O espírito santo do golpe é o inferno do Brasil
Prefigura-se ali o espetáculo truculento de uma sociedade exposta à crua expressão de seus conflitos, sob a égide de um Estado mínimo.por: Saul Leblon- Carta Maior
A população do Espírito Santo, sobretudo a da capital e região metropolitana, foi arrastada a uma viagem no tempo que antecipou, em vinte anos, o país da receita de arrocho implantada pelo golpe de 2016.
Por dias e noites prefigura-se ali o espetáculo truculento de uma sociedade submetida à crua expressão de seus interesses contrapostos, sob a égide de um Estado mínimo.
O acelerador da história, neste caso, foi o eclipse de um dos vigamentos centrais do poder estatal na sociedade moderna: o monopólio da violência.
Ele foi abduzido em terras capixabas por uma greve policial que fez recuar, com assustadora rapidez, o império da lei.
Em seu lugar emergiu um filme fantasmagórico.
Ruas desertas, paralisia do sistema coletivo de transporte, comércio de portas cerradas e escolas vazias.
Nesse ambiente zumbi o crime é o senhor ubíquo da vida e da morte da sociedade. Seu carcereiro, seu juiz e seu carrasco.
O saldo da, repita-se, velocidade com que a ordem supostamente baseada em valores compartilhados se liquefez, ombreia-se ao de regiões submetidas aos padecimentos das guerras convencionais.
Mais de uma centena de assassinatos –quase um por hora, cerca de duzentos roubos de veículos por dia, agressões, saques, desabastecimento.
O conjunto não contabiliza a octanagem de terror e insegurança experimentados pelos passageiros dessa aventura: os dois milhões de habitantes da Grande Vitória.
Sempre se poderá alegar em defesa do conservadorismo que serviços essenciais, como é o caso da segurança pública, não se incluem no credo da miniaturização do Estado por ele apregoada.
Na prática a teoria é outra.
E nisso também a aceleração temporal capixaba é fértil em advertências ao Brasil.
A barbárie que lateja no ventre dos ajustes fiscais draconianos, a exemplo daquilo que o golpe prescreve para os próximos vinte anos no país, evidenciou a sua cegueira indivisa no Espírito Santo.
O economista Marcos Lisboa, um dos clínicos mais respeitados das terapias neoliberais, ex-integrante da equipe do ex-ministro Antônio Palocci, acusa de ‘chantageadores’ policiais grevistas cujo salário base --de R$ 2.643-- está há 7 anos sem aumento real. E há 4 anos sem reajuste da inflação.
A informação é da Associação dos Oficiais Militares do ES.
A lista de exigências dos ‘chantagistas’ de Lisboa inclui itens que desconcertam pela sua exclusão na rotina de quem cuida da segurança da sociedade.
Auxílio alimentação, por exemplo. Mas também adicional noturno e plano de saúde, ademais de adornos ornamentais, como colete à prova de bala e manutenção das viaturas
A reação raivosa de Lisboa, infelizmente, não é solitária.
Encampa-a a constelação dos ditos economistas de mercado, dos quais se cercou o governo do Espírito Santo, recebendo em troca elogios regulares de suas estrelas na mídia.
Armínio Fraga, Samuel Pessoa, Mansueto Almeida, entre outros, chegam a arriscar o nome de Paulo Hartung, ‘ o governante bom de ajuste’, como um potencial concorrente à presidência da República pelo partido do ‘mercado’, em 2018.
De fato, o peemedebista Hartung, em seu terceiro mandato como governador, notabiliza-se pela determinação em cumprir aquilo que o neoliberalismo colegial denomina de ‘lição de casa’.
Aluno aplicado, o governador limou o orçamento de seu antecessor antes mesmo de tomar posse, em 2015, por considera-lo superestimado na coluna das receitas.
À frente da lipoaspiração fiscal estava uma titã da constelação ortodoxa: a economista Ana Paula Vescovi, cuja habilidade no manejo da tesoura rendeu-lhe um prêmio, após o golpe de agosto de 2016.
Apadrinhada pela turma de Lisboa, Manuseto, Armíno etc, ela foi alçada ao cargo estratégico de Secretária do Tesouro Nacional, em Brasília, levando na bolsa as lâminas necessárias para replicar na esfera nacional um dos mais duros processos de ajustes fiscais já feitos num Estado brasileiro.
