segunda-feira, 19 de maio de 2014
O Capital, no século XXI
Há um livro que tem se destacado, dentre os que se tornaram líderes de vendas ao longo dos últimos meses nos Estados Unidos. Trata-se de uma obra volumosa e densa, cujo tema é a crise econômica do capitalismo contemporâneo. A súbita ascensão de um texto de quase 800 páginas à condição de “best-seller” é realmente um fenômeno bastante peculiar, e vem merecendo atenção especial de quase todos os grandes órgãos de comunicações pelo mundo afora.
O economista francês Thomas Piketty é o autor de “O Capital no século XXI”, lançado há mais de um ano em seu país de origem pelas “Éditions du Seuil”. Porém, quando foi feito o anúncio da versão norte-americana, pela editora da Universidade de Harvard, o livro ganhou espaço ampliado na rede e passou a frequentar as páginas dos principais jornais e revistas em todos os continentes. Elevado à categoria de “obra imprescindível” para compreender a economia nos tempos atuais, ele conseguiu romper a barreira do público especializado e encontrou seu nicho também junto aos leigos e aos não-economistas.
Na verdade, essa novidade editorial se manifesta como mais um elo em uma seqüência de outros acontecimentos igualmente inusitados. Os editores do clássico de Marx, “O Capital”, também apontam uma elevação recente nos pedidos e encomendas do compêndio escrito pelo filósofo alemão ainda no final do século XIX. Apesar de toda a propaganda ideológica e anti-comunista desenvolvida pelas elites do mundo capitalista desde aquele momento, o fato é que o reconhecimento da obra de Marx sobreviveu à História. E a crise do capitalismo, logo agora no início do terceiro milênio, tem servido como estímulo à multiplicação de buscas em torno dos questionamentos esboçados pelo parceiro de Engels.
Piketty e a falência do paradigma neoliberal
A crise do paradigma neoliberal, escancarada a partir da quebradeira do sistema financeiro dos EUA em 2008 e de seus rebatimentos para o espaço europeu, deixou o mundo perplexo. Os próprios intelectuais e formuladores da política econômica, no centro do poder dos países desenvolvidos, foram pegos de surpresa. As dúvidas passaram a frequentar também os ambientes e os fóruns de debate no interior dos organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional. Todas aquelas verdades e modelos, até então ensinados nas universidades e centros de pesquisa propagadores do pensamento do “establishment”, perderam validade e credibilidade. O castelo da ortodoxia havia ruído e o espaço perdido precisava ser reconstruído rapidamente.
Os caminhos escolhidos para a reorganização do sistema são conhecidos de todos nós. Pouco a pouco tem início uma espécie de reconversão do então credo inabalável na versão radical do liberalismo. Um sem número de economistas, que haviam defendido até a antevéspera da crise o modelo que desmoronava a olhos vistos, mudaram de opinião rumo a uma alternativa mais maleável de política econômica. De acordo essa suposta heterodoxia de ocasião, o mais importante seria salvar o capitalismo de um estrago ainda maior. Dane-se o purismo dos ultra-liberais autênticos! Que venha o necessário pragmatismo oportunista, desde que essa carta do keynesianismo desvirtuado – sacada da manga do colete – evite o naufrágio do transatlântico desgovernado.
Nessa toada, obviamente, não se encontravam apenas os mal intencionados. Havia muita gente sincera que começou a se dar conta da incapacidade do modelo hegemônico em diagnosticar e sugerir alternativas para o futuro de nossa sociedade – fundada na supremacia do modo capitalista de organização e produção. Face ao vácuo de idéias e propostas, a busca desesperada por explicações mais razoáveis se generalizou. Assim, a chacoalhada ideológica atingiu também as estruturas das escolas e instituições que haviam convivido de forma harmônica com o pensamento único que estava sendo derrotado pela própria realidade.
“Paris School of Economics”: antes e depois da crise
Na França, por exemplo, em 2007 foi criada oficialmente uma escola de economia independente da estrutura das universidades públicas existentes naquele país. A medida gerou muita polêmica à época, em razão da natureza bastante conservadora e privatista dessa nova instituição e de seu próprio projeto fundador.
Bastante identificada com o pensamento hegemônico ortodoxo e monetarista naquele período, a escola resolveu ser conhecida por sua sigla em inglês. Ou seja, ela já nascia com um verdadeiro tapa na cara da tradição acadêmica e intelectual francesa. A estratégia foi pegar carona em uma conhecida congênere inglesa. Inspirando-se na original britânica do conservadorismo em economia, a nova faculdade deu-se o nome de “Paris School of Economics” (PSE), em analogia explícita à “London School of Economics” (LSE).
