- Frederico de Almeida
Professor
Os critérios legais para a decretação de prisão preventiva são abertos o suficiente para deixarem aos operadores da justiça criminal uma considerável margem de discricionariedade na produção do sentido do que seja “garantia da ordem pública e da ordem econômica”, “conveniência da instrução criminal” e“assegurar a aplicação da lei penal”. Se na prática judicial e nos desenvolvimentos doutrinários os dois últimos critérios são, em geral, associados à necessidade de se evitar coação de testemunhas ou destruição de provas e a fuga do acusado, respectivamente, o primeiro critério mantém a maior margem para a introdução de conteúdos inevitavelmente políticos, por parte de promotores e juízes, sobre o que seja a “garantia da ordem”.
Nesse sentido, por exemplo, a prática de advogados e defensores públicos e pesquisas sobre o uso desses critérios na justiça criminal já verificaram que, para“garantir a ordem pública”, promotores e juízes praticamente antecipam um juízo condenatório dos acusados, ao afirmarem muitas vezes que a “gravidade” do crime cometido e a “periculosidade” do criminoso são capazes de “perturbar a paz e a ordem”, e que sob a alegação de “conveniência da instrução criminal” moradores de favela acusados são presos devido ao “risco de fuga” decorrente de seu endereço“incerto”.
Por isso é possível dizer, de um lado, que o pedido de prisão preventiva de Lula feito pelo Ministério Público de São Paulo nesta semana segue os padrões de atuação da instituição em matéria criminal, padrão esse que, somado à cumplicidade de juízes, pode estar entre as causas da seletividade da justiça e do assombroso nível de encarceramento que o Brasil e o estado de São Paulo alcançaram. De outro lado, os motivos alegados pelos promotores no pedido de prisão de Lula nos mostram que, ao menos nesse caso, o MP foi além no uso da discricionariedade e na politização dos critérios relativamente abertos para a prisão preventiva.
Em primeiro lugar, o pedido do MP é autoritário. O critério de garantia da ordem pública é associado a uma alegada posição de Lula de deslegitimação das instituições judiciais. Essa postura estaria “comprovada” pelo fato de que o ex-presidente tem sido crítico dos operadores e instituições que conduzem investigações contra ele e sua família, e no fato de que Lula se acharia “acima da lei” e reinvindicaria o direito de não ser investigado ou punido. Para a “comprovação” desses fatos o MP traz notícias de jornais e declarações de Lula que são de conhecimento público, e não demonstram necessariamente uma ação efetiva do ex-presidente de ataque a instituições que não possa ser enquadrada como crítica legítima, ainda que autointeressada e por vezes exagerada, ao funcionamento da justiça. Se crítica às instituições de justiça for motivo para prisão, eu e muitos colegas cientistas sociais e juristas corremos sério risco de sermos presos em algum momento; e se a ideia de “ordem pública” passar a ser considerada equivalente à impossibilidade de crítica às instituições estatais, é a democracia que corre riscos.
Em segundo lugar, o pedido do MP é partidarizado. Ainda buscando elementos para comprovar a “ameaça” à ordem pública e a “conveniência” da instrução criminal, os promotores autores do pedido de prisão referem-se a mobilizações de partidários do ex-presidente e quadros políticos do PT em apoio a Lula e em protesto contra as investigações policiais. Está aí de novo o autoritarismo de quem não consegue entender a democracia como um regime de liberdade de opinião, de manifestação e de participação política; mas está aí também o partidarismo revelado pela tentativa de criminalizar um partido e um tipo de prática política que, embora tenham se desvirtuado ou perdido força, sempre se caracterizaram pela mobilização de massas e por algum grau de crítica e confrontação com o Estado. Se as mobilizações de apoio a Lula são uma “rede violenta” de “ataque” às instituições, baseada na estrutura partidária do PT, mas outros movimentos políticos (como os pró-impeachment) não são, então isso é partidarismo.
Por fim, o pedido de prisão de Lula é irresponsável. Foi feito cerca de uma semana após a igualmente irresponsável condução coercitiva de Lula pela Polícia Federal, e pelo mesmo cínico motivo, que é o de evitar a ocorrência de manifestações políticas de protesto em decorrência da prisão de Lula. O MPF e o juiz Moro, pelo menos, tentaram mostrar alguma sofisticação e aparente distanciamento do conflito político, ao sustentarem que a condução coercitiva evitaria confrontos entre partidários e opositores de Lula no clima atual de polarização política, e por isso serviria à própria segurança do acusado. O MP paulista, por sua vez, quer evitar manifestações porque elas atentam contra a ordem e ameaçam a condução do processo judicial.
O pedido de prisão de Lula acontece às vésperas de manifestações contra o governo, que devem acontecer no próximo domingo, numa semana de elevada tensão política e de acirramento dos ânimos – entre outras razões pela condução coercitiva de Lula na semana anterior. Os promotores paulistas sabem disso, e nem sequer disfarçaram, ao contrários dos colegas paranaenses, sua intenção autoritária e partidarizada de inflamar o conflito político. Faz tempo que as manifestações contra o governo e o PT misturam-se perigosamente com outras expressões violentas de intolerância e ódio político – ataque a ciclistas “comunistas”, a militantes de camiseta vermelha e a intelectuais de esquerda. Com a ofensiva política, policial e judicial contra Lula e o governo Dilma, petistas já mostraram disposição de reagir, que aumenta na mesma medida do abuso dos procedimentos judiciais e da explicitude de sua partidarização. Há quem receie confrontos e violência no próximo domingo. Analisando as coisas em perspectiva, se isso acontecer, será difícil encontrar culpados, mas certamente a irresponsabilidade dos promotores que pediram a prisão de Lula deve entrar nesse balanço, e as piadas que se seguiram à menção equivocada a Marx e Engels (Hegel??) na manifestação do MP serão apenas a face patética (mais que cômica) de uma tragédia anunciada.
Frederico de Almeida é bacharel em Direito, mestre e doutor em Ciência Política pela USP, e professor do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP.
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