Vescovi faz parte da ordem festejada pelo mercado por ‘entregar o serviço’ com fé, sem misericórdia.
Comprimir o Estado no que for preciso para honrar a dívida com os credores é o sacramento dessa operária do arrocho.
Sua eficiência virou um ‘case’ festejado na boca e nos artigos dos grandes malabaristas que defendem cortar as pernas do país para fazê-lo andar mais, com menos.
No seu terceiro mandato, Hartung herdou um déficit de R$ 1,4 bilhão em 2014.
A tesoura de Vescovi trabalhou com afinco.
Em 2015 o governador do PMDB pode anunciar um superávit de R$ 176 milhões: basicamente um cavalo de pau nos gastos, sem ganhos de receita.
Uma consultoria privada –a dos ortodoxos-- foi acoplada à máquina pública.
Meta: ‘reduzir desperdícios’ em áreas triviais como Educação, Saúde, Segurança etc
Em 2016, outro superávit.
Pequeno, informa-se, algo sem jeito, nestes dias em que a polícia local reivindica colete-à-prova de bala. Mas ilustrativo, na medida em que as receitas definharam com a recessão dos últimos dois anos e escavaram o fundo do poço em uma economia já detonada por suas peculiaridades.
O desastre da Samarco em Mariana (MG) paralisou quatro pelotizadoras da empresa no Espírito Santo, sobrepondo-se aos efeitos da queda nos preços do petróleo, cuja exploração na costa capixaba tem peso relevante na receita, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro.
Os dois estados, por sinal --vale o parêntesis-- estão destroçados financeiramente.
Mas não por acaso recebem tratamento distinto na mídia.
A crise carioca é demonizada pelo jogral dos economistas de mercado.
A superlativa desenvoltura com que o ex-governador Sergio Cabral ergueu seu pecúlio particular ancorado em obras públicas, lubrifica o martelete do oportunismo ortodoxo.
O RJ reportado pela emissão conservadora é um caso terminal de ‘má gestão e gastança’.
Ao diagnóstico emenda-se invariavelmente um vaticínio.
O Brasil seguirá o mesmo caminho se o ’ lulopopulismo’ não for erradicado, ou seja, se as medidas antissociais e antinacionais preconizadas pelo golpe não forem ministradas
A greve de policiais no Espírito Santo é uma pedra no caminho dessa narrativa.
Afinal, como um ‘case’ fiscal exemplar, que alçou sua condutora ao comando do Tesouro Nacional, pode redundar em uma crise igual ou pior que a do RJ perdulário?
Assim.
I) O sucesso do arrocho fiscal capixaba foi obtido basicamente com um corte drástico dos investimentos públicos; a previsão para este ano reserva apenas R$ 200 milhões a esse item;
II) a economia de cerca de R$ 1,6 bilhão obtida em 2015 correspondeu em 80% a tesouradas nessa rubrica, que explicam a lista desconcertante de reivindicações dos ‘chantagistas’ de Marcos Lisboa;
III) a proeza exigiu a suspensão do reajuste dos servidores públicos – tampouco previsto no orçamento de 2016, medida festejada como evidência de compromisso corajoso com a meta fiscal pelo jogral pró-cíclico.
Esse que não hesita em lançar boias de chumbo a afogados.
Na verdade, a reversão brusca nas rendas do petróleo tornada explosiva com a destruição da Petrobras, a paralisação de suas obras, o desmanche de estaleiros e da cadeia de fornecedores --graças à visão de mundo do juiz de Curitiba— exigiria uma ação federal preventiva para mitigar perdas e danos nos dois polos mais atingidos pela borrasca, RJ e ES.
Quem acredita, porém, que a quebradeira pune a ‘imundícia das intervenções’ indevidas na formação e distribuição da riqueza das nações, prefere a ‘purga’.
Era o que diziam também os antecessores de Franklin Roosevelt, em plena quebradeira de 1929 nos EUA.
Como hoje no Brasil, números azedos comandavam a economia sem que se erguesse uma força com legitimidade e projeto capaz de comandá-los.
O monólogo da ‘purga inevitável em tempos difíceis’ ia impondo sua ordem unida na frente da produção, do financiamento, do emprego e da política.
