segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Samarco, Guararapes, atos e omissões


Coluna doEduardo Costa



Os doutos defensores que me perdoem, mas, do alto da insignificância de meus conhecimentos jurídicos, não imaginava outro resultado do inquérito policialsobre o rompimento da barragem da Samarco que não fosse o indiciamento dos responsáveis. E espero que o Ministério Público não repita o episódio da queda do Viaduto Batalha dos Guararapes quando, após o delegado sugerir indiciamento por homicídio, o promotor desclassificou para crime de desabamento.
Não conheço qualquer dos envolvidos, peço a Deus que dê forças aos familiares para que enfrentem as dores já sofridas e as que ainda virão porque processos dessa natureza são duradouros, mas, em nome das vítimas é que clamo por cadeia, não apenas para reparação de danos, mas, sobretudo, como exemplo de que a vida humana deve merecer mais cuidado. Meus amigos, não estamos falando de uma microempresa do Simples cujo proprietário tomou umas cachaças e deixou de lavar o terno em tempo hábil para o cliente ir ao casamento. Aquela barragem de Fundão, com todas as irregularidades apontadas pelas polícias Civil e Federal, é de responsabilidade de uma empresa que fatura bilhões por ano e figurava sempre em listas de companhias modelo nos salários e na assistência a seus colaboradores. Ela é controlada pelas duas gigantes mundiais da mineração. Não se admite tanto amadorismo, o que nos remete imediatamente à conclusão já atestada por peritos: houve erros de ação e de omissão.
Voltemos ao viaduto que desabou em plena Avenida Pedro I. Ele era construído pela mais festejada empreiteira de obras do tipo em Minas. Só na mesma avenida, na mesma época, vários outros foram erguidos também pela Cowan e, incrível, também apresentaram problemas. Na obra de arte que esfarelou foram apontados absurdos, como trabalhos iniciados antes da conclusão dos cálculos, concreto vencido, falta de profissional especializado acompanhando, retirada de escoramento precipitadamente, ora, precisa mais o quê para configurar, no mínimo, o chamado dolo eventual, aquele em que a pessoa não trabalha para o pior acontecer, porém, contribui para tal?
Nos casos de Samarco e Cowan, Mariana e Pedro I, e tantos outros fica evidente a razão para muitos humildes acreditarem que poderosos não se lixam para o que acontece com os pobres. Ainda que morram. Paga-se uma indenização – a menor possível –, convence um político incompetente ou corrupto de que os negócios não podem parar e vida que segue. Eu queria fazer algumas perguntas: como estão as viúvas dos 17 mortos? Quais autoridades visitaram as famílias dos dois desaparecidos que, provavelmente, ficarão para sempre debaixo da lama, sem sequer um enterro com a despedida que nossa tradição religiosa exige? Qual dos deputados da tal comissão criada para “investigar” a tragédia procurou um dos idosos de Bento Rodrigues para assuntar a alma dele ou dela e sentir o tamanho da perda incomensurável, aquela ausência dos vizinhos, do terreiro, dos documentos, da casa, do vira-latas, do passarinho de estimação? E os agentes públicos que não fiscalizaram? Não vamos incluí-los nos inquéritos? A gente peca – e comete crimes – por atos e omissões..


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Tirar a Petrobrás do pré-sal compromete o desenvolvimento do Brasil

Carta Capital

Tirar a Petrobras do pré-sal é rifar o futuro do País

Projeto aprovado pelo Senado comprometerá investimentos cruciais em saúde e educação

Lindbergh Farias


Petrobras
Plataforma de exploração da Petrobras: a estatal é parte fundamental da economia nacional


