Contra o fascismo, ocupar a República
O símbolo do fascismo, que vem do latim “fasces”, representa o feixe usado pelos lictores romanos para significar o seu poder de constranger, torturar e punir de morte os inimigos de Roma. O feixe fascista simboliza a vontade de reunir os indivíduos para fazê-los caber, por meio da força, no mesmo conjunto, e transformá-los em uma arma ao serviço de uma vontade única. É o símbolo de uma unicidade buscando adestrar a pluralidade.
Enquanto fenômeno histórico, o fascismo surgiu da emergência de um ideário totalitário nos anos 1920 e 1930 que nasceu em resposta ao crescimento do movimento operário e da Revolução Socialista empreendida na URSS e nos países europeus. Surgiu, sobretudo, na Itália de Mussolini e na Alemanha nazista, mas também no Japão, na Espanha e em Portugal, como resultado do cenário do pós Primeira Guerra, e levando, por sua vez, à precipitação da Segunda Guerra. Esses movimentos se apoiavam num discurso de unidade excludente (nacional e racial), num Estado ditatorial centralizado, militarizado, interventor e controlador de todos os aspectos da vida social e política.
Nesse sentido, não pode existir fascismo de esquerda; pois são expressões antitéticas. A esquerda luta essencialmente por um projeto inclusivo e pluralista. Na história, a esquerda sempre lutou pela liberdade contra a exploração e a escravidão, pela universalidade contra o nacionalismo e o imperialismo, e ainda, pela emancipação contra o colonialismo o racismo e o sexismo.
Aqui é importante fugir da caricatura (criada pelo liberalismo) de que a esquerda luta pelo apagamento das diferenças. Na verdade, a esquerda luta pela expressão livre de todas as singularidades, e acredita que a liberdade apenas possa ser experimentada através da igualdade. Todo regime que defende a liberdade sem igualdade esconde a opressão.
Como disse Michel Foucault no texto Anti-Édipo: uma introdução a uma vida não fascista, o fascismo é nosso inimigo maior, e “não apenas o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que soube tão bem mobilizar e utilizar o desejo das massas – mas também o fascismo que está em todos nós, que assombra nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa mesma que nos domina e nos explora”[1].
O fascismo é a negação do projeto democrático. Ele atenta à expressão da multiplicidade de vozes na arena pública (pólis), reduzindo-a em unicidade. No regime militar brasileiro, o governo militar dizia representar a vontade una da nação, como se existisse uma só Vontade e uma só Nação. A rigor, o próprio conceito de Nação é de inspiração fascista e racista. Por isto os “bolsonaristas” e golpistas deste País se enroscam na bandeira verde-amarela do Brasil, e a reivindicam como sua própria: para um fascista só existe uma razão, uma vontade, uma forma de ser e, evidentemente, as únicas que ele suporta são aquelas que ele diz representar e defender.
Por isto, o ideário fascista começa por mobilizar um universo moral, e o projeto fascista luta para que se imponha uma única visão do mundo moralizado. A moralização é a alavanca de um projeto fascista que não admite a possibilidade de que outras formas de vida sejam possíveis. Outras formas de família, outras formas de amor. Se a política é arena de conflito, de divergências, de negociação, de pluralidade, o projeto fascista se apresenta justamente como anti-político, reduzindo qualquer hierarquização a fenômenos naturais e morais que, muitas vezes, se realizam por meio de uma fé religiosa utilitarista. A moral, para os fascistas, é o espaço da homogeneidade, da paz e da harmonia.
Como o projeto fascista defende a unidade de visão do mundo, este estaria dividido entre bons e maus; e os maus têm culpa. Eles são culpados de vivermos um mundo que poderia ser “harmônico” se eles não existissem. Para o fascismo recuperaríamos essa fantasia de que o mundo é harmônico se eliminarmos os culpados da multiplicidade do mundo. Esses culpados precisam ser perseguidos e na medida do possível eliminados.
O ideário fascista acredita em uma situação problemática (guerra, terror, criminalidade, corrupção, desemprego, escassez etc.) para fazer sua proposta extremada e redentora. Emprega uma linguagem carregada de metáforas sobre doença e fraqueza, sujeira e podridão, perda e ameaça, crise e caos etc., em relação aos quais propõe uma cura, uma limpeza, uma reconquista e uma reação. Elege grupos específicos sobre os quais fazer sua demonstração de força e clivagem, geralmente grupos minoritários já vulneráveis, perseguidos ou marginalizados, contra os quais é mais fácil mobilizar preconceitos e ódios já existentes e empreender cruzadas de agressão. Assim, o fascismo é uma ruptura do “nós” político. É uma vontade de verdade incontestável e de unidade que vira vontade de destruição do diferente, reinterpretado como inimigo a ser eliminado: perverso, matreiro, perigoso, irrecuperável.
No discurso fascista, alguém corrompeu o paraíso na terra, o qual só poderá voltar a existir depois que os corruptores tiverem sido neutralizados ou eliminados. Deve-se desconfiar sempre do uso dessas palavras: sujeira, perigo, risco, ameaça, crise, corrupção. Muitas vezes, elas são usadas para calar e eliminar pessoas.
O que é fundamental para o desenvolvimento do ideário fascista é que se imponha uma única visão do mundo. Mundo este que deve ser guiado por um padrão moral uniformizador que nega a diversidade social, representada em várias expressões de família, de amor, de vida. O fascista enxerga a sociedade sob o ângulo da normalização: ou você é normal, um “cidadão de bem”, ou você deve ser eliminado por ser um “marginal”, um “inútil”, um “parasita” ou, como está na moda, um “esquerdopata”.
O fascista acredita que o mundo é naturalmente hierarquizado e qualquer crítica a essa postura é vista como heresia. Ele busca apresentar as diferenças sociais e as desigualdades como naturais. Daí que para um fascista é insuportável qualquer proposta de miscigenação racial, de pluralidade sexual, e que homem e mulher possam ter a mesma respeitabilidade. A pluralidade, para o fascista, não é uma opção; é uma doença social a ser erradicada, em relação à qual ele propõe um remédio, uma limpeza social.
Quanto à relação com o tempo, o fascismo geralmente implica uma nostalgia (artificial e cultivada a peso de distorção e propaganda) em relação a um passado distante, uma rejeição do passado recente e do presente e uma vontade de restauração do regime anterior no futuro iminente. Nostalgia do passado, ressentimento do presente e esperança depositada no futuro. Alguém corrompeu nosso antigo paraíso que existiu na terra e que, por conseguinte, poderá e voltará a existir depois que os corruptores tiverem sido afastados, perseguidos, expulsos, eliminados. Algo ocorreu que interrompeu a continuidade de nossa felicidade; agora, este algo será desfeito. O passado só é lembrado de modo seletivo, distorcido, idealizado; ele é convenientemente representado como um período isento de problemas e perigos, um para o qual todos “os bons” queremos retornar, sendo “eles, os maus” os únicos empecilhos para isso. “Eles” são tudo que “nos” separa de nossa felicidade perdida. Nesse sentido, repetimos, não pode existir fascismo de esquerda, já que a ideologia de esquerda busca necessariamente que o “nós” seja fragmentado e inclusivo, que ele seja plural e repleto das singularidades(dos que estão em outro lugar). A esquerda não determina, tal como o fascismo, o lugar e os eleitos da sacralização social.
Sem igualdade não há liberdade, apenas resta à opressão.
Em termos de emoções políticas, o regime habitual do fascismo é a transformação de medo e incerteza, em ressentimento e ódio contra um ou mais grupos específicos. Isto converte um quadro complexo de causas e problemas num discurso hiper-simplificado que aponta culpados e convida à reação imediata. Do ponto de vista psico-político, poder-se-ia dizer que o fascismo é apenas uma forma entre muitas, talvez a mais perigosa e destrutiva, de processar grandes doses de incerteza e de medo experimentados coletivamente. Estes estados de espírito passivos e paralisantes são convertidos em estados de espírito ativos e agressivos, especialmente através da expressão do ódio e da violência. É como se os preconceitos e hostilidades já existentes, que eram retidos e escondidos, atuassem agora como canalizadores da incerteza e do medo para certo alvo em particular. E, ao apontar um alvo, o fascismo causa a impressão de que tudo que nos atormenta pode ser resolvido a partir da expulsão ou destruição do inimigo ameaçador. Assim, mesmo que ainda se tenha incerteza sobre a situação, já não se tem a incerteza mais angustiante quanto ao que se sentir incerto. Mesmo que ainda se tenha medo do que é diferente, já não se tem o medo mais angustiante de que se precise temer a tudo indiferentemente.
Esta forma de expressar emoções políticas se fundamentam no desejo exacerbado de distinção, e na eventual frustração deste mesmo desejo. O fascista é antes de tudo alguém que acredita merecer naturalmente muito mais do que a sociedade lhe proporciona. A sua frustração, muitas vezes, se refugia numa religiosidade falsa na qual ele tira a ideia de sua própria pureza face à sujeira do mundo social.
Outro dado importante é a questão desse“nós” particular, esse tipo particular de fascismo à brasileira, segundo o qual nesse “nós”, não cabem os “cotistas”, “os médicos cubanos”, os transexuais”, as feministas e agora os petistas, os “petralhas”. A política democrática, que procuramos aprofundar com experiências como o movimento #OcupaTudo, por exemplo, tem como objetivo lutar por uma vida não fascista. A política democrática é arena de conflito, de divergência e de deliberação. A política democrática é emancipadora enquanto a polícia fascista é opressora, categorizadora, redutora da complexidade de nossas formas de vida.
A política é se olhar nos olhos. É jogar seu corpo, sua mente, na praça pública para que sejam recebidos, modificados, aceitos, discutidos por outras e outros. Por isso precisamos de espaços de diálogo e de convivência, para promover sempre a pluralidade das formas de vida e o respeito das diferenças. Devemos lutar pelo que temos em comum: nossa alegria, nossa diversidade, nossa sociabilidade, nossos espaços públicos. Para aprofundar a democracia e para expulsar o fascismo, devemos Ocupar a República!
Bárbara Dias e Jean-François Delucheysão professores da Universidade Federal do Pará.
[1] FOUCAULT, Michel. O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Cadernos de Subjetividade. V. 1, N. 1 (1993), p.197-200 [citação p. 198].
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