A percepção de que as rédeas escapavam às mãos que deveriam controlá-las, como acontece aqui, fornecia a ração diária do ceticismo que engrossa a cintura dos grandes colapsos nacionais.
O salve-se quem puder de cada unidade produtiva fornecia o combustível à imolação coletiva.
Em tempo: estamos falando de 1929 no hemisfério norte.
O liberal Herbert Hoover, presidente norte-americano então, assistia a tudo impassível.
Ou melhor, pró-cíclico.
Sua fé na autorregulação dos mercados embalava a sociedade em uma nuvem de colapso social e produtivo sem precedente.
Na semana em que Roosevelt assumiu a presidência, o país tinha proporcionalmente o maior contingente de desempregados do mundo.
Somado às respectivas famílias equivalia a uma população maior que a da Inglaterra então.
A perda de confiança no futuro funcionava como uma empresa demolidora; milhões de marretas anônimas trabalhavam dia e noite para desmontar o que restava do alicerce social e econômico.
Eleito no primeiro de quatro mandatos sucessivos em 1933, Roosevelt não esperou afundar o que restava de casco fora d’água.
Adotou um programa calcado em contundente intervenção do Estado na economia, o New Deal.
Um vigoroso plano de obras públicas destacava-se no seu corpo.
Mas não era a espinha dorsal.
Roosevelt domou o próprio medo e regulou duramente o sistema financeiro, o verdadeiro vórtice da crise.
A especulação bancária com dinheiro dos correntistas foi coibida, o dólar foi desvalorizado para favorecer as exportações.
Criou-se, ademais, um sistema de Previdência Social para proteger os trabalhadores, cuja sindicalização em massa foi incentivada, o que rendeu ao presidente democrata a acusação de comunista.
O ‘comunista’ salvava o capitalismo dele mesmo.
Roosevelt semeou assim protagonistas para as mesas de repactuação de preços, salários e metas de produção entre empresas, sindicatos e governo, que forneceriam a alavanca para reverter o desalento em esperança -- experiência inspiradora para um Brasil incapaz de enxergar a porta do futuro.
Roosevelt o fez –é bom não esquecer-- graças a uma correlação de força decidida na rua, que lhe deu o poder de indução nacional.
Assim ancorado, ganhou margem de manobra para taxar duramente o lucro financeiro e os dividendos e induzir o investimento produtivo.
Com a mesma legitimidade, reduziu horas de trabalho para gerar novos turnos nas fábricas; renegociou dívidas das empresas e renegociou o crédito, condicionando-o a metas de produção e emprego.
A prefiguração do que significa viver em uma sociedade regida pela espiral oposta --sem Estado, ou com um Estado mínimo-- encurrala nesse momento a população capixaba na fronteira da anomia social.
A sublevação do seu braço armado transfigurou a panaceia do ‘ajuste’ em uma guerra de todos contra todos.
Não é um ponto fora da curva.
É a curva da insanidade conservadora.
Essa que se outorgou a missão, não escrutinada, de dar um cavalo de pau na democracia e na economia brasileiras, jogando por terra amplos segmentos da sociedade, largas esferas da produção e a vontade soberana de 54 milhões de votos.
Pode acontecer de novo em outros elos vulneráveis de uma federação trincada por dívidas, déficits, receitas declinantes, colapso nos serviços, demandas sociais agigantadas pelo desemprego.
O desespero popular silencioso em outros grandes centros não significa que o risco Espírito Santo foi estancado.
A serpente continua a espalhar seus ovos.
Numa das cenas do filme “Ensaio sobre a Cegueira”, adaptação de Fernando Meirelles para o romance de Saramago, o personagem cego pergunta à esposa cuja visão subsiste na solidão de um mundo que perdeu a capacidade de se enxergar e se autogerir:
‘Há sinais de governo?’
A resposta é dada pelo angustiante passeio da câmera nas ruas de uma metrópole que lembra a noite sobressaltada de Vitória.
O que a lente documenta são bandos esfarrapados e famintos vagando sem destino. Modalidades previsíveis da barbárie preenchem um hiato em que o Estado desmoronou e os valores da convivência humana se eclipsaram.
A autorregulação dos mercados não preenche o vazio, amplifica-o.