O Senado pode se enganar, mas o povo brasileiro não pode ser enganado. O que aconteceu na noite de quarta-feira 24 foi lamentável. O projeto do senador José Serra (PSDB-SP) pretendia retirar da Petrobras a condição de operadora única do pré-sal. O “substitutivo” do senador Romero Jucá (PMDB-RR), aprovado pelo Senado, fez exatamente isso: retirou da Petrobras a sua condição de operadora única. Assim, o “substitutivo” substituiu seis por meia dúzia.
Além de substituir seis por meia dúzia, o texto aprovado foi adornado com algumas miçangas retóricas para edulcorar o presente de grego, que falam da “preferência” que será oferecida obrigatoriamente à Petrobras. Ora, tal preferência dependerá, pelo próprio texto aprovado, das autoridades de plantão. Se elas forem favoráveis, a Petrobras poderá operar o pré-sal. Se elas não forem favoráveis, a Petrobras será excluída.
Se o objetivo era acelerar os investimentos no pré-sal, bastava flexibilizar o percentual de participação mínima da Petrobras (30%), como defendeu a emenda apresentada pelo senador Fernando Bezerra Coelho (PSB-PE).
Aparentemente, isso não bastava. O fato é que a garantia legal esfumou-se. Era isso que se queria. Esse objetivo maior foi alcançado.
E isso é trágico. Ter a nossa empresa estatal, um orgulho nacional, como operadora única do pré-sal não é apenas importante para a Petrobras. É fundamental para o Brasil.
O domínio estratégico que os países produtores e exportadores exercem sobre o petróleo se assenta, além da nacionalização das jazidas, em dois grandes pilares complementares: o regime de partilha e grandes operadoras nacionais.
No regime de concessão, que impera ainda no pós-sal, o petróleo deixa de ser propriedade do país, assim que ele entra na broca da empresa concessionária, que faz com ele o que quiser. No regime de partilha, o país mantém a propriedade do óleo, mesmo depois de ele ser extraído.
Assim, é o Estado quem decide o que será feito e em quais proporções. O Estado dita o ritmo da produção e decide que quantidade estocar, exportar, refinar no país e irrigar uma vasta cadeia produtiva. A empresa é simplesmente remunerada pelos serviços prestados.
Isso é fácil de entender. O que aparentemente não é muito fácil de entender é que esse domínio estratégico do petróleo não funciona, ou não funciona bem, sem uma grande operadora nacional.
Quando os países produtores decidiram nacionalizar as suas jazidas, revolucionando o mercado mundial de petróleo, que antes era inteiramente dominado pelas multinacionais dos países desenvolvidos, eles se preocuparam também em constituir grandes operadoras nacionais. Por quê?
Porque eles sabiam que, sem uma grande operadora, eles não teriam efetivo acesso às informações cruciais sobre as suas jazidas, como as relacionadas aos custos efetivos de produção, às remunerações devidas, ao verdadeiro potencial das áreas prospectadas. Ora, não se tem domínio estratégico do petróleo sem o domínio dessa informação.
Ademais, sem operar é impossível desenvolver tecnologia própria. Também não se tem domínio estratégico do petróleo sem domínio mínimo de tecnologia.  Não bastasse, sem operadora local é impossível se estimular cadeias nacionais de produção, gerando renda e emprego para população.
O resultado é que, hoje, ao contrário do que acontecia até a década de 60, as maiores empresas de petróleo e gás do mundo são estatais. São as chamadas national oil companies (NOCs). Entre elas, estão a Saudi Aramco (Arábia Saudita), a NIOC (Irã), a KPC (Kuwait), a ADNOC (Abu Dhabi), a Gazprom (Rússia), a CNPC (China), a PDVSA (Venezuela), a Statoil (Noruega), a Petronas (Malásia), a NNPC (Nigéria), a Sonangol (Angola), a Pemex (México) e a Petrobras.
Em uma estimativa bem conservadora, feita em 2008, antes de o pré-sal ser bem conhecido, as NOCs já dominavam 73% das reservas provadas de petróleo do mundo e respondiam por 61% da produção de óleo. Segundo a Agência Internacional de Energia, a tendência é a de que as NOCs sejam responsáveis por 80% da produção adicional de petróleo e gás até 2030, pois elas dominam as reservas.
Essa é a realidade do mercado mundial do petróleo. Realidade que a maioria dos senadores desconheceu na votação. Tal maioria de senadores parece ter desconhecido também princípios de lógica e aritmética básica. Os argumentos utilizados foram inacreditáveis.
Argumentaram, por exemplo, que a Petrobras não pode explorar o pré-sal a contento porque está endividada. Ora, todas as empresas de petróleo e gás estão atualmente, em maior ou menor grau, endividadas e passando por crises. A dívida da Petrobras foi ocasionada pelos investimentos que ela teve de fazer no pré-sal e por fatores cambiais amplamente conhecidos. Não tem nada a ver com corrupção, que deve ser um assunto a ser tratado em delegacias de polícia, não nas estratégias econômicas do País.
A dívida é de fato volumosa, mas isso não impede a Petrobras de ser a operadora única do pré-sal. Além de ser uma empresa operacionalmente muito eficiente e lucrativa, por ter excelência reconhecida internacionalmente no desenvolvimento de tecnologia, a Petrobras tem um lastro patrimonial que a protege: o pré-sal.
Segundo as últimas estimativas feitas pelo Instituto Nacional de Óleo e Gás da UERJ, o pré-sal contém 176 bilhões de barris, óleo suficiente para cobrir, sozinho, cinco anos de consumo mundial de hidrocarbonetos. Mesmo com o barril com preço artificialmente baixo de 30 dólares, basta fazer uma continha simples para ver que a atual dívida da Petrobras não é problema incontornável, como afirmam os desinformados.
A dívida poderá ser incontornável, contudo, se a legislação for efetivamente modificada. A lei atual, que se quer revisar, assegura à nossa operadora, além da remuneração imediata de todos os seus custos e investimentos, participação mínima obrigatória de 30% nessa riqueza extraordinária. Essa é uma garantia essencial para a Petrobras.
Porém, ao se retirar da Petrobras a condição de operadora única, se retira também essa garantia fundamental e se investe em sua fragilização e em sua possível privatização.
Mas a questão essencial aqui não é simplesmente proteger a Petrobras. É proteger os interesses do Brasil. A participação da Petrobras no pré-sal deve ser assegurada e protegida porque isso é crucial para o desenvolvimento brasileiro.
cadeia de petróleo e gás, comandada pela Petrobras, é a maior cadeia produtiva do País, responsável por cerca de 20% do PIB brasileiro e 15% dos empregos gerados.
Tal cadeia é sustentada por uma política de conteúdo nacional, implantada no primeiro governo Lula, que gera demanda robusta em setores-chave como o da construção civil pesada e a indústria naval, só para citar alguns poucos. Em 2000, a indústria náutica e os estaleiros empregavam no Brasil somente 1.910 pessoas. Em 2014, mesmo com a crise, esse setor já empregava mais de 82.000 pessoas.
Pois bem, tal cadeia produtiva não se sustentará e não se desenvolverá sem a Petrobras como operadora do pré-sal. Por quê?
Porque empresas multinacionais demandam insumos e serviços fundamentalmente em seus países de origem. A Chevron ou a Shell não comprarão navios, plataformas, sondas, ou qualquer outra coisa no Brasil.
Sem a Petrobras como grande operadora não se sustentará também o desenvolvimento de tecnologia nacional nessa área estratégica. A tecnologia se desenvolve na operação e para a operação. Foi operando que a Petrobras se transformou na empresa que detém a mais avançada tecnologia de prospecção e exploração de petróleo em águas profundas e ultraprofundas, ganhadora, por três vezes, do OTC Distinguished Achievement Award, maior prêmio internacional concedido às empresas de petróleo que se distinguem em desenvolvimento tecnológico. Todo esse capital estratégico poderá se esfumar, caso a Petrobras seja retirada do pré-sal.
Sem a Petrobras como grande operadora, não se sustentará a alavancagem de nosso desenvolvimento com a riqueza desse recurso extraordinário que é o pré-sal. Poderemos até vender mais rapidamente petróleo cru. Mas isso não contribuirá para o nosso desenvolvimento.
Ao contrário, essa lógica imediatista e predatória poderá nos conduzir à temível doença holandesa, caracterizada pelo consumo perdulário de bens de consumo importados e pela apreciação artificial da moeda que extermina a produção local.
Sem a Petrobras como grande operadora, o financiamento da Educação e da Saúde com os royalties do petróleo fica também parcialmente comprometido. Em suma, sem a Petrobras como grande operadora, nosso futuro fica comprometido.
Ainda há tempo de se corrigir esse erro, na Câmara, nas ruas e no debate público. Mas é preciso se apressar: o futuro do Brasil está se decidindo agora, em projetos como esse.
A restauração neoliberal já está em curso. Precisamos, todos nós, escolher nosso lado. E o povo brasileiro precisa saber o que estão decidindo em seu nome. O povo brasileiro precisa saber que estão rifando seu futuro.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Índios e campesinos são as principais vítimas de violações de direitos no Brasil

Do blog do Robson Sávio Reis Souza

A violência no campo foi um dos pontos negativos registrados no Brasil pelo relatório anual da Anistia Internacional


(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil )


Por Flávia Villela, Da Agência Brasil
Indígenas e defensores de direitos humanos nas regiões rurais foram os grupos que mais sofreram violações de direitos humanos no Brasil em 2015, segundo o diretor executivo da Anistia Internacional, Atila Roque. A entidade divulgou hoje (23) seu relatório O Estado dos Direitos Humanos no Mundo – 2015.
 
 

“Eles são extremamente invisibilizados neste país. Vivemos uma situação de enorme conflito no campo brasileiro, de grande patamar de violência, inclusive letal, contra defensores de direitos humanos, lideranças indígenas, camponeses, quilombolas, que confrontam interesses de toda ordem, desde grandes proprietários a grandes empresas mineradoras ou do agronegócio, que acabam fazendo uso da violência para impor seus interesses e isso passa praticamente desapercebido pelasociedade”.

A violência no campo foi um dos pontos negativos registrados no Brasil pelo relatório anual da organização.
De acordo com a Anistia Internacional, as populações indígenas continuaram na longa espera por demarcação de suas terras indígenas no ano passado, “apesar de o governo federal contar com a autoridade legal e os meios financeiros para pôr em prática o processo”, aponta o documento.
Os ataques contra indígenas também persistiram impunemente em 2015, segundo o relatório. Um dos casos relatados no documento foi o ataque à comunidade Ñanderú Marangatú, no município de Antonio João, no Mato Grosso do Sul, no dia 29 de agosto do ano passado. Fazendeiros atacaram a comunidade, mataram um homem e deixaram mulheres e crianças feridas. Nenhuma investigação foi aberta sobre o ataque nem foram tomadas quaisquer medidas para proteger a comunidade contra novos atos de violência, de acordo com o relatório. 
PEC 215
Segundo o diretor executivo da Anistia, a piora da situação dos direitos humanos no campo está associada a retrocessos na esfera legislativa. “Como vemos, por exemplo, a PEC 215 [proposta de emenda à Constituição], que altera completamente a demarcação de terras, com grande perda para as populações indígenas e quilombolas e tradicionais”.
A PEC transfere do Executivo para o Congresso Nacional a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Além disso, a proposta proíbe a ampliação de áreas já demarcadas, entre outros.
LEIA O RELATÓRIO COMPLETO DA ANISTIA INTERNACIONAL, CLICANDO AQUI

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

A necessidade de aproximar a economia da análise social e condenar o mito recorrente de que os mercados se autorregulam



Em busca de uma sociedade justa

Marcus Eduardo de Oliveira
Desde os tempos iniciais da Filosofia Clássica é recorrente a ideia de se construir uma sociedade mais justa e menos desigual.

Platão (428–347 a.C.) contextualizou isso em A República(Politéia), idealizando uma cidade onde seus habitantes gozassem de plena e pura racionalidade. O egoísmo não existiria, as paixões seriam controladas, os interesses pessoais dariam lugar aos interesses coletivos; o Bem comum, o Belo e o Justo imperariam como princípios básicos, universais e pétreos.

