Fiocruz:
“O desafio é claro: a população brasileira está envelhecendo, demandará cada vez mais cuidados assistidos e o Estado não tem, hoje, uma política de apoio e suporte para essas pessoas. Se seguirmos este caminho, o resultado será uma desigualdade ainda maior no acesso à saúde, justamente no momento da vida que requer mais atenção”. A conclusão é da médica Deborah Malta, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e uma das coordenadoras da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 (PNS 2013). Nesta entrevista, ela comenta as principais conclusões do maior inquérito populacional sobre saúde já realizado no Brasil e aponta tendências preocupantes para o futuro, como a intensificação das doenças crônicas não transmissíveis e a necessidade de mais investimentos e ações intersetoriais. Deborah alerta: “É preciso antever a ‘cidade do futuro’ e somar esforços da Saúde, da Educação, da Assistência Social, dos Transportes, enfim, de todos os setores da sociedade, para que o cuidado aos idosos se desenvolva de forma integral”.
Quais as contribuições da PNS 2013 para a prospecção do futuro do sistema de saúde brasileiro?
A PNS 2013 é o maior inquérito populacional sobre saúde já realizado no país: foram 60 mil domicílios, 64 mil respondentes. Mil coletadores de informações precorreram todas as unidades federadas, no meio urbano e rural, para traçar o perfil de saúde dos brasileiros. Os resultados nos dão um amplo panorama sobre o estilo de vida da população, a prevalência de doenças crônicas não transmissíveis e o acesso ao sistema de saúde, dentre outras informações valiosas para o planejamento do setor Saúde em médio e longo prazo. A PNS 2013 nos dá, de fato, uma linha de base para que seja possível monitorar o conjunto de indicadores de saúde, avaliar as ações e estratégias desenvolvidas até o momento e planejar o futuro.
Um dos aspectos mais relevantes da Pesquisa é a geração de conhecimentos sobre a forma como a população brasileira está envelhecendo. Foram mensurados indicadores que medem a fragilidade e o grau de incapacidade dos idosos, como a realização de atividades instrumentais, como se movimentar sozinho ou ir ao banco, por exemplo, e os cuidados básicos com a saúde, como a própria higiene. A PNS 2013 também trouxe informações sobre o acesso de idosos a cuidadores profissionalizados, revelando iniquidades que devem ser consideradas no planejamento de políticas públicas voltadas a este segmento da população. Em síntese, percebemos que já existe uma parcela da população idosa que está bastante frágil e nem sempre tem acesso aos serviços e cuidados de saúde de forma integral. Monitorar essas pessoas e suas condições de vida é imprescindível se desejamos ter uma população saudável no futuro.
Que tendências futuras sobre a saúde da população brasileira podem ser vislumbradas a partir dos resultados da PNS 2013?
O desafio é claro: a população brasileira está envelhecendo, demandará cada vez mais cuidados assistidos e o Estado não tem, hoje, uma política de apoio e suporte para essas pessoas. Se seguirmos este caminho, o resultado será uma desigualdade ainda maior no acesso à saúde, justamente no momento da vida que requer mais atenção. Os dados da PNS 2013 sobre as doenças crônicas não transmissíveis demonstram claramente essa tendência: 45% dos idosos brasileiros referem algum desses problemas. Dentre eles, 55% têm baixa escolaridade. Esses dados podem, sim, ser interpretados positivamente. Afinal, foi a universalidade e a equidade do SUS que permitiram o maior acesso ao sistema de saúde, levando mais pessoas a receber o diagnóstico. Por outro lado, precisamos reconhecer que pessoas com doenças crônicas são mais vulneráveis, apresentam mais incapacidades para a vida diária e demandarão cuidados mais frequentes e complexos do sistema de saúde. Portanto, esse tema é um importante objeto de monitoramento no horizonte dos próximos 20 anos.
Outra questão relevante é a obesidade. Comparando os dados da PNS 2013 com os obtidos em 2008 pela Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), verificamos o aumento do excesso de peso da população brasileira. Hoje, a obesidade acomete 24% das brasileiras e 18% dos brasileiros. O compromisso firmado pelo Brasil no Plano Nacional de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis, em 2011, e no Plano Global de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis, lançado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2015, era conter a expansão desses problemas de saúde. Nós não cumprimos esta meta, ao contrário, registramos uma tendência de crescimento da obesidade e de outras condições crônicas. Sem dúvida, esse conjunto de doenças será um objeto contínuo de monitoramento, inclusive com compromissos globais.
Quais as perspectivas para os próximos 20 anos em relação à prevalência e ao controle das doenças crônicas não transmissíveis no Brasil?
Dentre os indicadores dos planos Nacional e Global de Enfrentamento às Doenças Crônicas Não Transmissíveis estão a contenção dos casos de hipertensão arterial e de diabetes. Os resultados de diversas pesquisas apontam que a prevalência da hipertensão não está aumentando no Brasil. Porém, a realidade não é a mesma para a diabetes. Acompanhando as tendências de sobrepeso e envelhecimento da população, esta doença está crescendo no Brasil. Certamente daqui a vinte anos a prevalência da diabetes ainda será uma medida muito importante da PNS. Poderemos comparar os índices de 2033 com os de 2013 para inferir as condições de acesso ao diagnóstico e ao tratamento e questionar se os esforços empreendidos geraram resultados satisfatórios. Por isso é fundamental que a PNS seja realizada periodicamente, mantendo parâmetros que permitam a comparação de cenários e a avaliação crítica das políticas públicas.
