quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Uma foto e um quadro-resumo de 16 pontos: os dois projetos em luta na Igreja

Caminho para Casa:
Mauro Lopes



O “príncipe” Raymond Burke e o bispo do povo José Maria Pires, o dom Zumbi

A Igreja Católica vive hoje a disputa aberta entre dois projetos: um deles, liderado pelo Papa Francisco, pretende aprofundar o caminho aberto pelo Concílio Vaticano II (1962-1965); o segundo, liderado por um grupo de cardeais e bispos conservadores e por larga fatia da Cúria romana, pretende ver restaurado o espírito do Concílio de Trento (1545-1563).
Os dois projetos estão simbolizados pela foto acima, que reúne duas imagens: as do cardeal Raymond Burke, um dos líderes da oposição ao Papa Francisco e de dom José Maria Pires, o dom Zumbi, que participou do Vaticano II. A imagem de dom Francisco é recente; a de dom Zumbi é dos anos 1970, quando era o arcebispo da Paraíba –ele morreu no último 27 de agosto, aos 98 anos.
Há um julgamento consensual entre os teólogos e a hierarquia sobre a relevância do Concílio de Trento, que viu-se obrigado a dar conta das novas realidades surgidas à época: o fim da Idade Média, a Reforma e o nascimento da Modernidade hostil à religião. A questão não é o julgamento histórico daquele concílio, mas o desejo dos segmentos conservadores da hierarquia e do laicato de restaurar seu espírito, transplantando para o século 21 a doutrina e o modo de ser e fazer Igreja de meio milênio atrás.
O julgamento sobre o Vaticano II não tem nada de consensual. Os segmentos progressistas, que apoiam o Papa Francisco, consideram-no com o evento que marcou a retomada do diálogo da Igreja com o tempo, a Modernidade e a pós-Modernidade. Os conservadores atacam-no duramente, de maneira velada (a maioria) ou aberta (caso de líderes como o cardeal Robert Sarah, atual prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos do Vaticano): consideram o concílio liderado por João XXIII a “porta aberta” na Igreja para a licenciosidade, a anarquia, a “subversão”.
O centro de aglutinação e liderança conservadora na Igreja esteve (e ainda está) solidamente ancorado na Cúria romana. Não é à toa que o aspecto central do governo de Francisco no que toca à estrutura eclesial é a reforma radical da Cúria e o esvaziamento de seu poder, com a valorização das conferências eclesiais nacionais, conforme o projeto do Vaticano II e que foi abortado por João Paulo II e Bento XVI.
Leia o quadro-resumo abaixo e saiba quais são os 16 pontos que separam os restauradores tridentino dos reformadores  do Vaticano II.
O PROJETO DE RESTAURAR O ESPÍRITO DE TRENTO
O PROJETO DE APROFUNDAR O CAMINHO DO VATICANO II
A igreja é uma sociedade perfeitaA Igreja é uma comunidade com falhas
A igreja é o cleroA Igreja é Povo de Deus
Jesus é um rei, acima de todos,  imperialJesus desceu para ser um com seu povo
A Igreja é uma monarquia, de estrutura hierárquica, verticalizadaA Igreja é uma comunidade de irmãos e irmãs, em conformação circular
O Papa é a encarnação de Cristo e, por sucessão, os bispos e todo o clero. Na missa, os sacerdotes são “persona Christi”, pessoa de CristoO Papa e todo o clero devem ser servidores pobres do povo pobre, de uma Igreja pobre. A missa é a celebração do encontro de Cristo com seu povo
Os fiéis devem obedecer ao clero sem questionamentosO clero deve servir o povo e com ele aprender
Só dentro da Igreja Católica as pessoas podem “salvar-se”Jesus Cristo encarnou para salvar todas as pessoas e não um grupo “eleito”
Combate ao ecumenismo e ao diálogo com outras religiõesPrioridade ao ecumenismo e ao diálogo inter-religioso
O centro da doutrina é marcado pelo pecado e a ameaça do infernoO amor e o perdão ocupam o centro da doutrina do Vaticano II
No imaginário tridentino há uma oposição quase absoluta entre as “coisas celestes” e as “coisas terrestres”, entre corpo e alma. As “coisas do corpo”, como o sexo, são objeto de repressão e vergonhaNo imaginário do Vaticano II deixa de existir a dicotomia entre corpo e alma, e todas as “coisas terrestres” estão permeadas pelas “celestes”. O sexo passa a ser visto como celebração da vida
A relação com os que divergem é de perseguição, censura, exclusão e excomunhãoA relação com os que divergem é de convivência, mesmo que marcada por tensões
Defesa do “direito à riqueza” e relação com os pobres distante e assistencialista. Prioridade aos ricos e “doadores”A Igreja deve fazer uma opção preferencial pelos pobres e entendê-los como protagonistas centrais da história
Sob a tese de que “Cristo merece tudo” e que “nada é suficiente para louvar Cristo”, os altares enchem-se de ouro e o clero, “encarnação de Cristo”, enriquece. Os anéis dos bispos e cardeais são joias de alto valorA Igreja deve ser pobre, o altar da celebração eucarística deve ser simples, e o clero deve viver em condições materiais idênticas à das comunidades que servem. Abandono às roupas suntuosas e anéis de alto valor
A relação com a sociedade é marcada por uma agenda moral conservadora com o objetivo de controlar o corpo das pessoas e a oposição à ampliação dos direitos sociais, a qualquer possibilidade de ameaça ao capitalismo e aos movimentos sociais  A relação com a sociedade é marcada por uma agenda social voltada aos mais pobres, por uma visão de liberdade e responsabilidade, pela “cultura do encontro”, pela crítica ao capitalismo e pelo apoio e inserção nos movimentos sociais   
Pretendem  a reversão da reforma litúrgica do Vaticano II,  e o retorno da missa tridentina, em latim e com o padre de costas para a assembleia. Rejeitam totalmente a ideia de inculturação da liturgiaDefendem o aprofundamento da reforma litúrgica do Vaticano II, com a retomada das iniciativas de criatividade e inculturação totalmente bloqueadas durante os papados conservadores.
Tem como referência os papas Pio X, João Paulo II e Bento XVITem como referência os papas João XXIII e Francisco

[Mauro Lopes]

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