Tommaso Campanella (1568–1639), em A Cidade do Sol,idealizou uma comunidade a ser governada por homens iluminados, dotados de plena e irrestrita razão.
Thomas More (1478–1535), por sua vez, ao escreverUtopia, apontou para uma sociedade ideal em que se mantivesse longe do conceito da propriedade privada.

O luxo, o supérfluo, o orgulho e a vaidade não teriam lugar nas cidades da “Ilha de Utopia”, idealizada por More. Nessa ilha, o bem individual seria totalmente submetido ao bem geral. O coletivo seria privilegiado, em lugar do individualismo.

James Hilton (1900–54), descreveu em Shangri-la um local onde a convivência entre as pessoas de diferentes procedências fosse, no bojo, de cunho puramente harmonioso.

Tal qual a filosofia clássica, no ato do “nascimento” das ciências humanas, de certa forma, incidiu-se uma profunda contribuição dos principais teóricos para aguçar esse debate em torno da construção de justiça plena e igualitária estendida a todos.

Dentro dessa perspectiva, a economia (ciência social), evidentemente não ficou de fora dessa seara. No entanto, há algo ainda em torno dessa ciência que precisa ser bem esclarecido.

Vejamos que desde a obra seminal de Adam Smith (1723-1790) há certa “nuvem pesada” em torno da real abrangência social da ciência econômica. Isso fica mais evidente pelo seguinte aspecto: ao fazer uso de cálculos matemáticos em análises econômicas, dispondo, para isso, da econometria, tem sido comum a ciência econômica se afastar de sua vertente de sensibilidade social.

Resgatar a economia para essa abrangência e preocupação com as questões sociais é tarefa de suma importância a ser executada dos dias de hoje; até mesmo porque não se pode perder de vista que a economia é, essencialmente, uma ciência humana.

Nesse pormenor, Celso Furtado (1920-2004), nosso mais proeminente economista de todos os tempos, em meados dos anos 1970 disse que é necessário “buscar construir um debate a partir da constatação de que carecemos de uma teoria geral das formações sociais que provoquem os economistas e outros teóricos das ciências sociais a pensar a teoria social de forma global”.

Furtado, tempos depois, afirmaria que “a descoberta do social foi a coisa mais relevante em minha vida”.
Estejamos certos que todo e qualquer esforço empreendido na construção de um mundo melhor e, por conseguinte, de uma sociedade mais justa e igual, somente terá validade a partir do momento em que se conseguir romper definitivamente com os determinantes que estabelecem os mais abjetos padrões de desigualdades sociais.

Por isso é de crucial importância entender que as diferenças sociais, principalmente no terreno da economia, não são dadas por fatores “naturais”, mas, antes, são condições impostas e, em geral, facilitadas por modelos econômicos que não captam a realidade social.

Assim é, por exemplo, o drama da fome mundial. A fome e suas terríveis consequências existem em algumas partes do mundo não pela escassez de alimentos, mas pela torpe maneira de distribuí-los. Razão pela qual, nos dias de hoje, há quase 1 bilhão de estômagos vazios e de bocas esfaimadas.

De igual forma, a cada ano, a fome condena à morte mais de 9 milhões de crianças que não chegam a completar cinco anos de vida.

Recursos financeiros para eliminar esse terrível drama existem; no entanto, a preferência daqueles que decidem “o modo econômico” de gerenciar as economias passa longe da resolução dessa questão.

Consoante a isso, não resta dúvida que o modo econômico ora em curso contribui para a existência desse drama social, uma vez que os homens (e os grupos) que “manipulam” a economia o fazem no sentido de auferirem lucros, em detrimento das condições de vida dos mais necessitados.

Definitivamente, a ciência econômica moderna não pode continuar a ser pensada sem a inclusão da esfera social. Para tanto, é preciso e urgente incluir os milhões de excluídos.

Tendo em conta a necessidade de aproximar a economia da análise social, de igual maneira urge condenar o mito recorrente de que os mercados se autorregulam.

Assim como a vida só faz sentido quando dela fazemos uma ferramenta capaz de transformar o mundo em que vivemos, a economia, espécie de filha legítima da filosofia e da teologia, dentro de sua atuação, não pode se furtar a esse compromisso, uma vez que essa ciência surgiu para transformar para melhor a vida das pessoas.
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e ativista ambiental 


sábado, 20 de fevereiro de 2016

O compromisso de pensar, por Marcelo Barros

Marcelo Barros

 |  domtotal.com

O compromisso de pensar

Dizem que, no Brasil, as atividades do ano só começam mesmo depois do Carnaval. Só a partir dessa semana, Escolas, universidades e empresas retomam seu ritmo normal. Os meios de comunicação nos bombardeiam com notícias de crise e corrupção. Algumas são verdadeiras, mas se misturam com boatos e delações que condenam as pessoas antes mesmo de serem julgadas. Em tudo isso, o que parece mais em crise é a capacidade das pessoas pensarem. Será que as nossas escolas e universidades incentivarão seus alunos a pensar? Teremos algum dia  meios de comunicação social que divirtam as multidões sem reduzi-las ao pão e circo concedido pelos senhores do mundo?

Como saber que cada um/uma de nós mesmos assumimos nossa missão humana de pensar e não aceitamos ser simplesmente repetidores de fórmulas feitas e macaquinhos de gestos ensaiados? É claro que, de alguma maneira, todo ser humano pensa. Processa o que acontece em redor de si e o compreende, mas isso pode ser feito de modo superficial e até irresponsável. Todos nós vivemos sob a cultura da notícia imediatizada e produzida em pílulas. Os instrumentos da internet e recursos virtuais de comunicação são valiosos e úteis, mas algumas vezes, criam uma onda de sensações que substituem o verdadeiro pensar crítico e autônomo. Sem dúvida, não é fácil nem cômodo o compromisso de pensar quando se trata de procurar compreender profundamente o que acontece e tomar uma posição verdadeiramente crítica e responsável. Na história da Filosofia, alguns reduziram o pensar a uma operação racional que ocupa apenas  parte do intelecto humano. Para alguns filósofos modernos, como Heidegger, pensar é caminhar. Só pode dizer que realmente pensa quem aceita percorrer uma estrada pessoal de busca e com o espírito aberto. E não é fácil rever nossas certezas adquiridas e colocar em questão nossos dogmas culturais, religiosos ou políticos.

Sobre a tragédia do não pensar, Hannah Arendt escreveu o seu livro mais importante: “A banalidade do mal”. Para a filósofa judia, a verdadeira tragédia é que o mal se origina no não pensar. O carrasco nazista Adolf Eichmann exterminou multidões nos campos de concentração não porque fosse um monstro sádico. Era um homem normal e bom pai de família. Mas, tinha renunciado a pensar e apenas cumpria ordens dos superiores. Do mesmo modo, até hoje, a publicidade enganosa, o doutrinamento ideológico e o impacto sensacionalista nascem quando a pessoa renuncia a pensar criticamente e simplesmente se deixa levar por uma onda que acaba conduzindo a alguma forma de totalitarismo.

Às vezes, para instituições como o Exército, a Escola e mesmo a Igreja, é mais fácil ter pessoas que seguem normas e obedecem mecanicamente do que aceitar pessoas que pensam. O militar que, para cumprir o seu dever, usa violência ou agride pessoas, o funcionário que não é capaz de ir além de sua estrita obrigação e o religioso que repete fórmulas de crenças acabam colaborando para a cultura da indiferença geral que domina a sociedade.  O papa Francisco tem denunciado que essa indiferença está na base do sofrimento de tantas pessoas.

