POR Washington Araújo
Estamos passando por um rito de passagem - o fim do eurocentrismo da Igreja. E para que tal estado acelerado de transformações tenha efeito o fato marcante não é outro que termos um Papa latino-americano
“As grandes revoluções vêm com pés de pombos” afirmou certa feita o consagrado filósofo Friedrich Nietszche (1844-1900) acerca das sempre esperadas transformações mundiais, megamudanças comportamentais que influenciam a marcha do processo civilizatório e que têm o condão de evitar vastas catástrofes engolfando o planeta.
E um evento bastante significativo que se desdobra com rara desenvoltura é a revolução promovida pelo Papa Francisco em seus pouco mais de ano e meio de pontificado.
A marca não é outra: uma sucessão ininterrupta de toques suaves e precisos de espiritualidade, trazendo ânimo e vigor ao corpo bastante debilitado de uma Igreja que de tudo provou ao longo dos últimos dois milênios, culminando com a sucessão de escândalos de natureza moral enfermando seu próprio clero e de características financeiro-econômicas levando-a ao terreno pantanoso da corrupção secular. “Quem doa à Igreja e rouba o Estado é falso cristão”, disse Francisco em saudação aos peregrinos que recentemente lotaram o Vaticano.
A Revolução Francisco tem início com a escolha do nome Francisco pelo cardeal Jorge Mario Bergoglio para assinalar historicamente a existência de seu pontificado. Nunca antes na história da Igreja um papa escolhera esse nome, nome que evoca uma das mais férteis e memoráveis travessias já feitas pela cristandade católica – a revolução espiritual, a reforma interna, o reencontro com suas mais profundas raízes históricas, o abraço fraternal inclusivo a envolver as massas de pobres que encampam formidáveis 2/3 da população mundial.
Estamos passando por um rito de passagem - o fim do eurocentrismo da Igreja. E para que tal estado acelerado de transformações tenha efeito o fato marcante não é outro que termos um Papa latino-americano. Desejemos ou não, na realidade, o olhar inclusivo tem relação direta com aquele sentimento sofrido tão próprio dos que se sentem historicamente excluídos. É isto que facilita a ampliação dos horizontes.
O próprio Francisco é singelo e assertivo ao evocar a simbologia contida na escolha do nome pontifício: “Pobres, paz, custódia da Criação”. E isso está em linha com recente declaração da Casa Universal de Justiça ao explicitar o conceito de guardiania coletiva: cada um de nós é guardado pelo todo e, por sua vez, temos a responsabilidade de cuidar dos direitos do conjunto das nações.
Em intervalo de tempo tão curto Francisco conseguiu deixar sua marca ao imprimir no mundo certo ‘Efeito Francisco’. E que Efeito seria este? São gestos muito simples, quase prosaicos; na verdade, um somatório de bons sinais em um ambiente religioso há muito fechado, encerrado em ritos e dogmas, pouca luz e muitos egos inflados a enfermar ainda mais a Cúria Romana.
Comecemos pela maneira como se apresentou ao mundo no dia 13 de março de 2013, quando do balcão da Praça de São Pedro o recém-eleito papa Francisco dispensou a tradicional saudação em latim e optou em cumprimentar os fiéis com um “Buona Sera!” (boa noite em italiano), logo após o anúncio de sua eleição. Na sequência, simplesmente baixou a cabeça e suplicou por orações. E qual a resposta imediata da multidão que assistia a tão importante evento? Todos se curvaram em submissão a Deus e começaram então a orar.
Nos dias seguintes o mundo maravilhou-se a ver a marca da austeridade tomar o lugar da pompa e circunstância, da opulência escandalosamente ostensiva quase sempre associada à figura do Chefe Máximo da Cristandade Católica Apostólica Romana. Esta austeridade logo se impôs quando decidiu continuar usando os mesmos surrados sapatos pretos usados pelo calejado cardeal Bergoglio, manteve a mesma cruz de prata no peito e não a cruz de ouro usada por tantos de seus renomados antecessores no trono de Pedro. Francisco abriu mão do espaçoso apartamento papal para ficar numa suíte em uma casa de hóspedes, a Casa Santa Marta.
A sua primeira aparição pública em um veículo também foi premonitório: dispensou a luxuosa limusine papal, uma reluzente Mercedes Benz, há décadas usada pelos pontífices e optou por um singelo automóvel da marca Fiat 1.0, modelo classe média. Mesmo em sua primeira viagem papal, no caso ao Brasil, para a Jornada Mundial da Juventude, Francisco optou novamente pelo uso de um carro simples. Existem encíclicas, documentos, homílias e discursos que tocam corações e mentes, mas existem gestos que não apenas moldam comportamentos como também têm o poder de arrastar multidões.
As relações com a imprensa também foram impactadas pelo Efeito Francisco. O Papa tem decidido por encontros com a imprensa quase sempre marcados pelo improviso. Aqui mesmo no Brasil, tendo o porta-voz do Vaticano ao seu lado, Francisco respondeu a todas as perguntas, sem impor limites, por 1 hora e 22 minutos. Isto marcou um novo precedente, e depois consentiu em conceder cinco entrevistas adicionais. Longe do pesado clima solene a que os Papas sempre estiveram relacionados, Francisco marca suas interações com a mídia com três características – bom humor, franqueza e cortesia. E é com esse estilo afável e tendendo para o bonachão que conquistou a imprensa mundial.
