terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Receita de Natal, por Frei Betto






Receita de Natal
 
FREI BETTO
 
Natal é o momento de voltar a ser menino. Abandonar tudo aquilo que, em nós, não é próprio da infância: vingança, mágoa, ressentimento, lembrança de coisas más, ambições desmedidas... Se tais sentimentos existem numa criança é porque fizemos dela um adulto precoce.

Naquele Menino, Deus entrou em nossa história pela porta dos fundos. Não como filho de César ou do faraó. Mas de um carpinteiro e uma camponesa. Filho de uma família tão pobre que não encontrou lugar em Belém. Teve de nascer como um sem-terra, no cocho, lá onde se guardam animais. Quantas vezes Jesus não encontra lugar também no presépio do nosso coração! Este impregna-se de vaidade, ódio, prepotência, sem que haja lugar para o filho de Maria e José. O próprio Jesus adverte: "Felizes os que têm espírito de pobre" (Mt 5, 3).

Celebrar a irrupção de Jesus é nos fazermos presentes ao outro, imagem e semelhança de Deus. Na medida que somos presentes a outras vidas, como dom gratuito, reatualizamos o verdadeiro sentido do Natal.

Os relatos natalinos do Evangelho incluem até figuras consideradas impuras pela mentalidade da época, como os pastores, primeiros adoradores do Menino. Hoje, falar em pastores, sobretudo para quem não vive numa sociedade rural, soa poético. Na época, pastor era uma profissão vergonhosa, pois lidava com carne de animais. Seria uma humilhação a filha de alguém se casar com um deles. E, no entanto, aqueles que eram marginalizados foram os primeiros a se aproximar do Menino.

Nas representações do Natal, destaca-se a estrela de Davi. Trata-se de um símbolo astrológico. Júpiter simbolizava o rei dos astros; Saturno, o planeta do povo judeu; e Peixes, a constelação do fim dos tempos. Portanto, ao unir Júpiter e Saturno numa conjugação na constelação de Peixes, procurou-se ressaltar que entre o povo judeu (Saturno) nasceu o rei (Júpiter), que veio realizar, na época de Peixes, a plenitude dos tempos.


Andamos em busca de um presente, o amor que sacia o coração; queremos nos abrir para que o divino irrompa em nossas vidas





Assim, a Bíblia quer mostrar que, de alguma forma, a revelação divina perpassa todos esses sinais, simbolismos, arquétipos, fatores culturais e espirituais que existem na história dos povos. E são utilizados no relato evangélico para anunciar: o menino Jesus é o filho de Deus entre nós.

Francisco de Assis sugeria que, no Natal, distribuíssemos carnes a todos, pois nessa noite celebramos o grande acontecimento histórico: "O Verbo se fez carne..." Dizia ainda Francisco que deveríamos espalhar sementes pelos campos, distribuir alpiste aos pássaros, dar comida aos pobres e nos presentear mutuamente, num gesto sacramental de que, nessa noite, Deus se fez presente entre nós. 

Assim, o presente que nos damos uns aos outros reproduz sacramentalmente o presente que Deus, nosso pai e nossa mãe, nos dá em nosso irmão Jesus. A noite de Natal é de alegria para quem sente no coração o eco divino. E de tristeza quando o coração busca essa ressonância e não encontra. Ainda que nos encham de presentes, de comidas e de bebidas, fica um vazio, uma ponta de tristeza. Mas esse travo não é de todo negativo. É o sinal de que temos fome de Deus, de que ainda perdura em nós a voracidade pelo transcendente.
 
Essa melancolia que nos acomete na época do Natal, como se algo estivesse faltando, malgrado as comemorações e os presentes, é o apetite espiritual não saciado. De fato, andamos em busca de um grande presente, o amor que sacia o coração. Queremos nos abrir, não para que Papai Noel entre por nossas janelas, mas para que o divino irrompa em nossas vidas.
 
Para quem vai celebrar o Natal, pode-se escolher entre duas receitas. Receita para fazer uma festa: tomar um punhado de gente, misturá-lo em torno de uma grande mesa, acrescentar comida e bebida sem sabor de comunhão, agitar com bastante música, rechear com muitos presentes e servir, como se fosse Natal, essa festa como outra qualquer.
 
Receita para fazer um Natal: tomar um grupo de irmãos ligados pela mesma fé, unidos numa única esperança. Juntar Cristo a eles. Deixar fermentar até nascerem o homem e a mulher novos. Servir evangelicamente a quem tem fome e sede de justiça.

(Texto de Dezembro de 2001) 

Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, 56, é escritor e assessor de movimentos pastorais e sociais, autor da biografia de Jesus "Entre todos os homens" (Ática), entre outros livros.
 
 
 


Nenhum comentário:

Postar um comentário