Quem assistir ao filme nesses dias de convulsão doméstica dificilmente resistirá à analogia com um horizonte de desordem nacional que se estende até onde a blindagem do jornalismo conservador permite enxergar.
Ora ela explode em números de desemprego; ora em ações de um juiz que se comporta como uma entidade rapinosa; ora é a ingovernável visita da tragédia; ora decisões intempestivas de um parlamento que se comporta como a câmara de gás do futuro nacional, como se não houvesse amanhã.
Mais inquietante, no entanto, é a invisibilidade de alternativas que ofereçam à sociedade uma nova visão da economia e do seu desenvolvimento.
Para um pedaço da esquerda que já jogou a toalha, não há forças de redenção para resistir ao novo normal golpista.
Não sabem seus porta-vozes, mas o conformismo que engrossa a fila do matadouro azeita os dentes da engrenagem com a qual pretendem negociar.
A cegueira hoje é a jaula ideológica erguida ao longo de décadas de recuos e adaptação da democracia às imposições dos mercados e de seus dogmas.
Uma pergunta povoa o imaginário brasileiro com um misto de ansiedade progressista e apreensão conservadora.
Para onde vai Lula diante dessa encruzilhada, depois que jurou no caixão de dona Marisa continuar a luta pelo Brasil que inspirou suas vidas?
Lula não é um bolchevique.
Mas não se cansa de repetir que é fruto das lutas do povo brasileiro.
Seu norte é ‘nunca esquecer de onde veio’ –dizia-lhe a voz assertiva da ‘galega’, que vai ecoar para sempre na sua cabeça.
Lá dentro ele sabe que não há o que negociar na economia sem que antes a liberdade de sufrágio recoloque na mesa a vontade majoritária da população brasileira.
Os 113 mortos do Espírito Santo não são mera decorrência dos ‘chantagistas’.
Eles são a ponta de um iceberg feito de 12 milhões de desempregados, de R$ 50 bilhões em obras públicas paralisadas, da entrega do pre-sal, da destruição da engenharia nacional, do esquartejamento da Petrobrás, da ameaça aos assalariados, da penalização dos aposentados e pensionistas pobres, da escória erigida em autoridade e da rapina embalada em virtude.
Mudar isso implica reverter a correlação de forças. Aquela que permitiu a Roosevelt ser o que foi e impediu Obama de reeditá-lo.
A vontade majoritária da população brasileira precisa saber que o espírito santo de hoje prefigura o inferno do Brasil no passo seguinte de sua história.
Isso na voz rouca de Lula estala mais forte que pancada.
A ver.
Em seu lugar emergiu um filme fantasmagórico.
Ruas desertas, paralisia do sistema coletivo de transporte, comércio de portas cerradas e escolas vazias.
Nesse ambiente zumbi o crime é o senhor ubíquo da vida e da morte da sociedade. Seu carcereiro, seu juiz e seu carrasco.
O saldo da, repita-se, velocidade com que a ordem supostamente baseada em valores compartilhados se liquefez, ombreia-se ao de regiões submetidas aos padecimentos das guerras convencionais.
Mais de uma centena de assassinatos –quase um por hora, cerca de duzentos roubos de veículos por dia, agressões, saques, desabastecimento.
O conjunto não contabiliza a octanagem de terror e insegurança experimentados pelos passageiros dessa aventura: os dois milhões de habitantes da Grande Vitória.
Sempre se poderá alegar em defesa do conservadorismo que serviços essenciais, como é o caso da segurança pública, não se incluem no credo da miniaturização do Estado por ele apregoada.
Na prática a teoria é outra.
E nisso também a aceleração temporal capixaba é fértil em advertências ao Brasil.
A barbárie que lateja no ventre dos ajustes fiscais draconianos, a exemplo daquilo que o golpe prescreve para os próximos vinte anos no país, evidenciou a sua cegueira indivisa no Espírito Santo.
O economista Marcos Lisboa, um dos clínicos mais respeitados das terapias neoliberais, ex-integrante da equipe do ex-ministro Antônio Palocci, acusa de ‘chantageadores’ policiais grevistas cujo salário base --de R$ 2.643-- está há 7 anos sem aumento real. E há 4 anos sem reajuste da inflação.
A informação é da Associação dos Oficiais Militares do ES.