No momento da inauguração da instituição, seu diretor era um professor chamado Thomas Piketty – sim, o mesmo autor do campeão de vendas aqui comentado. No entanto, por uma impressionante ironia da História, a partir do segundo ano de sua existência, a PSE passou a conviver com a crise financeira de 2008 nos Estados Unidos e a importação de seus efeitos para o espaço da União Européia. Com isso, o corpo de professores, pesquisadores e alunos da nova faculdade passa a vivenciar esse processo de metamorfose ambulante, em busca de um novo paradigma explicativo da dinâmica econômica. Da noite para o dia perceberam-se órfãos do modelo que inspirou sua própria criação.
Assim, esse é o contexto mais amplo em que surge uma obra com um título bastante sugestivo, como o “O Capital no século XXI”. Piketty não tem suas bases de formação intelectual como economista na tradição deixada por Karl Marx. Aliás, ele deixa isso muito bem claro na introdução de seu livro. Porém, o fato é que uma das linhas de pesquisa que o francês empreendeu em anos mais recentes foi a busca de compreensão do fenômeno da acumulação de capital e da distribuição da renda e da riqueza na sociedade capitalista. E o instrumental que os modelos neoclássicos oferecem para esse fim não estava à altura das expectativas de Piketty. Em razão dessa lacuna, ele vai buscar nas proposições de Marx alguma luz para empreender sua pesquisa.
Uma das principais conclusões propostas pelo economista francês reside na forma como se manifesta o processo de concentração de renda e de riqueza ao longo das etapas do processo econômico. Sua base de dados é bastante extensa, envolvendo diversos países de diferentes continentes. Para os Estados Unidos, por exemplo, ele trabalha com informações estatísticas de um século. Já para alguns países europeus, ele opera com dados para um horizonte temporal de 140 anos. Um universo amplo o bastante para bem fundamentar suas conclusões.
Intervenção do Estado para reduzir desigualdade
As explicações de matriz conservadora procuravam assegurar que o processo econômico capitalista levaria a uma melhoria das condições de vida da população e que, a longo prazo, haveria uma tendência inequívoca à redução das desigualdades de renda e de riqueza. Desde que os agentes econômicos fossem deixados à ação livre das forças de oferta e de demanda, os mercados se ajustariam por si mesmos e o ponto de equilíbrio “ótimo” seria “naturalmente” atingido. Todo e qualquer tipo de intervenção do Estado seria mal visto, uma vez que só viria a provocar desarranjo e perturbação em uma tendência à maximização do bem estar de todos os setores envolvidos.
As pesquisas de Piketty, no entanto, caminham em sentido oposto. A partir de suas bases de dados, o que se verifica é uma tendência ao aprofundamento da desigualdade social e econômica ao longo do processo de produção e acumulação de capital. Tanto nos ciclos de expansão e crescimento quanto de retração da atividade econômica, o capitalismo incorpora e reproduz o gene da concentração de renda e de riqueza. Sempre que deixado à deriva para buscar seus caminhos de maximização de lucros via mercado, o sistema proporciona a ampliação da parcela do capital no resultado da atividade econômica, em detrimento da parte correspondente ao restante dos atores sociais – em especial, os que vivem da venda de sua força de trabalho como garantia de sobrevivência.
Em razão dessa tendência endógena do próprio sistema capitalista, o economista francês termina por corroborar algumas das teses que há muito vêm sendo defendidas por pensadores que nunca se alinharam com a visão da ortodoxia e do monetarismo. Piketty reconhece que apenas a intervenção do setor público é capaz de atenuar ou reorientar essa natureza perversa do capital, qual seja o aprofundamento dos níveis de desigualdade. Assim, as alternativas passariam pelo estabelecimento de políticas públicas corretivas dessa inércia rumo à concentração de poder e de riqueza. Isso significa uma maior tributação sobre a riqueza, em especial a financeira. Como o capital tem uma trajetória intrínseca que provoca exclusão e agravamento da desigualdade, caberia ao Estado intervir pela incidência de impostos para reorientar prioridades, reduzir as disparidades e promover maior de isonomia e inclusão.
Piketty avança na agenda, alertando inclusive para os riscos de natureza política e social. Assim, segundo o pesquisador, o capitalismo no século XXI traz extrema desigualdade, a ponto de eventualmente se converter em uma ameaça para as instituições democráticas. A esperança é que a leitura de seu livro sirva como um estímulo à adoção de medidas na direção sugerida. Propostas como a taxação das transações financeiras ou o imposto sobre as grandes fortunas já estão na mesa há muito tempo. Falta apenas a vontade política de implementá-las.
Jaciara Itaim, é economista
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