A revista Le Monde des Religions, em seu número atual (janeiro-fevereiro 2016) tem uma página com um mapa de todas as guerras e conflitos provocados pela religião. Pude contar 17 regiões do mundo nas quais cristãos extremistas combatem outras religiões, hindus lutam contra muçulmanos, judeus perseguem muçulmanos e assim por diante. No Brasil, que não consta desse mapa de guerras declaradas, a cada dia acontecem ataques e atos de discriminação contra cultos de matriz afrodescendente. Um amigo italiano repete um filósofo ao dizer: “A diferença não é entre quem é religioso e quem não é. A diferença está entre quem pensa e quem não pensa”.

No caminho das religiões, todas contaram com figuras proféticas que procuraram ser fieis à sua tradição, mas ao mesmo tempo apontaram para a responsabilidade do pensar de forma pessoal e amoroso. Nos evangelhos, Jesus diz: “Eu não vim destruir a lei ou os profetas. Ao contrário, vim para levá-los à sua plenitude. Nem um j desaparecerá da lei até que tudo seja realizado” (Mt 5, 17- 18). No entanto, afirmou também: “A lei e o sábado foram feitos para o ser humano e não o ser humano para a lei e o sábado” (Mc 2, 27).

Marcelo BarrosMarcelo Barros é monge beneditino e teólogo especializado em Bíblia. Atualmente, é coordenador latino-americano da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo (ASETT). Assessora as comunidades eclesiais de base e movimentos sociais como o Movimento de Trabalhadores sem Terra (MST). Tem 45 livros publicados dos quais está no prelo: "O Evangelho e a Instituição", Ed. Paulus, 2014. Colabora com várias revistas teológicas do Brasil, como REB, Diálogo, Convergência e outras. Colabora com revistas internacionais de teologia, como Concilium e Voices e com revistas italianas como En diálogo e Missione Oggi. Escreve mensalmente para um jornal de Madrid (Alandar) e semanalmente para jornais brasileiros (O Popular de Goiânia e Jornal do Commercio de Recife, além de um jornal de Caracas (Correo del Orinoco) e de San Juan de Puerto Rico (Claridad). 

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Que mídia é essa? ; por Marcus Ianoni

Que mídia é essa?

Marcus Ianoni, Jornal do Brasil

O que a grande mídia, porta-voz e holofote da coalizão conservadora oposta ao social-desenvolvimentismo, vem fazendo com o PT, Dilma e, recentemente, com Lula é uma ação política organizada e destrutiva de grande envergadura. Essa ação fornece base empírica para responder à pergunta do título nos seguintes termos: a mídia brasileira é altamente concentrada, não plural e partidarizada. Tal estrutura do sistema de mídia prejudica o desenvolvimento da democracia no que ela tem de mais essencial, a igualdade de condições.

Para mencionar apenas um exemplo, entre tantos outros que têm inundado quase que diariamente a radiodifusão e a imprensa desde as eleições de 2014, a ombudsman da Folha de S. Paulo, Vera Guimarães Martins, avaliou em sua coluna, no último dia 7, que o jornal não deu o merecido destaque à menção, no depoimento do delator Fernando Moura à Justiça Federal, na Operação Lava Jato, de que, ao menos desde 2002, Aécio Neves e o PSDB estariam envolvidos em um esquema de corrupção, na Furnas Centrais Elétricas, semelhante ao existente na Petrobras, tendo como mediador o diretor Dimas Toledo. Referindo-se ao rateio tucano da propina do esquema, Fernando Moura afirmou: "um terço São Paulo, um terço nacional e um terço Aécio".

Formalmente, corporações de mídia são empresas, e não partidos políticos. No entanto, devido à natureza de sua atividade, a informação e a comunicação, que abrange a opinião e o noticiário políticos, essas empresas são peças-chave na comunicação política e na formação da opinião pública. Além disso, quando extrapolam o campo meramente opinativo e partem para a ação, tornam-se partidos políticos no sentido amplo do termo. Havendo oligopólio na estrutura de mídia, a posse desigual de recursos de informação, comunicação, opinião e ação desequilibra a competição político-democrática cotidiana e compromete a diversidade opinativa.

A concentração da propriedade da mídia tem sido uma das principais portas de entrada dos interesses econômicos na esfera política. O ideal neoliberal da primazia do mercado sobre o Estado, portanto, sobre a política, tem na ação da grande mídia concentrada, que desempenha papel estruturante na comunicação política, sua principal vanguarda material de efetivação. A macroeconomia neoliberal, para citar um exemplo especial, embora seja apenas uma visão entre outras, é propalada na grande mídia como se fosse o elixir da longa vida. Atacar a política, considerando-a unilateralmente como ineficiente e corrupta, é a principal plataforma dos ideólogos do partido neoliberal, agremiação sociopolítica na qual a grande mídia se insere como liderança, pelos recursos de poder que possui e mobiliza.

No que diz respeito ao suposto combate à corrupção, tem sido mais do que visível a política de dois pesos e duas medidas da grande mídia, que vem se tornando, com intensidade crescente, desde as eleições presidenciais de 1989, passando pelas de 1994, 1998, 2002, 2006, 2010 e 2014, um partido antipetista. Além disso, esse partido conservador, vem, também nos períodos não eleitorais, cada vez mais revelando sua seletividade, conforme verifica-se na sua postura tolerante em relação a casos como a compra de votos parlamentares para a aprovação da emenda constitucional da reeleição, o Mensalão e “Tremsalão” tucanos, o aeroporto de Claudio etc. Por outro lado, não há notícia alguma de jornalismo investigativo, mesmo que de média envergadura, sobre o esquema de propina em Furnas, supramencionado.

Para um lado, tolerância e favores, para o outro, intolerância e lei. Essa polarização ideológica é o principal propulsor da onda autoritária e até de comportamentos sociopolíticos protofascistas em setores do eleitorado, tendo à frente estratos sociais mais abastados, desde a conjuntura aberta pelos protestos de rua, em 2013. O andamento da cena política induz a imaginarmos o que acontecerá com a liberdade de expressão se a oposição neoliberal vencer em 2018.  Não haverá, caricaturalmente, um coeso bloco governamental-midiático, em um contexto no qual as empresas de comunicação, conformando uma estrutura proprietária sem pluralidade, e o Estado a elas associado, inclusive, mas não só, pelo generoso gasto público com publicidade, além de outras capturas, configurarão um regime político semi-totalitário, coveiro da efetiva diversidade de opinião?

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) tem se preocupado com a liberdade de expressão, que, segundo ela, depende muito da existência “de um sistema midiático livre, plural, independente e diverso”.  O acesso à mídia é tão importante quanto a sua independência. No trabalho “Indicadores de desenvolvimento da mídia: marco para a avaliação do desenvolvimento dos meios de comunicação”, essa organização afirma: “Não é apenas a ausência de restrições na mídia que interessa, mas também saber em que medida todos os setores da sociedade, sobretudo os mais marginalizados, são capazes de ter acesso à mídia para obter informações e fazer com que suas vozes sejam ouvidas”. O trabalho sugere que o desenvolvimento da mídia deve ser avaliado com base em cinco categorias principais: 1) se o sistema regulatório é favorável à liberdade de expressão, ao pluralismo e à diversidade da mídia; 2) o nível de pluralidade e diversidade da mídia, com igualdade de condições no plano econômico e transparência da propriedade; 3) o papel da  mídia como uma plataforma para o discurso democrático; 4) a capacitação profissional e apoio às instituições que embasam a liberdade de expressão, o pluralismo e a diversidade; 5) a (in)suficiente capacidade infraestrutural para sustentar uma mídia independente e pluralista.