A lista de exigências dos ‘chantagistas’ de Lisboa inclui itens que desconcertam pela sua exclusão na rotina de quem cuida da segurança da sociedade.
Auxílio alimentação, por exemplo. Mas também adicional noturno e plano de saúde, ademais de adornos ornamentais, como colete à prova de bala e manutenção das viaturas
A reação raivosa de Lisboa, infelizmente, não é solitária.
Encampa-a a constelação dos ditos economistas de mercado, dos quais se cercou o governo do Espírito Santo, recebendo em troca elogios regulares de suas estrelas na mídia.
Armínio Fraga, Samuel Pessoa, Mansueto Almeida, entre outros, chegam a arriscar o nome de Paulo Hartung, ‘ o governante bom de ajuste’, como um potencial concorrente à presidência da República pelo partido do ‘mercado’, em 2018.
De fato, o peemedebista Hartung, em seu terceiro mandato como governador, notabiliza-se pela determinação em cumprir aquilo que o neoliberalismo colegial denomina de ‘lição de casa’.
Aluno aplicado, o governador limou o orçamento de seu antecessor antes mesmo de tomar posse, em 2015, por considera-lo superestimado na coluna das receitas.
À frente da lipoaspiração fiscal estava uma titã da constelação ortodoxa: a economista Ana Paula Vescovi, cuja habilidade no manejo da tesoura rendeu-lhe um prêmio, após o golpe de agosto de 2016.
Apadrinhada pela turma de Lisboa, Manuseto, Armíno etc, ela foi alçada ao cargo estratégico de Secretária do Tesouro Nacional, em Brasília, levando na bolsa as lâminas necessárias para replicar na esfera nacional um dos mais duros processos de ajustes fiscais já feitos num Estado brasileiro.
Vescovi faz parte da ordem festejada pelo mercado por ‘entregar o serviço’ com fé, sem misericórdia.
Comprimir o Estado no que for preciso para honrar a dívida com os credores é o sacramento dessa operária do arrocho.
Sua eficiência virou um ‘case’ festejado na boca e nos artigos dos grandes malabaristas que defendem cortar as pernas do país para fazê-lo andar mais, com menos.
No seu terceiro mandato, Hartung herdou um déficit de R$ 1,4 bilhão em 2014.
A tesoura de Vescovi trabalhou com afinco.
Em 2015 o governador do PMDB pode anunciar um superávit de R$ 176 milhões: basicamente um cavalo de pau nos gastos, sem ganhos de receita.
Uma consultoria privada –a dos ortodoxos-- foi acoplada à máquina pública.
Meta: ‘reduzir desperdícios’ em áreas triviais como Educação, Saúde, Segurança etc
Em 2016, outro superávit.
Pequeno, informa-se, algo sem jeito, nestes dias em que a polícia local reivindica colete-à-prova de bala. Mas ilustrativo, na medida em que as receitas definharam com a recessão dos últimos dois anos e escavaram o fundo do poço em uma economia já detonada por suas peculiaridades.
O desastre da Samarco em Mariana (MG) paralisou quatro pelotizadoras da empresa no Espírito Santo, sobrepondo-se aos efeitos da queda nos preços do petróleo, cuja exploração na costa capixaba tem peso relevante na receita, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro.
Os dois estados, por sinal --vale o parêntesis-- estão destroçados financeiramente.
Mas não por acaso recebem tratamento distinto na mídia.
A crise carioca é demonizada pelo jogral dos economistas de mercado.
A superlativa desenvoltura com que o ex-governador Sergio Cabral ergueu seu pecúlio particular ancorado em obras públicas, lubrifica o martelete do oportunismo ortodoxo.
O RJ reportado pela emissão conservadora é um caso terminal de ‘má gestão e gastança’.
Ao diagnóstico emenda-se invariavelmente um vaticínio.
O Brasil seguirá o mesmo caminho se o ’ lulopopulismo’ não for erradicado, ou seja, se as medidas antissociais e antinacionais preconizadas pelo golpe não forem ministradas
A greve de policiais no Espírito Santo é uma pedra no caminho dessa narrativa.
Afinal, como um ‘case’ fiscal exemplar, que alçou sua condutora ao comando do Tesouro Nacional, pode redundar em uma crise igual ou pior que a do RJ perdulário?
