sábado, 1 de outubro de 2016

Por uma cidade em que todos existam, por Lucas Simões

"Ter casa é o único jeito de começar a existir. Só começar...Quem tem casa, começa a existir. Só começa. Hoje Belo Horizonte tem 148 mil famílias sem casa, gente com fome de comida e de instinto de existência..
A capital da tradicional família mineira vive a maior opressão latifundiária urbana de Minas Gerais. E uma das maiores da América Latina.
Na região da Izidora, o único e maior cinturão-verde restante da cidade, as 30 mil pessoas que ocuparam um terreno abandonado há anos para começar a existir, foram oficialmente informadas que não poderão mais existir..."

Por Lucas Simões
O Tempo
Por uma cidade em que todos existam



O Índio, maluco de BR que conheci na praça 7 em uma noite hostil de Belo Horizonte, dizia que na rua até dá para sobreviver, nem que seja de navalha na mão e sorte no bolso, mas não dá para existir. Ele justificava isso por volta das duas da madrugada, quando armava seus papelões grandes em formato de chalé suíço, simulando um “barracão de um quarto com quintal na calçada suja”, como ele mesmo dizia.

“Ter casa é o único jeito de começar a existir. Só começar”. Era a frase certeira que ele usava quando conseguia simular uma moradia com o papelão – em dias de sorte, claro.

Quem tem casa, começa a existir. Só começa. Por que como arrematou a Eliane Brum na melhor definição da necessidade básica de qualquer pessoa: “Casa é onde não tem fome. Se tem fome, é só o teto”. Ou seja: casa pode ser o começo do fim da fome. Só o começo, veja bem. Mas e quando a gente é impedido até de começar a existir?

Hoje, Belo Horizonte, essa roça bonita que muita gente insiste em transformar em megalópole espelhada no modelo paulistano ou carioca, tem 148 mil famílias sem casa, gente com fome de comida e de instinto de existência. Em uma previsão estarrecedora da Cidade Que Queremos, o movimento ativista mais transparente da capital, os últimos a conquistar uma casa na cidade teriam que aguardar 175 anos na fila para começar a existir. Coisa de três, quatro vidas.

A capital da tradicional família mineira, da Lagoa dos Ingleses de condomínio e wakeboard, da Nova Lima de mansões e cervejas artesanais, da Savassi point-long-neck-blusa-polo e varanda gourmet, vive a maior opressão latifundiária urbana de Minas Gerais. E uma das maiores da América Latina.
Na região da Izidora, o único e maior cinturão-verde restante da cidade, as 30 mil pessoas que ocuparam um terreno abandonado há anos para começar a existir, foram oficialmente informadas que não poderão mais existir.

Ali, onde se formaram as ocupações Rosa Leão, Esperança e Vitória, onde uma comunidade se uniu para erguer um teto e se esconder da fome; onde nasceram projetos autônomos de arquitetura, educação e cultura, onde as construtoras pretendem fundar mais um belo bairro de classe média, a polícia teve autorização para acabar com o projeto de início do fim da fome para 8.000 famílias.

Tudo isso enquanto engenheiros, empresários e políticos tomam banho, jantam e repousam em suas casas depois de traçar planos imobiliários a base de contratos milionários que vão decidir arbitrariamente quem pode existir na cidade. Não sei vocês, mas a cidade que eu desejo, ou melhor, a única cidade que faz sentido é aquela onde todo mundo possa existir – sem exceção. 

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