O sistema de comunicações no Brasil, altamente concentrado e carente de regulamentação das diretrizes elencadas na Constituição de 1988, não garante adequadamente as cinco características supramencionadas. Uma proposta alternativa foi formulada, a partir de 2012, por organizações democráticas da sociedade civil, resultando no “Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica”, também denominado de Lei da Mídia Democrática. Trata-se de uma iniciativa popular legislativa, encaminhada por um movimento social que coleta assinaturas de adesão à campanha por uma nova regulamentação da comunicação social no Brasil. Nos seus princípios e objetivos, lê-se: “O novo marco regulatório deve garantir o direito à comunicação e a liberdade de expressão de todos os cidadãos e cidadãs, de forma que as diferentes ideias, opiniões e pontos de vista, e os diferentes grupos sociais, culturais, étnico-raciais e políticos possam se manifestar em igualdade de condições no espaço público midiático. Nesse sentido, ele deve reconhecer e afirmar o caráter público de toda a comunicação social e basear todos os processos regulatórios no interesse público”.

Seguem-se 20 diretrizes fundamentais: arquitetura institucional democrática;  participação social; separação de infraestrutura e conteúdo; garantia de redes abertas e neutras;  universalização dos serviços essenciais; adoção de padrões abertos e interoperáveis e apoio à tecnologia nacional; regulamentação da complementaridade dos sistemas e fortalecimento do sistema público de comunicação; fortalecimento das rádios e TVs comunitárias; democracia, transparência e pluralidade nas outorgas; limite à concentração nas comunicações; proibição de outorgas para políticos;  garantia da produção e veiculação de conteúdo nacional e regional e estímulo à programação independente; promoção da diversidade étnico-racial, de gênero, de orientação sexual, de classes sociais e de crença; criação de mecanismos de responsabilização das mídias por violações de direitos humanos;  aprimoramento de mecanismos de proteção às crianças e aos adolescentes; estabelecimento de normas e códigos que objetivem a diversidade de pontos de vista e o tratamento equilibrado do conteúdo jornalístico; regulamentação da publicidade; definição de critérios legais e de mecanismos de transparência para a publicidade oficial; leitura e prática críticas para a mídia; e, por fim, acessibilidade comunicacional. Ou seja, há alternativas.

Nada é mais valioso para alcançar paz, desenvolvimento e justiça social na complexa sociedade moderna que a democracia. Esta, por sua vez, requer igualdade de condições, especialmente na esfera da liberdade de expressão, que depende de meios de concretização material, e não de mera formalização normativa. Uma ordem legal que enuncia a liberdade de expressão sem propiciar o acesso, em mínimas condições de igualdade, à mídia é tão retoricamente vazia nesse quesito fundamental quanto aquela que verbaliza o direito à vida sem garantir, na prática, recursos básicos ao saciamento da fome para milhões de pessoas excluídas ou mal incluídas no mercado.

Se, ao invés de prevalecer a força livre da opinião pública, predominar, sobretudo em algumas conjunturas, como a atual, a pujança da opinião publicada pelo poder econômico midiático ou se, ao invés da liberdade de imprensa, prevalecer a liberdade de empresa dos oligopólios de comunicação, o imenso potencial dos atores sociais, na democracia brasileira, conduzirem a igualdade de condições a degraus mais elevados seguirá represado. A reforma da estrutura de mídia é um imperativo democrático. Assim como há várias possibilidades de política macroeconômica, há diversos meios de regulamentar a comunicação social, conforme mostram a experiência internacional e as investigações da Unesco. Não à toa, os mesmos atores que propagandeiam na esfera pública a ideologia de que só há uma política macroeconômica, a da austeridade fiscal e monetária, propalam também que só há uma estrutura de mídia, essa concentrada, partidarizada e excludente que existe no Brasil.

* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), pesquisador das relações entre Política e Economia e VisitingResearcheAssociate da Universidade de Oxford (Latin American Centre)

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

A tentativa de incriminar Lula transpôs as fronteiras do ridículo, por Mino Carta

Mino Carta
Carta Capital

Crise Política

Muito além das fronteiras do ridículo

Na tentativa de incriminar Lula, os perdigueiros da informação mordem seu próprio rabo, mas poucos se riem