Francisco tem especial carinho e apreço para os doentes. Antes mesmo de celebrar a primeira missa de seu Pontificado, ele parou o Papamóvel e beijou uma pessoa enferma. Este foi um momento emocionante, mas não único. Outros gestos dessa natureza se seguiram nos meses seguintes. Os imigrantes e os refugiados, em número cada vez maior e contados aos milhões, pessoas deslocadas de seus países devido a guerras, fundamentalismo religioso, fome ou graves problemas econômicos, tem sido tema prioritário das atenções do Papa. Em julho de 2013, em sua primeira viagem do pontificado, Francisco foi à ilha italiana de Lampedusa, onde milhares de imigrantes morreram em busca de uma vida melhor. No discurso, o Papa usou palavras muito diretas para expressar sua opinião. E tem sido sempre assim, direto ao ponto. “Com a comida que se joga fora se poderia alimentar todas as pessoas que sofrem de fome no mundo", disse o papa Francisco em uma dura mensagem contra o desperdício de alimentos.
Se a um tempo mantém os olhos focados nos dramas e angústias dos indivíduos, das pessoas, como por exemplo, quando decidiu instalar chuveiros públicos no Vaticano para atender às necessidades de higiene de moradores de rua; por outro lado, tem demonstrado especial atenção ao tênue equilíbrio que mantêm o mundo em paz. Com as negociações sírias na Guerra Civil e a ameaça de um ataque americano, o Papa liderou uma vigília para pedir paz, em meio a milhares de pessoas. E, neste final de novembro de 2014 viajou a Istambul, na Turquia, onde foi lançar as bases para a reunificação de sua Igreja Romana com a Igreja Católica Turca, isso após dez séculos de divisão e isolamento; e ao mesmo tempo abriu janelas para o diálogo com o Islã, repudiando de maneira veemente toda forma de fundamentalismo religioso. Há poucos meses havia declarado: “Os judeus são nossos irmãos mais velhos.”
Temas considerados espinhosos pela Igreja ao longo dos séculos vêm sendo tratados por Francisco com simplicidade, objetividade e sobretudo, clareza. É o caso do homossexualismo. Acerca do tema, aliás como bem pontuou o jornalista Clóvis Rossi "(o Papa Francisco) ao saltar da qualificação para os homossexuais de "intrinsecamente desordenados" para eventuais portadores de "dons e qualidades a oferecer", o Vaticano dá um gigantesco passo, mesmo sem mudar a doutrina (por enquanto) em uma única vírgula." Em outra ocasião inferiu que para a Igreja não existiam prostitutas e sim mulheres, não existiam mães prostitutas e sim mães.
E, provavelmente, caso único na história da Igreja Romana, é um pontífice conectado com as modernas tecnologias. E não faz como a maioria dos mortais, que geralmente é para autopromoção ou para desperdiçar nosso bem vital mais escasso – o tempo. Há poucas semanas Francisco postou em sua conta no Twitter (@pontifex) o poderoso pedido: "Rezem por mim", em inglês e "Orate pro me" em latim. O papa tuíta em mais nove línguas, incluindo além do inglês, latim, árabe e espanhol.
Tem mais de 12 milhões de seguidores. Segui-lo no twitter é uma experiência muito interessante: em tudo se posiciona, nada é dogma, nada parece ser tabu e o que importa mesmo para o Papa é manter esse que é o maior luxo humano – o luxo das relações humanas. Mas não bastaria saber usar a rede social, no caso de Francisco os bons resultados brotam de seu – digamos - estilo, a sua linguagem direta do Papa, as suas atitudes, e o seu estilo de vida bastante despojado para um Papa. O conjunto é que toca em profundidade e suscita um grande interesse, um grande entusiasmo por parte de milhões de pessoas em todo o mundo, católicos ou não, uma vez que a espiritualidade não tem proprietário e nem é marca registrada deste ou daquele credo.
Sem estrelismos pop, sem legalismos boçais e sem pendor pelo exercício puro e simples de qualquer forma de autoritarismo, Francisco parece ter sido permeado pela aura de sinceridade, pureza de intenções, e amor pela justiça, características estas tão associadas à vida de seu xará inspirador, o Santo de Assis.
Durante uma homilia na manhã do dia 9 de novembro de 2014, na casa de Santa Marta, no Vaticano, o papa Francisco afirmou que “a Igreja deve sempre ser reformada porque seus membros são todos pecadores e precisam se converter.” O Papa insiste muitíssimo sobre um Deus que ama, um Deus de misericórdia, um Deus sempre pronto a perdoar a quem se dirige a Ele com humildade. Ele sabe o quanto, frequentemente, nós humanos, somos feridos: feridos por tantas experiências difíceis, por tantas frustrações, por tantas injustiças, por tanta pobreza e tão odiosa marginalização no mundo de hoje. Nessa mesma toada declarou: ‘Todos expressamos extravios, incertezas, dúvidas, quem não experimentou? Todos. Eu também. Faz parte da fé.”
Nada, absolutamente nada, escapa ao imperativo da época em que vivemos: a percepção de que a unificação da espécie humana encontra-se ao nosso alcance. Somos, com efeito, cidadãos e cidadãs de um único e mesmo país – o planeta Terra.
E neste contexto, só pode ser motivo de enorme satisfação para milhões de homens e mulheres de boa vontade perceber que o Efeito Francisco torna ainda mais receptivos corações e mentes para ouvir a sempre aguardada promessa da Paz Mundial, aquela época dourada em que todos os horizontes da humanidade estariam iluminados pela luz da unidade.
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