Boicote ao SUS utiliza estratégias que vão do sucateamento das unidades de prestação de serviços à asfixia financeira
por Paulo Capel Narvai - Rede Brasil Atual:
arquivo/ministério da saúde
Houve um tempo em que importantes lideranças da Reforma Sanitária e das lutas pelo direito à saúde no Brasil acreditavam que “todos querem o SUS”, que “somos todos pelo SUS”. Ledo engano. Desde o dia em que o Congresso Constituinte aprovou a criação do que viria a ser o Sistema Único de Saúde (na sessão de 17 de maio de 1988, com 472 votos favoráveis, nove contrários e seis abstenções) os setores contrariados não pararam de agir para inviabilizar o sistema. Não tem sido nada fácil defender o SUS e o direito à saúde no Brasil. As agressões têm sido diárias desde então.
Nos últimos 26 anos, os que investem na inviabilização do SUS boicotam o sistema, utilizando-se de estratégias que vão do deliberado sucateamento das unidades de prestação de serviços, como hospitais, prontos-socorros e centros de saúde, à asfixia financeira. É amplamente reconhecido que os recursos previdenciários são progressivamente retirados do financiamento do sistema. A ideia de estruturar, no Brasil, uma seguridade social forte, capaz de fazer frente aos enormes desafios de um país com tantas e profundas desigualdades, é praticamente letra morta na nossa Carta Magna. Neste contexto, os inimigos do SUS vêm contando com a leniência de autoridades públicas, de parlamentares e até mesmo de lideranças sindicais.
Em cenário de indiferença à dor, sofrimento e morte, quando se pensava esgotado o repertório de agressões ao SUS, eis que somos surpreendidos pela convocação, pelo Supremo Tribunal Federal (STF), de audiência pública sobre o Recurso Extraordinário (RE) 581488, interposto pelo Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio Grande do Sul (Cremers). O inusitado do recurso é que tem origem em uma entidade médica, autarquia federal vinculada ao Ministério do Trabalho, que propõe a instituição do que denominou “diferença de classe” como critério para internação hospitalar pelo sistema.
Em primeira instância, a Justiça Federal da 4ª Região decidiu desfavoravelmente à pretensão do Cremers, que movera ação civil pública contra o município gaúcho de Canela, exigindo-lhe que, na condição de gestor municipal do SUS, adotasse o critério da “diferença de classe” para a internação hospitalar no município, com a finalidade de melhorar o tipo de acomodação do paciente e possibilidade de contratação de profissional de sua preferência, mediante o pagamento da respectiva diferença. Pretendia-se admitir, portanto, a prestação de cuidados diferenciados aos pacientes, segundo “classe”, em serviço público de saúde.
A audiência patrocinada pelo STF é momento relevante para que os participantes identificados com as lutas pelo direito à saúde no país e contra a transformação de cuidados de saúde em mercadorias, possam reafirmar a rejeição ética à visão dos cuidados em saúde como negócio, e defendam o SUS como um sistema público de saúde de acesso universal e ações equitativas, diferenciadas apenas em função de critérios biológicos e necessidades específicas de saúde. Com esta perspectiva, esses participantes poderiam também reafirmar a necessidade de o STF:
1) rejeitar, veementemente, a vinculação "pagamento-cuidado em saúde", em qualquer serviço público de saúde, todo o território nacional, com base na disposição constitucional que reconhece que ações e serviços de saúde são de "relevância pública", direito do cidadão, dever do Estado, e, portanto, não devem ser tratados como mercadorias;
2) reafirmar que recursos públicos destinados à saúde devem ser destinados aos serviços estatais de saúde e, apenas de modo complementar, nos termos da lei, aos serviços de propriedade particular, sem fins lucrativos, que, para receberem e aplicarem esses recursos, devem se submeter às decisões do comando do SUS em cada ente federativo, sempre de modo transparente e sob controle público dos respectivos conselhos de saúde, nos quais devem estar representadas as entidades de trabalhadores da saúde e os movimentos sociais organizados para a defesa da saúde como direito social;
3) determinar que o meio mais apropriado para cidadãos "pagarem" por ações e serviços de saúde é não sonegarem impostos e contribuições devidas ao Estado brasileiro. Para disporem de “melhor acomodação” em serviços públicos de saúde devem lutar por isso ao lado dos demais brasileiros;
4) recomendar a aprovação, em caráter de urgência, pelo Congresso Nacional, de uma Contribuição Para o Financiamento do SUS (CPFSUS), nos moldes da CPMF da saúde (isentando do recolhimento as movimentações financeiras inferiores a três salários mínimos ou o patamar que os parlamentares considerarem mais adequado), para dar um basta na asfixia financeira do SUS e dotar o sistema de saúde dos recursos de que necessita para cumprir a missão em todo o País;
5) movimentar o Poder Judiciário e, dada a credibilidade, prestígio e importância republicana do STF, fazer cessar, imediatamente, a renúncia fiscal envolvendo cuidados de saúde e impedir os negócios realizados entre empresas e operadoras de planos de saúde, cujos contratos implicam valores definidos bilateralmente apenas por esses agentes econômicos, sem transparência, sem participação dos trabalhadores e sem qualquer controle por conselhos de saúde;
6) utilizar os instrumentos legais à disposição do Supremo Tribunal Federal para, nos termos da lei, e em caráter de urgência, vetar a possibilidade de financiamento de campanhas eleitorais, para qualquer tipo de mandato, por operadoras de planos de saúde, por violação da ética da responsabilidade pública na saúde e por se constituir em burla da legislação vigente;
7) determinar que, imediatamente, cesse o monopólio dos cargos de direção da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) por profissionais vinculados, direta ou indiretamente, às empresas que operam no setor de saúde suplementar, exigindo-se que pessoas indicadas para cargos diretivos de qualquer agência de saúde, em qualquer ente federativo, tenham os nomes aprovados pelos respectivos conselhos de saúde antes de serem homologados pelo poder legislativo competente, quando houver essa exigência.
Esses aspectos estão muito longe de esgotar o conjunto de problemas enfrentados para fazer cumprir os artigos 5º, 6º e 196 da Constituição brasileira de 1988, mas ajudam, creio, a não nos perdermos na geleia geral em que querem nos jogar o Cremers e assemelhados, pisoteando direitos e investindo na consolidação de iniquidades, que a maioria dos brasileiros recusa e contra as quais se mobiliza, conforme claramente indicaram as manifestações de junho de 2013.
Paulo Capel Narvai, 59, doutor em saúde pública, é professor titular da Faculdade de Saúde Pública da USP
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