aos empregadores que fornecem assistência à saúde a seus funcionários, considerando este gasto como “despesa operacional” e abatendo do lucro tributável. Ainda há as desonerações fiscais para a indústria farmacêutica, hospitais filantrópicos, subsídios diretos por meio de incentivos fiscais e desonerações, além de subsídios a funcionários públicos, cujos planos de saúde são pagos com recursos públicos.
Em 2011, a renúncia fiscal na saúde foi de R$ 15,8 bilhões, sendo R$ 7,7 bilhões apenas de planos de saúde. Neste mesmo ano, o lucro líquido das operadoras de planos privados de saúde foi de R$ 4,9 bilhões, ou seja, mais da metade dos lucros dessas empresas foram decorrentes de renúncia fiscal. No nosso entendimento, quem quer plano de saúde deve pagar – integralmente – por ele, evitando iniquidades. A desoneração fiscal na área da saúde deve ser eliminada e os recursos devem ser aplicados no SUS para melhorar a qualidade e garantir universalidade e integralidade de acesso.
Dinheiro do povo não pode ser privatizado, deve ser usado em serviços para todo o povo, promovendo justiça e igualdade social.
Os direitos sociais, para serem garantidos pelas políticas sociais, custam caro. A 15a Conferência Nacional de Saúde (CNS) deve deixar claro quem deve pagar os custos das políticas sociais que garantem direitos. Para isso, esse debate deve começar nas conferências municipais, estaduais, plenárias e em todos os espaços de debate sobre a saúde. O financiamento das políticas sociais não pode penalizar ainda mais as classes trabalhadoras que, proporcionalmente, já pagam mais impostos.
A conjuntura exige uma ação política firme e articulada de todos os que defendem o SUS e o direito à saúde, sob o risco de termos o primeiro momento de retrocesso nos direitos positivos garantidos constitucionalmente desde a redemocratização do País. Diante dessa conjuntura defendemos as seguintes propostas:
1) Avançar no desenvolvimento social, com progressivo aumento do gasto federal com políticas sociais de saúde, educação e assistência social;
2) Realizar auditoria da dívida pública e aumentar o investimento como alavanca para o crescimento econômico, reduzindo juros e não cedendo às pressões cambiais e de balanço de pagamentos;
3) Realizar reforma política que aprofunde e aperfeiçoe a democracia participativa, com o estabelecimento de novas regras institucionais que garantam a ampliação da participação democrática e o fim do financiamento empresarial das campanhas eleitorais e da interferência do poder econômico na política;
4) Realizar reforma tributária que coloque o Brasil na direção dos países que alcançaram sistemas tributários mais justos ao reduzir a tributação sobre o consumo e concentrá-la no patrimônio e na renda. Para isso é necessário: melhorar a distribuição das alíquotas do IR para pessoa física com faixas mais altas e aumento da faixa de isenção; reduzir a tributação indireta sobre o consumo; aumentar a tributação sobre a acumulação; aumentar o Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) dos grandes latifúndios; reduzir as taxas que incidem diretamente sobre o setor produtivo (Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)); acabar com a isenção dos lucros e dividendos e com a dedução dos juros sobre o capital próprio e aliviar a carga tributária dos trabalhadores com imposto progressivo;
5) Democratizar a mídia para garantir o direito à informação e reduzir o poder de filtro que preserva interesses de grupos específicos de proprietários, além de expandir alternativas aos meios de comunicação;
6) Enfrentar as desigualdades e iniquidades na saúde e consolidar o SUS constitucional. Para isso é necessário:
• Acabar com os subsídios dos planos privados de saúde por meio de estratégia progressiva, inicialmente instituindo um limite de valor de gastos com saúde, que podem ser dedutíveis do IR como no caso da educação; não financiar planos privados para servidores públicos com recursos públicos; proibir anulação ou perdão das dívidas dos planos com o Estado; proibir subsídios diretos aos planos e não promover incentivos aos planos privados individuais.
• Aplicar os recursos decorrentes dos subsídios em especial na atenção primária (Estratégia Saúde da Família, promoção e prevenção à saúde) e na média complexidade (atenção especializada com profissionais e recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e terapêutico adequados).
• Taxar as grandes fortunas para aplicar os recursos na saúde. As 15 maiores fortunas brasileiras são de grandes empresas que exercem monopólio da comunicação, como a Rede Globo e Grupo Abril, do agronegócio e de bancos como o Safra, o Itaú e o Bradesco. Essa arrecadação corresponde à quase totalidade do volume de recursos que o governo vai arrecadar com as últimas mudanças na tributação.
• Impedir retrocessos no direito à saúde. Barrar projetos em curso no Congresso Nacional que atuam contra o SUS, a exemplo do Projeto de Emenda Constitucional no 451, de autoria de Eduardo Cunha, que pretende alterar a Constituição e tornar planos privados obrigatórios aos trabalhadores empregados.
• Garantir maior financiamento público com o fim da Desoneração das Receitas da União (DRU) para o setor da saúde; flexibilizar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) para a contratação de trabalhadores da saúde (investindo no quadro de servidores próprios da saúde e diminuindo a contratação de Organizações Sociais) e investir 10% da Receita Corrente Bruta da União na saúde pública.
• Consolidar o SUS como um sistema único e universal, com financiamento estatal estável e gestão pública que garanta a oferta de serviços e cuidados integrais e de qualidade.
• Denunciar e repudiar a falsa proposta de Cobertura Universal de Saúde, que não produz cobertura a todos, mas pacotes limitados de serviços que não atendem às necessidades de saúde da população.
O Cebes finaliza esta Tese para a 15a CNS, reafirmando que não haverá “Saúde Pública de qualidade para cuidar bem das pessoas” sem a consolidação do SUS e com um sistema de saúde pautado pelo mercado e orientado pela oferta privada de serviços, como têm preconizado e insinuado setores da sociedade e do próprio Estado que defendem um projeto de desenvolvimento liberal.
Com a intenção de contribuir para esse debate, em momento de extremo risco de retrocessos em relação ao direito à saúde e ao SUS, o CEBES apresenta esta tese e conclama os movimentos sociais, usuários, trabalhadores, gestores e os grupos mobilizados para o processo da 15a CNS a se unirem em defesa do SUS e debaterem politicamente o projeto de saúde que está em curso e aquele que queremos para o Brasil.