A edição de 2013 da PNS traz informações interessantes sobre a hipertensão: somente 3% da população brasileira nunca mediu a pressão arterial. Isso significa que 97% já teve acesso ao procedimento ou, em outras palavras, à possibilidade de receber o diagnóstico de uma doença crônica não transmissível. Com isso, hoje sabemos que mais de 20% da população brasileira tem hipertensão e que quase 90% dos pacientes usam medicamentos para controlá-la, ou seja, têm acesso ao tratamento. O inquérito também revelou que mais de 50% dos hipertensos em tratamento obtém os medicamentos nos centros de saúde; de 25% a 30% nas farmácias populares; e menos de 25% no setor privado. E são pessoas com menor escolaridade que têm acesso aos medicamentos necessários para controlar a hipertensão pelo setor público. Isso mostra de forma muito positiva como o SUS provê o diagnóstico, o tratamento e o acompanhamento dessa população.
A Pesquisa constatou, ainda, que 85% desses pacientes tiveram acesso a médicos especialistas e que, em 56% do casos, o paciente é acompanhado pelo mesmo cuidador. A partir dessas informações concluímos que o manejo dos hipertensos vem sendo realizado de forma bastante adequada no Brasil. As mesmas perguntas foram aplicadas às pessoas com diabetes. Verificamos que 15% da população nunca tinha feito exame de sangue. Por outro lado, quase 60% dos pacientes são acompanhados pelo mesmo cuidador e mais de 90% têm acesso ao tratamento – e tudo isso é muito positivo. Os principais problemas no manejo do paciente diabético dizem respeito a exames dos pés e das vistas: somente um terço dos pacientes teve acesso a este tipo de cuidado. Portanto, ainda temos muito a avançar.
Metodologicamente, como foi possível realizar este trabalho, sobretudo um país tão extenso e diverso como o Brasil?
A PNS 2013 é resultado de um esforço interinstitucional. Participaram diversas secretarias do Ministério da Saúde, a Fiocruz e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje a instituição brasileira com o maior nível de capilaridade para executar uma pesquisa como esta, com qualidade e em todo território nacional. Um comitê gestor liderado pela Fiocruz e pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e composto por pesquisadores de diferentes especialidades definiu os questionários, os temas, as abordagens e, também, a metodologia utilizada na Pesquisa. A amostra populacional foi desenhada pelo IBGE, que acumula experiência nesta área, com o auxílio muito próximo da Fiocruz.
A PNS 2013 é resultado de um esforço interinstitucional. Participaram diversas secretarias do Ministério da Saúde, a Fiocruz e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje a instituição brasileira com o maior nível de capilaridade para executar uma pesquisa como esta, com qualidade e em todo território nacional. Um comitê gestor liderado pela Fiocruz e pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e composto por pesquisadores de diferentes especialidades definiu os questionários, os temas, as abordagens e, também, a metodologia utilizada na Pesquisa. A amostra populacional foi desenhada pelo IBGE, que acumula experiência nesta área, com o auxílio muito próximo da Fiocruz.
Alguns aspectos metodológicos inovadores merecem destaque. Esta foi a primeira vez que o IBGE coletou amostras específicas das capitais. Trabalhamos com as dimensões Brasil, Regiões, Unidades Federadas e Capitais, nos meios urbano e rural. Além disso, até então o IBGE trabavalha com uma pessoa da casa respondendo por todo o domicílio. Para a PNS 2013 esse método seria insuficiente. Nós precisávamos selecionar por sorteio, em cada domicílio, quem seriam os respondentes. E o IBGE aceitou o desafio, concretizando essa inovação metodológica. Outra novidade foi o registro de dados físicos da população: a ocorrência ou não de hipertensão arterial, a medida antropométrica e a realização de exames laboratoriais.
De que forma ações focadas nos determinantes sociais da saúde e na superação de iniquidades podem, em médio e longo prazo, assegurar melhores condições de vida para os idosos no Brasil?
A ação sobre os determinantes sociais extrapola o setor Saúde. São necessárias, também, políticas de Educação, de geração de emprego e renda, de garantia da Previdência Social. Esse planejamento deve ser feito cada vez mais de forma integrada. O aumento do número de idosos na população gera mais demandas para o serviços de saúde, requer mais profissionais especializados, gera novas necessidades de acessibilidade e mobilidade, dentre muitos outros fatores. Então é preciso pensar, antecipadamente, em quais serão os profissionais necessários para assistir essa população, quais serão as transformações necessárias para tornar as cidades mais adequadas às pessoas mais velhas. É preciso antever a ‘cidade do futuro’ e somar esforços da Saúde, da Educação, da Assistência Social, dos Transportes, enfim, de todos os setores da sociedade, para que o cuidado aos idosos se desenvolva de forma integral.
É preciso refletir, também, sobre como a sociedade acolhe os seus idosos e como as comunidades irão se preparar para acompanhar as pessoas mais velhas. Sabemos que nem todo idoso terá cuidadores pagos. O Estado e as famílias não dispõem de recursos para isso. Portanto, a solidariedade será fundamental para garantir qualidade de vida aos brasileiros com mais idade, inclusive para evitar problemas como a depressão. Outra preocupação muito grande é em relação à Previdência Social. Inegavelmente serão necessários mais recursos. Todos esses são grandes desafios para o Brasil do século XXI, do século XXII. A PNS 2013 nos mostra que avançamos muito nos últimos anos – sim, nós reduzimos consideravelmente as iniquidades em saúde – mas ainda há muito a superar. E isso só será possível com planejamento de longo prazo, políticas públicas integradas e investimentos massivos, sobretudo nos grupos mais vulneráveis, que acumulam fatores de risco e, portanto, adoecem mais.
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