Assim.
I) O sucesso do arrocho fiscal capixaba foi obtido basicamente com um corte drástico dos investimentos públicos; a previsão para este ano reserva apenas R$ 200 milhões a esse item;
II) a economia de cerca de R$ 1,6 bilhão obtida em 2015 correspondeu em 80% a tesouradas nessa rubrica, que explicam a lista desconcertante de reivindicações dos ‘chantagistas’ de Marcos Lisboa;
III) a proeza exigiu a suspensão do reajuste dos servidores públicos – tampouco previsto no orçamento de 2016, medida festejada como evidência de compromisso corajoso com a meta fiscal pelo jogral pró-cíclico.
Esse que não hesita em lançar boias de chumbo a afogados.
Na verdade, a reversão brusca nas rendas do petróleo tornada explosiva com a destruição da Petrobras, a paralisação de suas obras, o desmanche de estaleiros e da cadeia de fornecedores --graças à visão de mundo do juiz de Curitiba— exigiria uma ação federal preventiva para mitigar perdas e danos nos dois polos mais atingidos pela borrasca, RJ e ES.
Quem acredita, porém, que a quebradeira pune a ‘imundícia das intervenções’ indevidas na formação e distribuição da riqueza das nações, prefere a ‘purga’.
Era o que diziam também os antecessores de Franklin Roosevelt, em plena quebradeira de 1929 nos EUA.
Como hoje no Brasil, números azedos comandavam a economia sem que se erguesse uma força com legitimidade e projeto capaz de comandá-los.
O monólogo da ‘purga inevitável em tempos difíceis’ ia impondo sua ordem unida na frente da produção, do financiamento, do emprego e da política.
A percepção de que as rédeas escapavam às mãos que deveriam controlá-las, como acontece aqui, fornecia a ração diária do ceticismo que engrossa a cintura dos grandes colapsos nacionais.
O salve-se quem puder de cada unidade produtiva fornecia o combustível à imolação coletiva.
Em tempo: estamos falando de 1929 no hemisfério norte.
O liberal Herbert Hoover, presidente norte-americano então, assistia a tudo impassível.
Ou melhor, pró-cíclico.
Sua fé na autorregulação dos mercados embalava a sociedade em uma nuvem de colapso social e produtivo sem precedente.
Na semana em que Roosevelt assumiu a presidência, o país tinha proporcionalmente o maior contingente de desempregados do mundo.
Somado às respectivas famílias equivalia a uma população maior que a da Inglaterra então.
A perda de confiança no futuro funcionava como uma empresa demolidora; milhões de marretas anônimas trabalhavam dia e noite para desmontar o que restava do alicerce social e econômico.
Eleito no primeiro de quatro mandatos sucessivos em 1933, Roosevelt não esperou afundar o que restava de casco fora d’água.
Adotou um programa calcado em contundente intervenção do Estado na economia, o New Deal.
Um vigoroso plano de obras públicas destacava-se no seu corpo.
Mas não era a espinha dorsal.
Roosevelt domou o próprio medo e regulou duramente o sistema financeiro, o verdadeiro vórtice da crise.
A especulação bancária com dinheiro dos correntistas foi coibida, o dólar foi desvalorizado para favorecer as exportações.
Criou-se, ademais, um sistema de Previdência Social para proteger os trabalhadores, cuja sindicalização em massa foi incentivada, o que rendeu ao presidente democrata a acusação de comunista.
O ‘comunista’ salvava o capitalismo dele mesmo.
Roosevelt semeou assim protagonistas para as mesas de repactuação de preços, salários e metas de produção entre empresas, sindicatos e governo, que forneceriam a alavanca para reverter o desalento em esperança -- experiência inspiradora para um Brasil incapaz de enxergar a porta do futuro.
Roosevelt o fez –é bom não esquecer-- graças a uma correlação de força decidida na rua, que lhe deu o poder de indução nacional.
Assim ancorado, ganhou margem de manobra para taxar duramente o lucro financeiro e os dividendos e induzir o investimento produtivo.
Com a mesma legitimidade, reduziu horas de trabalho para gerar novos turnos nas fábricas; renegociou dívidas das empresas e renegociou o crédito, condicionando-o a metas de produção e emprego.