Na semana passada, sugeri aos perdigueiros da informação que passassem a procurar o jatinho, o Rolls-Royce, a fazenda, o iate que Lula não possui. E não é que acharam o barco de dona Marisa? De lata, custa 4 mil reais. Quanto à fazenda, fazendeiro mesmo é Fernando Henrique Cardoso e de jatinho há de voar Aécio Neves, ao certo sei que dispõe de campo de pouso.
Está claro que de FHC e de Aécio não é admissível suspeitar: postam-se na proa da fragata tucana e, portanto, são intocáveis. Seu partido tornou-se de fato o mais perfeito intérprete dos ideais da direita mais reacionária do País. O Partido da Social-Democracia Brasileira, e já aí nos defrontamos com uma piada. Nunca houve quem ousasse perguntar-se como um professor universitário seja proprietário de um apartamento paulistano muito maior do que o triplex praiano que dona Marisa não comprou, e de uma fazenda de boa extensão, fruto de uma obscura história a envolver um certo Jovelino Mineiro, de turva memória. O único filho de FHC (o outro dele não era) andou metido em aventuras estranhas e eu não esqueço as excelentes relações que o ex-presidente mantinha com Daniel Dantas, o banqueiro do Opportunity, deliberadamente favorecido pelo então presidente do BNDES, Luiz Carlos Mendonça de Barros, por ocasião da bandalheira da privatização das comunicações.
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Não são eles que podem rir. (Edilson Dantas/ Ag. O Globo)
Tive a oportunidade de ouvir a gravação dos grampos das conversas telefônicas entre Mendonça de Barros, André Lara Resende e Persio Arida e parte mais significativa CartaCapital publicou em 25/8/1998, ecoada obviamente pelo estrondoso silêncio da mídia nativa. Ouvi claras referências à manipulação dos resultados da privatização a favor “dos italianos” e, portanto, de Dantas, admitida a possibilidade de recorrer, caso necessário, à “bomba atômica”, ou seja, o presidente FHC. Certa vez, de volta de Cayman, onde cuida dos seus negócios e de muitos outros graúdos, o banqueiro foi diretamente a Brasília para uma visita ao Alvorada. Perguntei-me se estaria em missão de agradecimento.
A vocação aérea de Aécio Neves é certa e sabida, costumava usar o avião da governança mineira para viagens sem agenda oficial, e o emprestava com generosidade aos amigos e nem tanto para suas deslocações Brasil afora. Até um vilão recente, Delcídio do Amaral, gozou da regalia. Do ex-governador falou-se muito e mal, em incursões inclusive por sua vida privada, e eis que, de improviso, ao se tornar candidato tucano contra Dilma Rousseff, a mídia nativa o assume como varão de Plutarco.
Os argumentos brandidos agora na tentativa de incriminar Lula, repetidos à exaustão produzem jornalões idênticos de um dia para o outro, e também revistas e programas de rádio e tevê. Ao ler a Folha de S.Paulo de sexta-feira você pode ser levado a crer que de verdade se trate de O Globo de domingo ou do Estado de S. Paulo da quinta seguinte. Não se distingue colunista, ou um comentarista, de outro. Por exemplo, Dora Kramer de Eliane Cantanhêde. De todo modo, na terça 2 de fevereiro, na Folha Mario Sergio Conti aponta em Ernesto Geisel um herói da probidade. Dado a esquecimentos, o colunista graciosamente olvida a vivenda nababesca que Geisel construiu na encosta da Serra do Mar e de como permitiu que o então mandachuva da Petrobras, Shigeaki Ueki, cobrasse pedágio sobre cada barril produzido ou importado. Sem contar que, ao encerrar o seu “mandato”, levou para casa os presentes recebidos de visitantes ilustres na qualidade de ditador. Consta ter apreciado sobretudo vasos chineses da dinastia Ming.
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Há 18 anos provamos a maior bandalheira da história, ecoador por estrondoso silêncio
Mesmo para quem se acostumou à leitura da imprensa, ou acompanha programas políticos na tevê e no rádio, haveria de sofrer autênticas crises de desalentado enfado diante da repetição dos tais argumentos, de resto até o momento tão pouco consistentes. Os jornais contam até as vezes em que a família de Lula esteve no celebérrimo sítio de Atibaia como se os passeios apontassem para os verdadeiros donos do imóvel. Fica provado apenas que a polícia segue os passos da família Lula da Silva e se prontifica a vazar informações aos repórteres que certamente não se dispõem a certas tarefas.
Ampla conspirata em andamento como se vê, conluio de policiais com os perdigueiros midiáticos, diante do olhar atônito de Rolando Lero, perdão, do ministro da Justiça. Envolvidos, ainda, promotores certos da autoridade que a Constituição lhes concede, qual fossem instituições à parte, além das três previstas pelo regime democrático. No caso, o doutor Ulysses Guimarães, pai da Carta de 1988, cometeu um equívoco. Houve, entre seus assessores, quem recomendasse não conceder ao Ministério Público tamanho poder, mas o “Senhor Diretas Já”, movido a idealismo, não quis ouvir.
Os enredos protagonizados pelo triplex praiano e pelo sítio interiorano foram completamente desenrolados. No caso do sítio, um dos donos é filho de um dos fundadores do PT, Jacó Bittar, velho companheiro de lutas sindicais do ex-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema. Jacó comandava o sindicato dos petroleiros de Paulínia, e os filhos dos dois sindicalistas cresceram juntos. Seria imaginável que um Bittar funcionasse como laranja de Lula? Mesmo assim, os perdigueiros farejam o pecado e contam com um promotor paulista, Cassio Conserino, para dar ouvidos à sua algazarra e indiciar o casal Lula da Silva para depor no próximo dia 17. Admita-se a hipótese de que Conserino aspirasse a ter seu retrato nas páginas dos jornalões.
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Sítio em Atibaia também é objeto de acusações contra Lula. (Cesar Dellamonica/ Frame Photo/ Ag. O Globo)
A razão da caçada é transparente, nasce do ódio de classe dos senhores da casa-grande e visa cortar pela raiz a eventualidade de uma candidatura de Lula em 2018. Ocorre que os perdigueiros se perdem pelo caminho à procura do que não existe, vítimas de sua própria insistência ao longo da pista que a nada leva. Surpresa? O jornalismo à brasileira é o mister, com raríssimas exceções, de uma horda de lacaios dos barões midiáticos. Estes se odeiam entre si, mas se unem à frente do risco comum, para formar o verdadeiro partido de oposição a qualquer ameaça à fórmula medieval, casa-grande e senzala. Nem por isso sobra espaço para espanto quando os perdigueiros estão a morder seu próprio rabo.
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O doutor Ulysses cometeu um equívoco ao conceder poder excessivo ao MP na Constituição de 1988...(Sergio Amaral)
Quantos, além do promotor Conserino, não percebem o ridículo? Em primeiro lugar, os proprietários de apartamentos mensuráveis em milhares de metros quadrados de construção, dotados de terraços gourmet e de sete a oito garagens, em edifícios definidos como torres. Foi-se o tempo em que veraneavam em Guarujá. Por lá havia até um cassino em roleta, dedicado, porém, a jogos de baralho, e à mesa de pôquer o rebento de uma graúda família paulistana certa vez perdeu um carro Studebaker, verde e recém-importado. Décadas e décadas atrás, quando a Praia das Astúrias servia apenas para os passeios dos moradores de Pitangueiras, esta sim, habilitada a receber na orla a aristocracia, enquanto o time aspirante se espalhava por trás, em prédios ou sobrados sem vista para o mar. Guarujá é hoje uma amostra terrificante da degradação brasileira, com suas praias cercadas de favelas e bandos de assaltantes estavelmente instalados no túnel que dá acesso às praias da Enseada, Pernambuco e Perequê no rumo de Bertioga. 
É um faroeste do terceiro milênio, bem diferente de Coral Gables, onde inúmeros privilegiados brasileiros têm apartamentos, quando não os têm em Nova York, com vista para o Central Park, e em Paris na Avenue Foch. Das Astúrias cabe dizer ter-se tornado há muitos anos a meta preferida dos farofeiros. Permito-me achar que dona Marisa agiu bem ao renunciar a tão falado triplex, que, aliás, com seus duzentos e poucos metros de construção, não há de ser a morada do rei. Basta, no entanto, pensar nele e, evidentemente, na possibilidade de que a família Lula da Silva dele usufruísse, para enraivecer os senhores até o paroxismo, bem como toda uma dita classe média que aspira a morar, algum dia, ao menos na mansarda da casa-grande.
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....e o promotor Conserino aproveita-se. (Sergio Amaral)
Não vivessem uma poderosa degradação mental, fruto da incultura e da parvoíce dignas de uma república bananeira, perceberiam que essa história transpôs as fronteiras do ridículo, e o fracasso dos perdigueiros se retorceria contra quem os soltou. Receio que ninguém escape ao final infeliz de uma tragicomédia, mesmo quantos não merecem este destino, vítimas do carnaval encenado pela minoria branca, como diria Cláudio Lembo.

sábado, 13 de fevereiro de 2016

A Declaração Conjunta do Papa Francisco e do Patriarca Kirill


"Ainda ressoa nas redes sociais um dos lemas prediletos da direita: “Vai pra Cuba!” E não é que Suas Santidades Francisco e Kirill escolheram exatamente Cuba para seu encontro histórico. Poderiam ter escolhido uma outra sede, por exemplo, a alardeada democracia da Costa Rica, ali pertinho, que nem exército tem." (Ópera Mundi)


Do Papa e do Patriarca: "O nosso encontro fraterno teve lugar em Cuba, encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX, dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América Latina e dos outros continentes.
Alegramo-nos porque aqui cresce, de forma dinâmica, a fé cristã. O forte potencial religioso da América Latina, a sua tradição cristã secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas, são a garantia de um grande futuro para esta região.
      Encontrando-nos longe das antigas disputas do “Velho Mundo”, sentimos mais fortemente a necessidade de um trabalho comum entre católicos e ortodoxos, chamados a dar ao mundo, com mansidão e respeito, razão da esperança que está em nós"

Do Fala Chico:

Declaração conjunta do Papa Francisco e do Patriarca Kirill de Moscou e de toda a Rússia

