sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Pedro Casaldáliga: 90 anos, o defensor intransigente dos pobres e da dignidade humana






Pedro Casaldáliga completa 90 anos: bispo, poeta e defensor intransigente dos pobres e da dignidade humana

Unisinos:
Diante das críticas contra Dom Casaldáliga, o Papa Paulo VI exclamou: “Encostar no bispo de São Félix do Araguaia é como encostar no papa”.
Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix, no Brasil, e grande defensor dos pobres, completa 90 anos, hoje. Para a ocasião, foi organizada em Madri, na quinta-feira, 1º de fevereiro, por iniciativa das associações Mensajeros de la Paz e Tierra Sin Males, e do sítio Religión Digital, uma coletiva de imprensa e uma série de atividades culturais para prestar homenagem à figura de Dom Casaldáliga.
Nascido na Catalunha no dia 16 de fevereiro de 1928, durante 38 anos, viveu e trabalhou no Brasil, primeiro como missionário da Congregação dos Missionários Filhos do Coração Imaculado de Maria, ou Congregação Claretiana, depois como prelado de São Félix a partir 1971, ordenado bispo em outubro do mesmo ano por Paulo VI.
Obstinado e corajoso, coerente e firme nas suas convicções, simples e aberto, Dom Pedro trabalhou em um dos lugares mais infelizes e pobres do mundo, o Mato Grosso. Da prelazia de São Félix, da qual foi primeiro bispo e fundador, Dom Casaldáliga tornou-se o porta-voz para dar a conhecer ao Brasil e ao mundo inteiro as condições de vida de agricultores e índios.
A partir desse canto perdido do mundo, injustiças foram denunciadas, sacudindo consciências e instituições, atraindo o interesse de muitas pessoas, contribuindo para o desenvolvimento social do país, constituindo um ponto firme para a retomada da democracia após o período sombrio da ditadura militar.
Por causa do seu compromisso religioso, social e político, ele foi hostilizado dentro e fora da Igreja. Em alguns ambientes, era considerado como um bispo “subversivo e extremista”, “impertinente e incômodo”, cujo magistério “era perigoso por estar embebido demais na teologia da libertação”.
A vocação evangélica de Dom Casaldáliga foi totalmente voltada aos últimos e aos esquecidos.
É importante lembrar que o próprio Papa Paulo VI, para conter os ataques políticos (a ditadura militar tentou várias vezes expulsar Dom Casaldáliga do país) e eclesiásticos contra o bispo de São Félix, o defendeu abertamente com as seguintes palavras: “Encostar no bispo de São Félix do Araguaia é como encostar no papa”. Um fato que fala muito sobre as divisões dentro da própria Igreja acerca da obra daqueles padres que lutavam e ainda lutam para melhorar as condições dos pobres na África ou na América do Sul, e que algumas hierarquias eclesiásticas, apressadamente demais, indicam como “subversivas” ou “heréticas”.
A partir de 2 de fevereiro de 2005, quando São João Paulo II aceitou sua renúncia, Dom Pedro não é mais bispo de São Félix, mas ficou vivendo no Brasil, na sua cidade, no seu bairro e entre seu povo, com humildade e modéstia.

Araguaia Notícia
Maria Clara Lucchetti Bingemer / Jornal do Brasil
Ele lutou pelos pobres e oprimidos e se tornou uma lenda viva em Mato Grosso










A Igreja do Brasil e de vários pontos do mundo volta seu olhar ao longo desta semana para um ponto perdido do estado do Mato Grosso à beira do rio Araguaia.  Ali está a prelazia de São Felix do Araguaia, onde vive o poeta e profeta Pedro Casaldáliga, que completa noventa anos de idade neste dia 16 de fevereiro.

Eu o conheci primeiramente pela escuta dos que sobre ele testemunhavam.  Tocados por sua poesia, inspirados por sua profecia, referiam-se a ele de tal maneira que desejei conhecer pessoalmente seus textos.  Seu livro autobiográfico “Yo creo en la justicia y en la esperanza”, com a introdução intitulada “La vida que ha dado sentido a mi credo”, tocou-me sobremaneira. Ali eu encontrava e apalpava a mística que dava sustentação à teologia que pretendia fazer.  Cheia de jovens e imoderados desejos, os textos de Pedro me revelavam a seriedade de um compromisso que tomava por inteiro uma vida: a dele.