A prefiguração do que significa viver em uma sociedade regida pela espiral oposta --sem Estado, ou com um Estado mínimo-- encurrala nesse momento a população capixaba na fronteira da anomia social.
A sublevação do seu braço armado transfigurou a panaceia do ‘ajuste’ em uma guerra de todos contra todos.
Não é um ponto fora da curva.
É a curva da insanidade conservadora.
Essa que se outorgou a missão, não escrutinada, de dar um cavalo de pau na democracia e na economia brasileiras, jogando por terra amplos segmentos da sociedade, largas esferas da produção e a vontade soberana de 54 milhões de votos.
Pode acontecer de novo em outros elos vulneráveis de uma federação trincada por dívidas, déficits, receitas declinantes, colapso nos serviços, demandas sociais agigantadas pelo desemprego.
O desespero popular silencioso em outros grandes centros não significa que o risco Espírito Santo foi estancado.
A serpente continua a espalhar seus ovos.
Numa das cenas do filme “Ensaio sobre a Cegueira”, adaptação de Fernando Meirelles para o romance de Saramago, o personagem cego pergunta à esposa cuja visão subsiste na solidão de um mundo que perdeu a capacidade de se enxergar e se autogerir:
‘Há sinais de governo?’
A resposta é dada pelo angustiante passeio da câmera nas ruas de uma metrópole que lembra a noite sobressaltada de Vitória.
O que a lente documenta são bandos esfarrapados e famintos vagando sem destino. Modalidades previsíveis da barbárie preenchem um hiato em que o Estado desmoronou e os valores da convivência humana se eclipsaram.
A autorregulação dos mercados não preenche o vazio, amplifica-o.
Quem assistir ao filme nesses dias de convulsão doméstica dificilmente resistirá à analogia com um horizonte de desordem nacional que se estende até onde a blindagem do jornalismo conservador permite enxergar.
Ora ela explode em números de desemprego; ora em ações de um juiz que se comporta como uma entidade rapinosa; ora é a ingovernável visita da tragédia; ora decisões intempestivas de um parlamento que se comporta como a câmara de gás do futuro nacional, como se não houvesse amanhã.
Mais inquietante, no entanto, é a invisibilidade de alternativas que ofereçam à sociedade uma nova visão da economia e do seu desenvolvimento.
Para um pedaço da esquerda que já jogou a toalha, não há forças de redenção para resistir ao novo normal golpista.
Não sabem seus porta-vozes, mas o conformismo que engrossa a fila do matadouro azeita os dentes da engrenagem com a qual pretendem negociar.
A cegueira hoje é a jaula ideológica erguida ao longo de décadas de recuos e adaptação da democracia às imposições dos mercados e de seus dogmas.
Uma pergunta povoa o imaginário brasileiro com um misto de ansiedade progressista e apreensão conservadora.
Para onde vai Lula diante dessa encruzilhada, depois que jurou no caixão de dona Marisa continuar a luta pelo Brasil que inspirou suas vidas?
Lula não é um bolchevique.
Mas não se cansa de repetir que é fruto das lutas do povo brasileiro.
Seu norte é ‘nunca esquecer de onde veio’ –dizia-lhe a voz assertiva da ‘galega’, que vai ecoar para sempre na sua cabeça.
Lá dentro ele sabe que não há o que negociar na economia sem que antes a liberdade de sufrágio recoloque na mesa a vontade majoritária da população brasileira.
Os 113 mortos do Espírito Santo não são mera decorrência dos ‘chantagistas’.
Eles são a ponta de um iceberg feito de 12 milhões de desempregados, de R$ 50 bilhões em obras públicas paralisadas, da entrega do pre-sal, da destruição da engenharia nacional, do esquartejamento da Petrobrás, da ameaça aos assalariados, da penalização dos aposentados e pensionistas pobres, da escória erigida em autoridade e da rapina embalada em virtude.
Mudar isso implica reverter a correlação de forças. Aquela que permitiu a Roosevelt ser o que foi e impediu Obama de reeditá-lo.
A vontade majoritária da população brasileira precisa saber que o espírito santo de hoje prefigura o inferno do Brasil no passo seguinte de sua história.
Isso na voz rouca de Lula estala mais forte que pancada.
A ver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário