Jornal GGN - A morte do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, evidenciou que o declínio do Brasil enquanto nação, antes na fase da hipocrisia, agora atinge o nível do escárnio. A opinião é de Guilherme Boulos, em sua coluna de hoje (26) na Folha de S. Paulo.
Boulos argumenta que, quando o escárnio se sobrepõe, as preocupações de decoro desaparecerem, e os “cínicos ganham autoconfiança e ousam fazer em público aquilo que todos imaginavam, mas não se via”.
Um dos exemplos é Gilmar Mendes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral que vai julgar Temer, sendo consultado sobre a indicação do novo ministro do Supremo no palácio presidencial.
Da Folha
por Guilherme Boulos
O declínio de uma nação ou de uma cultura nunca se dá de uma só vez. Tem suas fases.
Uma delas é a hipocrisia, quando se naturaliza o "dois pesos, duas medidas". O hipócrita estabelece um critério aos amigos e outro aos inimigos.
Sinal da vitória da hipocrisia por aqui foi a derrubada de um governo com o argumento do uso de procedimentos fiscais corriqueiros em todos os anteriores e então tolerados. Ou a condenação exemplar de membros de um grupo político, associada à tolerância aos membros de outros grupos, que tiveram precisamente as mesmas práticas.
Para uns, a presunção de inocência, para outros, a de culpa. Mas o hipócrita ainda preserva uma preocupação com aparências de legitimidade. Constrói um discurso para camuflá-lo, sua justificativa perante a opinião pública. Seu predomínio, porém, pode dar lugar a uma fase mais perigosa: a do escárnio.
Quando o escárnio toma conta do ambiente cultural desaparecem as mínimas preocupações de decoro com o que se diz e o que se faz. Os cínicos ganham autoconfiança e ousam fazer em público aquilo que todos imaginavam, mas não se via. Falam abertamente sinceridades antes reservadas aos cochichos de corredor. Rompe-se então as regras do jogo social. A fase do escárnio tem um lado positivo: ela é incrivelmente reveladora. Mas, no geral, expressa a mais completa indiferença dos donos do poder em relação ao que vá pensar a sociedade. Às favas com a opinião pública.
Fiquemos apenas com fatos da última semana. Quando o ministro Eliseu Padilha diz, com o cadáver de Teori Zavascki ainda quente, que a morte vai fazer com que "a gente tenha mais tempo"; quando Gilmar Mendes, presidente do Tribunal que julgará Temer, é consultado sobre a indicação de seu novo par e vai a rega-bofes no palácio presidencial; quando, ainda em relação a Teori, operadores do mercado financeiro comemoram sua morte sem maiores pudores; quando fatos assim passam sem ser notados é porque o escárnio estabeleceu-se na vida pública do país.
Na República do escárnio não há limites. Ante a perda de referência crítica e valorativa, tudo torna-se possível e, ademais, muito natural. Dostoiévski escreveu certa vez que, se Deus não existisse, tudo seria permitido. Falava é claro de um padrão de conduta –no caso, estabelecido pela religião– para delimitar o campo das ações humanas. Sem referência valorativa não há limites. Assim funciona o escárnio.
A hipocrisia antecede o escárnio. Este, por sua vez, funciona como antessala da barbárie. Ou da revolta.
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