Declaração comum do Papa Francisco e do Patriarca Kirill de Moscou e de toda a Rússia
"A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus Pai e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós" (2 Cor 13, 13).
1.         Por vontade de Deus Pai de quem provém todo o dom, no nome do Senhor nosso Jesus Cristo e com a ajuda do Espírito Santo Consolador, nós, Papa Francisco e Kirill, Patriarca de Moscou e de toda a Rússia, encontramo-nos, hoje, em Havana. Damos graças a Deus, glorificado na Trindade, por este encontro, o primeiro na história.
Com alegria, encontramo-nos como irmãos na fé cristã que se reúnem para “falar de viva voz” (2 Jo 12), coração a coração, e analisar as relações mútuas entre as Igrejas, os problemas essenciais de nossos fiéis e as perspectivas de progresso da civilização humana
Cuba
2.         O nosso encontro fraterno teve lugar em Cuba, encruzilhada entre Norte e Sul, entre Leste e Oeste. A partir desta ilha, símbolo das esperanças do “Novo Mundo” e dos acontecimentos dramáticos da história do século XX, dirigimos a nossa palavra a todos os povos da América Latina e dos outros continentes.
Alegramo-nos porque aqui cresce, de forma dinâmica, a fé cristã. O forte potencial religioso da América Latina, a sua tradição cristã secular, presente na experiência pessoal de milhões de pessoas, são a garantia de um grande futuro para esta região.
3.         Encontrando-nos longe das antigas disputas do “Velho Mundo”, sentimos mais fortemente a necessidade de um trabalho comum entre católicos e ortodoxos, chamados a dar ao mundo, com mansidão e respeito, razão da esperança que está em nós (cf. 1 Ped 3, 15).
Tradição comum
4.         Damos graças a Deus pelos dons que recebemos da vinda ao mundo do seu único Filho. Partilhamos a Tradição espiritual comum do primeiro milênio do cristianismo. As testemunhas desta Tradição são a Virgem Maria, Santíssima Mãe de Deus, e os Santos que veneramos. Entre eles, contam-se inúmeros mártires que testemunharam a sua fidelidade a Cristo e se tornaram “semente de cristãos”.
5.         Apesar desta Tradição comum dos primeiros dez séculos, há quase mil anos que católicos e ortodoxos estão privados da comunhão na Eucaristia. Estamos divididos por feridas causadas por conflitos de um passado distante ou recente, por divergências – herdadas dos nossos antepassados – na compreensão e explicitação da nossa fé em Deus, uno em três Pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo. Deploramos a perda da unidade, consequência da fraqueza humana e do pecado, ocorrida apesar da Oração Sacerdotal de Cristo Salvador: “Para que todos sejam um só, como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti; para que assim eles estejam em Nós” (Jo 17, 21).
Superar divergências
6.         Conscientes da permanência de numerosos obstáculos, esperamos que o nosso encontro possa contribuir para o restabelecimento desta unidade querida por Deus, pela qual Cristo rezou. Que o nosso encontro inspire os cristãos do mundo inteiro a rezar ao Senhor, com renovado fervor, pela unidade plena de todos os seus discípulos. Em um mundo que espera de nós não apenas palavras mas gestos concretos, possa este encontro ser um sinal de esperança para todos os homens de boa vontade!
7.         Determinados a realizar tudo o que seja necessário para superar as divergências históricas que herdamos, queremos unir os nossos esforços para testemunhar o Evangelho de Cristo e o patrimônio comum da Igreja do primeiro milênio, respondendo em conjunto aos desafios do mundo contemporâneo. Ortodoxos e católicos devem aprender a dar um testemunho concorde da verdade, em áreas onde isso seja possível e necessário. A civilização humana entrou em um período de mudança de época. A nossa consciência cristã e a nossa responsabilidade pastoral não nos permitem ficar inertes perante os desafios que requerem uma resposta comum.
Oriente Médio
8.         O nosso olhar dirige-se, em primeiro lugar, para as regiões do mundo onde os cristãos são vítimas de perseguição. Em muitos países do Oriente Médio e do Norte da África, os nossos irmãos e irmãs em Cristo veem exterminadas as suas famílias, aldeias e cidades inteiras. As suas igrejas são barbaramente devastadas e saqueadas; os seus objetos sagrados profanados, os seus monumentos destruídos. Na Síria, no Iraque e em outros países do Oriente Médio, constatamos, com amargura, o êxodo maciço dos cristãos da terra onde começou a espalhar-se a nossa fé e onde eles viveram, desde o tempo dos apóstolos, em conjunto com outras comunidades religiosas.
9.         Pedimos a ação urgente da Comunidade internacional para prevenir uma nova expulsão dos cristãos do Oriente Médio. Ao levantar a voz em defesa dos cristãos perseguidos, queremos expressar a nossa compaixão pelas tribulações sofridas pelos fiéis de outras tradições religiosas, também eles vítimas da guerra civil, do caos e da violência terrorista.
10.       Na Síria e no Iraque, a violência já causou milhares de vítimas, deixando milhões de pessoas sem casa nem meios de subsistência. Exortamos a Comunidade internacional a unir-se para pôr fim à violência e ao terrorismo e, ao mesmo tempo, a contribuir por meio do diálogo para um rápido restabelecimento da paz civil. É essencial garantir uma ajuda humanitária em larga escala às populações martirizadas e a tantos refugiados nos países vizinhos.
Pedimos a quantos possam influir sobre o destino das pessoas raptadas, entre as quais se encontram os Metropolitas de Aleppo, Paulo e João Ibrahim, sequestrados no mês de Abril de 2013, que façam tudo o que é necessário para a sua rápida libertação.
Acordo de Paz
11.       Elevamos as nossas súplicas a Cristo, Salvador do mundo, pelo restabelecimento da paz no Oriente Médio, que é “fruto da justiça” (Is 32, 17), a fim de que se reforce a convivência fraterna entre as várias populações, as Igrejas e as religiões lá presentes, pelo regresso dos refugiados às suas casas, a cura dos feridos e o repouso da alma dos inocentes que morreram.
Com um ardente apelo, dirigimo-nos a todas as partes que possam estar envolvidas nos conflitos pedindo-lhes que deem prova de boa vontade e se sentem à mesa das negociações. Ao mesmo tempo, é preciso que a Comunidade internacional faça todos os esforços possíveis para pôr fim ao terrorismo valendo-se de ações comuns, conjuntas e coordenadas. Apelamos a todos os países envolvidos na luta contra o terrorismo, para que atuem de maneira responsável e prudente. Exortamos todos os cristãos e todos os crentes em Deus a suplicarem, fervorosamente, ao Criador providente do mundo que proteja a sua criação da destruição e não permita uma nova guerra mundial. Para que a paz seja duradoura e esperançosa, são necessários esforços específicos tendentes a redescobrir os valores comuns que nos unem, fundados no Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo.
12.       Curvamo-nos perante o martírio daqueles que, à custa da própria vida, testemunham a verdade do Evangelho, preferindo a morte à apostasia de Cristo. Acreditamos que estes mártires do nosso tempo, pertencentes a várias Igrejas mas unidos por uma tribulação comum, são um penhor da unidade dos cristãos. É a vós, que sofreis por Cristo, que se dirige a palavra do Apóstolo: “Caríssimos, (...) alegrai-vos, pois assim como participais dos padecimentos de Cristo, assim também rejubilareis de alegria na altura da revelação da sua glória” (1 Ped 4, 12-13).
Diálogo e Europa
13.       Nesta época preocupante, é indispensável o diálogo inter-religioso. As diferenças na compreensão das verdades religiosas não devem impedir que pessoas de crenças diversas vivam em paz e harmonia. Nas circunstâncias atuais, os líderes religiosos têm a responsabilidade particular de educar os seus fiéis num espírito respeitador das convicções daqueles que pertencem a outras tradições religiosas. São absolutamente inaceitáveis as tentativas de justificar ações criminosas com slogans religiosos. Nenhum crime pode ser cometido em nome de Deus, “porque Deus não é um Deus de desordem, mas de paz” (1 Cor 14, 33).
14.       Ao afirmar o alto valor da liberdade religiosa, damos graças a Deus pela renovação sem precedentes da fé cristã que acontece na Rússia e em muitos países da Europa Oriental, onde, durante algumas décadas, dominaram os regimes ateus. Hoje as cadeias do ateísmo militante estão quebradas e, em muitos lugares, os cristãos podem livremente confessar a sua fé. Em um quarto de século foram construídas dezenas de milhares de novas igrejas, e abertos centenas de mosteiros e escolas teológicas. As comunidades cristãs desenvolvem uma importante atividade sócio-caritativa, prestando variada assistência aos necessitados. Muitas vezes trabalham lado a lado ortodoxos e católicos; atestam a existência dos fundamentos espirituais comuns da convivência humana, ao testemunhar os valores do Evangelho.