Alguns anos depois, quando já me encontrava na pós-graduação em teologia da PUC-Rio, pude ouvi-lo falar.  Assim também em Itaici, por ocasião de um congresso organizado pelos padres passionistas.  A primeira impressão ao ver aquela figura magrinha e aparentemente frágil foi transformada pela primeira palavra que saiu de sua língua de fogo.  Falando de justiça e de esperança, fazia todos estremecerem pela força de suas palavras. Agigantava-se e alcançava dimensões impensáveis com sua fé e profecia.

Em minhas aulas de teologia usei vários de seus poemas que inspiravam os alunos e os conduziam à reflexão sobre a Revelação e a Palavra de Deus. Pois, com toda o fogo de seu testemunho e sua profecia, Pedro é também poeta. Dedica poemas ao rio.  Sua sensibilidade é capaz de extasiar-se com a beleza do Araguaia “que pulsa sob seus pés como uma artéria viva”, com a mata verdejante e expressa seu louvor em versos ao Criador de toda essa maravilha. E seus versos andam “cheios de Deus como pulmões cheios do ar vivo”.

Como profeta, sua língua de fogo não hesitou em proclamar ao longo desses muitos anos os direitos dos pobres como direitos de Deus.  E ao tomar progressiva consciência da dura servidão à qual não poucos proprietários de terras reduziam aqueles que desejavam apenas uma terra para cultivar e plantar, não poupava denúncias e críticas.  Tudo isso lhe valeu perseguições e ameaças as mais diversas e violentas. Mas jamais deixou de explicitar o que o impulsionava ao viver sua vocação profética, admitindo não saber “se seria capaz desses caminhos se não estivesse Deus como uma aurora rompendo sua névoa e seu cansaço”.

A união com Deus é o que configura a vida de Pedro, o místico. Trata-se de alguém que experimenta a comunhão íntima e ardente com o Mistério que é o Sentido de sua vida.   Em suas andanças pelo Mato Grosso, pelo Brasil, pela América Latina, sobretudo na explosiva região da América Central, sempre contemplou Deus presente no rosto dos pobres.  E, no entanto, humildemente, sempre confessou não saber se poderia conviver com essas vítimas da injustiça “se não tropeçasse com Deus em seus farrapos; se não estivesse Deus como uma brasa queimando seu egoísmo lentamente”.

Esse extraordinário profeta, poeta e místico elabora com sua vida e suas palavras uma profunda teologia.  Embora sempre haja sido missionário e não docente ou pesquisador da ciência sacra, seus escritos, seus poemas, mas sobretudo sua vida e sua prática são uma teologia consistente e em constante movimento. Ele a tem pensado e feito ao lado dos pobres, cada dia partilhando sua “noite escura” que só a esperança ilumina.  Por isso proclama que apenas vivendo a noite escura dos pobres se pode viver o Dia de Deus, “pois as estrelas só se veem de noite”. Sua teologia afirma que que tudo é relativo, menos Deus e a fome. Olhando para esses dois absolutos tem caminhado com coragem e firmeza.

Como se pode ver, Pedro – esse jovem de noventa anos vergado pelo mal de Parkinson -  é uma testemunha.  Sua vida atesta a verdade maior do mistério da encarnação, vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a Testemunha Fiel por excelência. Em sua fragilidade carrega e comunica a vocação e a missão do Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.  E procura fazer verdade a construção de seu Reino, projeto do Deus da vida para todos. Com isso dá sentido a muitas vidas e faz muitos descobrirem o sentido de suas existências.

Fiel ao Evangelho, boa notícia que um dia o fez deixar a Catalunha e estabelecer-se para sempre ao sul do mundo, onde o conforto é escasso e a injustiça abundante, Pedro celebra seus noventa anos fiel ao lema que escolheu quando ordenado bispo: Nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar.

Reverente e amante da vida prepara-se para este aniversário que mobiliza tantos com simplicidade e alegria.  O aniversário é dele, mas o presente é nosso.  Presente que é ele mesmo, com esta vida dada em serviço, inspiração e fidelidade.  Feliz Aniversário, querido irmão, amado mestre, grande pastor.  Que sua vida continue dando sentido à nossa e, mais ainda, continue ensinando a nós todos o caminho da vida em plenitude.

* professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. A teóloga é autora de “Teologia latino-americana – Raízes e ramos” (Editoras Vozes e PUC-Rio).

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