segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Grande sertão: veredas- Um jovem sexagenário, por Walnice N. Galvão

Carta Educação:



Grande sertão: veredas – Um jovem sexagenário

Os 60 anos do livro de Guimarães Rosa vêm a propósito para apreciarmos seu trunfo máximo: o foco narrativo, manipulado pelo narrador Riobaldo e que servirá para analisar o romance




Guimarães Rosa internou-se pelas terras mineiras, interrogando as pessoas, registrando as histórias que ouvia e as peculiaridades da linguagem
Os 60 anos de Grande sertão: veredas vêm a propósito para apreciarmos seu trunfo máximo: o foco narrativo. Manipulado por Riobaldo, narrador protagonista, esse elemento estrutural servirá para analisar o romance e expandir nossa compreensão de seus muitos desdobramentos.
O Riobaldo que se antepõe ao interlocutor que veio de longe para conhecê-lo, é um homem idoso, deitado em rede na varanda da sede de sua fazenda, procedendo às honras da casa. A face final do protagonista já velho é essa, de homem apaziguado e assentado na vida, dono de terras com muitos agregados e dependentes.

Nesse romance tudo decorre da escolha do foco narrativo, que acaba sendo seu alicerce e seu fundamento. Quem conta a história que lemos? É Riobaldo, que fala em primeira pessoa. E de quem é a história que ele conta? É a dele mesmo. Portanto, Riobaldo se apodera de dois pontos de vista: o do narrador e o do protagonista. Dessa alternância resulta todo o volumoso romance.
Mais um elemento complicador vem se juntar logo de saída a essa dupla perspectiva: o interlocutor, a quem o narrador dá o tratamento cerimonioso de “o senhor”. Todo o romance assumirá a forma de um relato autobiográfico feito a uma pessoa, invisível e calada, que é quem provoca a narração. Anônima, essa pessoa veio de fora do sertão, procurando por Riobaldo e dispondo-se a extrair dele a história de sua vida. O depoimento que então se desenrola subentende um diálogo que é apenas pressuposto e contido dentro do monólogo – iniciado e nunca fechado pelo primeiro sinal gráfico do texto, um travessão, índice de fala.
Como não podia deixar de ser, as diferenças culturais entre ambos são numerosas: um deles é sertanejo tosco, o outro, cidadão cultivado. E é de assinalar, portanto, a semelhança do interlocutor com o antropólogo ou o psicanalista.
Essa equação nos habilita, em primeiro lugar, a entender a intriga bastante emaranhada. Em segundo lugar, a travar conhecimento com os demais personagens, aos quais a voz de Riobaldo dá vida. Em terceiro lugar, a compreender quem ele próprio é. Com Riobaldo estabelecemos, enquanto leitores – mesmo cientes de que se trata de um romance, portanto de uma história inventada – um pacto sob palavraIsso posto, podemos começar a leitura.
Riobaldo não é um narrador direto ou fluente: demora muito a entabular sua história, é manhoso, tenta driblar o interlocutor. Boa parte do livro decorre antes que se resolva a abrir o jogo. Mas, enquanto isso, ele vai expondo ao leitor sua personalidade atual, a que assume depois de velho, quando se retira de tarefas anteriores, quando foi jagunço e chefe de jagunços. O romance começa pelo fim, quando todo o enredo já se passou e Riobaldo vive de reminiscências.
Chegou à fazenda, vindo da cidade, um personagem a que estamos chamando de interlocutor, pois ele não tem nome, procurando por um antigo chefe de jagunços de quem ouvira falar. Quer entrevistá-lo, indagando sobre seu passado, suas batalhas, das peripécias em que tomara parte, de onde viera, quem tinham sido seus pais, quais seus amores; enfim, como vivera sua vida. O interlocutor é então quem instiga a narração, e ela se faz em sua intenção, em resposta às múltiplas inquirições que vai formulando, para precisar melhor certos passos ainda vagos do enredo.


Parque Nacional Grande Sertão Veredas, na divisa entre Minas Gerais e Bahia

Desse modo, poderíamos dizer que, embora demore a se configurar, o interlocutor poderia ser compreendido como a primeira personagem a ser delineada por Riobaldo. Quem é ele? Não é um sertanejo como Riobaldo, fica logo claro. Chegou de longe, da cidade, conduzido por um jipe. Veio para conhecê-lo e para estimulá-lo a falar de suas experiências. Usa óculos, tem título de doutor e toma notas em uma caderneta, incessantemente.
Como é que ficamos sabendo de tudo isso? Pela voz de Riobaldo, que dirige ao interlocutor comentários sobre uso de óculos, título de doutor, anotações feitas na caderneta. Sendo o romance constituído por uma fala só, emitida por Riobaldo, o conjunto dos acontecimentos é decretado por essa fala.
Tudo indica que João Guimarães Rosa tenha contrabandeado um simulacro seu para dentro do livro. E isso porque muitas vezes se colocou na posição de ouvinte de um narrador sertanejo, cujo relato instigou. Apesar de oriundo de uma vila no sertão, o escritor partiria para a cidade, primeiro para São João del Rei e em seguida para Belo Horizonte, em função de seus estudos secundários e depois superiores, em medicina. E mais tarde, ao ingressar na carreira diplomática, passaria a residir no exterior, antes de morar no Rio de Janeiro, onde passaria a última fase de sua vida.
Atinando a certa altura com o opulento veio entre o histórico e o fabuloso que seria a fonte de sua obra – as sagas do sertão –, para ali voltou inúmeras vezes, tangendo boiadas, internando-se pelas terras mineiras, interrogando as pessoas, registrando as histórias que ouvia e as peculiaridades da linguagem. Suas cadernetas de anotações, hoje depositadas no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo, tornaram-se um tesouro. Uma das fotos mais divulgadas mostra-o em uma dessas excursões, a cavalo, com a indefectível caderneta pendurada por um barbante ao pescoço. Ademais, sim, usava óculos e era médico.
Mas o interlocutor lança mão de outros saberes para ajudar Riobaldo à medida que ambos, conjuntamente, vão concretizando um texto biográfico, que cada um dos dois seria incapaz de levar a cabo separadamente. É do atrito dos dois personagens, tal como aparece unilateralmente na fala ininterrupta de Riobaldo, que toda a narrativa se institui enquanto texto.
A fala do protagonista, como se viu, inicialmente é relutante, dada à desconversa. Apenas a persistência do interlocutor vai forçando as comportas de tanta história sonegada, decorrente de um emaranhado de motivos que vão desde a perplexidade até vestígios de culpa difusa: incluindo o luto por Diadorim, de cuja morte Riobaldo se viu cúmplice, e o remorso pelo pacto com o diabo.
Ao fim e ao cabo, ainda bem que ambos se entregaram à ficção dessa empreitada, que só nos beneficia com as belezas de um dos mais extraordinários romances da língua portuguesa.
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Saiba mais:
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2010.
Espaços e caminhos de João Guimarães Rosa, de Ligia Chiappini Moraes Leite e Marcel Vejmelka.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
O foco narrativo, de Lígia Chiappini Moraes Leite. São Paulo: Ática, 1985.
O léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna MartinsSão Paulo: Edusp, 2001.
Mínima mímica – Ensaios sobre Guimarães Rosa, de Walnice Nogueira GalvãoSão Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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*Walnice Nogueira Galvão é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP, que tem 26 livros sobre Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, crítica literária e cultural

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