quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Não foi fatalidade

O Tempo
Editorial


Luzia tinha vinte e poucos anos quando morreu pela primeira vez, vítima de acidente ou ataque de animal. Decomposto seu corpo, partes de seu esqueleto sobreviveram por quase 12 mil anos, até seu crânio ser encontrado nos anos 70. Passou um tempo esquecida no Museu Nacional, até que “renasceu” pelas mãos do arqueólogo Walter Neves. Estudada, a pequena mulher revolucionou todas as teorias de povoamento das Américas. Chamada de “a primeira brasileira”, Luzia morreu de novo no domingo. Desta vez, para sempre.

Morreu também para sempre a Cantora do Santuário de Amun, mumificada em seu esquife, que havia sobrevivido à longa viagem, no século XIX, entre o Egito e o gabinete de dom Pedro II, onde era exibida então. As duas estavam entre os 20 milhões de itens do acervo do Museu Nacional, incinerados total ou parcialmente pelo fogo que os bombeiros não tiveram água suficiente para combater.

O Congresso Nacional, formado por deputados federais e senadores, custa ao contribuinte R$ 1,16 milhão por hora, nos 365 dias do ano, segundo cálculo da ONG Contas Abertas. O Judiciário brasileiro custou R$ 84,8 bilhões apenas no ano de 2016, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça divulgados em março deste ano. Os 200 anos do museu e os milhares de anos de história nele abrigados esperavam apenas R$ 550 mil anuais, repassados pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas há anos vinham recebendo só parte da verba. Chegou a anunciar vaquinha virtual para levantar R$ 100 mil. O BNDES, que financia tantos empreendimentos de grandes empresas, iria repassar no mês que vem parcela de crédito ao museu, de R$ 3 milhões, para ser aplicada – ironia suprema – no projeto executivo de combate a incêndio.

A Polícia Federal vai dizer se foi curto-circuito, mau contato, fenômeno natural... Mas as causas do incêndio são o corte de gastos que vitima pesquisa e ciência nas universidades, o descaso com que o patrimônio histórico-cultural é tratado pelo governo e o desprezo de um povo por qualquer memória que vá além do feed das redes sociais. O Brasil terá que prestar contas à humanidade.

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