Muro do impeachment é o Brasil que expõe paradoxos e vísceras
Cerca construída por presidiários ainda será estudada por sua multiplicidade de símbolos; povo revê sua percepção de cordialidade enquanto elite faz as contas
Por Alceu Luís Castilho (@alceucastilho)
Está nos jornais de hoje: presidiários (improvisando para se protegerem do sol) construíram no domingo o que a imprensa chamou de “muro do impeachment“. Uma grande barreira de ferro que separará os manifestantes pró-impeachment (à direita da Esplanada dos Ministérios) e contra o impeachment (à esquerda, olhando de frente para o Congresso). É, desde já, uma das imagens do ano. E uma prova de que o processo em curso ultrapassou os limites da irresponsabilidade, ao pressionar pelo impeachment em um país tenso e dividido.
Lúcio Costa e Oscar Niemeyer já tinham se revirado no túmulo com a invasão da paisagem de Brasília por um pato gigante. Agora, estrebucham. À tentativa de infantilização da política brasileira, pela Fiesp (algo como chamar ecstasy de “bala”, ácido de “doce”, fascistas de coxinhas), se sucede esse símbolo da dissensão – e do risco. Curiosamente, o golpista Movimento Brasil Livre vem desafiando o próprio nome ao ameaçar – com outra leitura da palavra “muro” – os deputados que faltarem à votação:
Ou seja, o lado direito da força não está para brincadeira. Seus protagonistas se consideram os “corajosos”, em contraponto aos “covardes”. Claro que podemos supor que eles estão falando apenas de retaliação eleitoral. Mas os últimos meses no Brasil mostraram uma escalada da intolerância contra aqueles que defendem o governo – ou vestem vermelho, defendem o PT etc. Como imaginar que a divisão da Esplanada em Esplanada da Esquerda e Esplanada da Direita possa inspirar um clima de paz no dia da votação? A quem interessa a pedalada da violência?
O Muro de Brasília é o golpe de misericórdia na ideia de manifestações democráticas, onde haja respeito à posição do outro. Por outro lado, traduz os séculos de divisão real que viveu o Brasil, e remete às favas noções distorcidas de cordialidade (não exatamente algo pacífico, explicava Sérgio Buarque de Holanda) que muita gente se apressou em atribuir aos brasileiros. O Muro de Brasília desafia o pacto de falsa tolerância em que vivemos; agrupa em uma arena única uma disputa que tem sido um massacre – perpetrado pelos poderosos que apoiam a tal Esplanada da Direita.
O Muro de Brasília é a curva do S, em Eldorado dos Carajás, é o massacre de Canudos e a expulsão para a cidade de milhões de camponeses. Representa as favelas e as moradias em área de risco. A morte da juventude negra e o espancamento de moradores de rua e prostitutas. A matança no trânsito e nas periferias. É o Brasil que não deu certo, o Brasil real – o do arame farpado, das cercas, dos presídios como cenários assimilados, dos presidiários que constroem um muro em meio ao horizonte opressor de Brasília. (Pelo menos era assim que Clarice Lispector percebia esse horizonte.)
A MISÉRIA DOS BILHÕES
Aqui no Outras Palavras, três professores da Universidade Federal do ABC (esse ABC que foi protagonista do retorno à democracia) escreveram neste domingo que a precariedade dos argumentos pró impeachment demonstra como está viva a luta de classes. Enfatizam a retirada de 22 milhões pessoas da miséria entre 2011 e 2014, no primeiro governo Dilma. (Os números são contestados por um site de direita; este alega que o governo aumentou de R$ 70 para R$ 77 o limite mínimo da miséria. E que, portanto, menos alguns milhões de pessoas teriam sido retiradas da miséria.)
Penso nesses sete reais enquanto leio a manchete do caderno de economia do Estadão: “Bancos e governo tentam renegociar dívida de R$ 150 bi de grandes grupos”. Melhor repetir: R$ 150 bilhões. Muito longe do Brasil dos R$ 7 ou dos R$ 77. As cifras se referem às 15 maiores empresas do país. Boa parte investigada na própria Lava-Jato. Ou seja, a tal cordialidade opera apenas no andar de cima. Com a participação do próprio governo perseguido, que (como todos os anteriores) age para preservar a saúde dos grandes grupos. Enquanto a Esplanada da Direita reclama do Bolsa Família porque, dizem, “não ensina a pescar”.
Os golpistas graúdos – bem mais endinheirados que a Esplanada da Direita – querem o fim desse governo mesmo que ele os beneficie. E mesmo que ele tenha sido dócil em relação às opressões no campo (contra povos originários e tradicionais) promovidas pelo agronegócio e pelas mineradoras. Ou pelos próprios empreendimentos, como a usina de Belo Monte, que levam a assinatura do próprio governo. É como se o pato do Paulo Skaf quisesse nadar em águas menos revoltas – sem os antigos miseráveis do Bolsa Família atracando pedalinhos em seus mares impolutos.
Vivemos em um país cheio de paradoxos, pouco entendidos pela Esplanada da Direita e minimizados por parte da Esplanada da Esquerda, a parte que defende o governo sem reconhecer sua ambiguidade, a defesa que ele fez dos interesses daqueles que o atacam. Mas o Muro de Brasília reativa a luta de classes à enésima potência. Talvez tornando mais didático o quadro diariamente escondido pela imprensa. O próprio governo percebeu tarde demais que estava alimentando patos insaciáveis – e esses ogros agora cobram dele a conta pelo fato de o butim ser finito.
Como mais um paradoxo, o risco para as elites golpistas embutido no Muro de Brasília é que ele torne evidente (com sua violência intrínseca) a alguns parlamentares indecisos que eles correm o risco de ficar com dois patos voando em vez de um pássaro na mão. Como não se pode prever o que aconteceria após a derrubada de Dilma, e em um governo Temer (igualmente derrubável, como todos a partir desse precedente), pode ser que optem pela continuidade dessa democracia rentável. Sem sobressaltos, a tolerar este ou aquele miserável que ousou nadar ao lado dos bilionários, ainda que no cantinho de uma piscina abjeta.
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