15.       Ao mesmo tempo, estamos preocupados com a situação em muitos países onde os cristãos se debatem cada vez mais frequentemente com uma restrição da liberdade religiosa, do direito de testemunhar as suas convicções e da possibilidade de viver de acordo com elas. Em particular, constatamos que a transformação de alguns países em sociedades secularizadas, alheias a qualquer referência a Deus e à sua verdade, constitui uma grave ameaça à liberdade religiosa. É fonte de inquietação para nós a limitação atual dos direitos dos cristãos, se não mesmo a sua discriminação, quando algumas forças políticas, guiadas pela ideologia de um secularismo frequentemente muito agressivo, procuram relegá-los para a margem da vida pública.
16.       O processo de integração europeia, iniciado depois de séculos de sangrentos conflitos, foi acolhido por muitos com esperança, como uma garantia de paz e segurança. Todavia, convidamos a manter-se vigilantes contra uma integração que não fosse respeitadora das identidades religiosas. Embora permanecendo abertos à contribuição de outras religiões para a nossa civilização, estamos convencidos de que a Europa deve permanecer fiel às suas raízes cristãs. Pedimos aos cristãos da Europa Oriental e Ocidental que se unam para testemunhar em conjunto Cristo e o Evangelho, de modo que a Europa conserve a própria alma formada por dois mil anos de tradição cristã.
Família
17.       O nosso olhar volta-se para as pessoas que se encontram em situações de grande dificuldade, em condições de extrema necessidade e pobreza, enquanto crescem as riquezas materiais da humanidade. Não podemos ficar indiferentes à sorte de milhões de migrantes e refugiados que batem à porta dos países ricos. O consumo desenfreado, como se vê em alguns países mais desenvolvidos, está gradualmente esgotando os recursos do nosso planeta. A crescente desigualdade na distribuição dos bens da Terra aumenta o sentimento de injustiça perante o sistema de relações internacionais que se estabeleceu.
18.       As Igrejas cristãs são chamadas a defender as exigências da justiça, o respeito pelas tradições dos povos e uma autêntica solidariedade com todos os que sofrem. Nós, cristãos, não devemos esquecer que “o que há de louco no mundo é que Deus escolheu para confundir os sábios; e o que há de fraco no mundo é que Deus escolheu para confundir o que é forte. O que o mundo considera vil e desprezível é que Deus escolheu; escolheu os que nada são, para reduzir a nada aqueles que são alguma coisa. Assim, ninguém se pode vangloriar diante de Deus” (1 Cor 1, 27-29).
19.       A família é o centro natural da vida humana e da sociedade. Estamos preocupados com a crise da família em muitos países. Ortodoxos e católicos partilham a mesma concepção da família e são chamados a testemunhar que ela é um caminho de santidade, que testemunha a fidelidade dos esposos nas suas relações mútuas, a sua abertura à procriação e à educação dos filhos, a solidariedade entre as gerações e o respeito pelos mais vulneráveis.
20.       A família funda-se no matrimônio, ato de amor livre e fiel entre um homem e uma mulher. É o amor que sela a sua união e os ensina a acolher-se reciprocamente como um dom. O matrimônio é uma escola de amor e fidelidade. Lamentamos que outras formas de convivência já estejam postas ao mesmo nível desta união, ao passo que o conceito, santificado pela tradição bíblica, de paternidade e de maternidade como vocação particular do homem e da mulher no matrimônio, seja banido da consciência pública.
21.       Pedimos a todos que respeitem o direito inalienável à vida. Milhões de crianças são privadas da própria possibilidade de nascer no mundo. A voz do sangue das crianças não nascidas clama a Deus (cf. Gn 4, 10).
O desenvolvimento da chamada eutanásia faz com que as pessoas idosas e os doentes comecem a sentir-se um peso excessivo para as suas famílias e a sociedade em geral.
Estamos preocupados também com o desenvolvimento das tecnologias reprodutivas biomédicas, porque a manipulação da vida humana é um ataque aos fundamentos da existência do homem, criado à imagem de Deus. Consideramos nosso dever lembrar a imutabilidade dos princípios morais cristãos, baseados no respeito pela dignidade do homem chamado à vida, segundo o desígnio do Criador.
Juventude
22.       Hoje, desejamos dirigir-nos de modo particular aos jovens cristãos. Vós, jovens, tendes o dever de não esconder o talento na terra (cf. Mt 25, 25), mas de usar todas as capacidades que Deus vos deu para confirmar no mundo as verdades de Cristo, encarnar na vossa vida os mandamentos evangélicos do amor de Deus e do próximo. Não tenhais medo de ir contra a corrente, defendendo a verdade de Deus, à qual estão longe de se conformar sempre as normas secularizadas de hoje.
23.       Deus ama-vos e espera de cada um de vós que sejais seus discípulos e apóstolos. Sede a luz do mundo, de modo que quantos vivem ao vosso redor, vendo as vossas boas obras, glorifiquem o vosso Pai que está no Céu (cf. Mt 5, 14.16). Haveis de educar os vossos filhos na fé cristã, transmitindo-lhes a pérola preciosa da fé (cf. Mt 13, 46), que recebestes dos vossos pais e antepassados. Lembrai-vos que “fostes comprados por um alto preço” (1 Cor 6, 20), a custo da morte na cruz do Homem-Deus Jesus Cristo.
24.       Ortodoxos e católicos estão unidos não só pela Tradição comum da Igreja do primeiro milênio mas também pela missão de pregar o Evangelho de Cristo no mundo de hoje. Esta missão exige o respeito mútuo entre os membros das comunidades cristãs e exclui qualquer forma de proselitismo.
Não somos concorrentes, mas irmãos: por esta certeza, devem ser guiadas todas as nossas ações recíprocas e em benefício do mundo exterior. Exortamos os católicos e os ortodoxos de todos os países a aprender a viver juntos na paz e no amor e a ter “os mesmos sentimentos, uns com os outros” (Rm 15, 5). Por isso, é inaceitável o uso de meios desleais para incitar os crentes a passar de uma Igreja para outra, negando a sua liberdade religiosa ou as suas tradições. Somos chamados a pôr em prática o preceito do apóstolo Paulo: “Tive a maior preocupação em não anunciar o Evangelho onde já era invocado o nome de Cristo, para não edificar sobre fundamento alheio” (Rm 15, 20).
Greco-católicos
25.       Esperamos que o nosso encontro possa contribuir também para a reconciliação, onde existirem tensões entre greco-católicos e ortodoxos. Hoje, é claro que o método do “uniatismo” do passado, entendido como a união de uma comunidade à outra separando-a da sua Igreja, não é uma forma que permita restabelecer a unidade. Contudo, as comunidades eclesiais surgidas nestas circunstâncias históricas têm o direito de existir e de empreender tudo o que é necessário para satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis, procurando ao mesmo tempo viver em paz com os seus vizinhos. Ortodoxos e greco-católicos precisam de reconciliar-se e encontrar formas mutuamente aceitáveis de convivência.
26.       Deploramos o conflito na Ucrânia que já causou muitas vítimas, provocou inúmeras tribulações a gente pacífica e lançou a sociedade em uma grave crise econômica e humanitária. Convidamos todas as partes do conflito à prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a paz. Convidamos as nossas Igrejas na Ucrânia a trabalhar por se chegar à harmonia social, abster-se de participar no conflito e não apoiar ulteriores desenvolvimentos do mesmo.
27.       Esperamos que o cisma entre os fiéis ortodoxos na Ucrânia possa ser superado com base nas normas canônicas existentes, que todos os cristãos ortodoxos da Ucrânia vivam em paz e harmonia, e que as comunidades católicas do país contribuam para isso de modo que seja visível cada vez mais a nossa fraternidade cristã.
28.       No mundo contemporâneo, multiforme e todavia unido por um destino comum, católicos e ortodoxos são chamados a colaborar fraternalmente no anúncio da Boa Nova da salvação, a testemunhar juntos a dignidade moral e a liberdade autêntica da pessoa, “para que o mundo creia” (Jo 17, 21). Este mundo, onde vão desaparecendo progressivamente os pilares espirituais da existência humana, espera de nós um vigoroso testemunho cristão em todas as áreas da vida pessoal e social. Nestes tempos difíceis, o futuro da humanidade depende em grande parte da nossa capacidade conjunta de darmos testemunho do Espírito de verdade.
Testemunhas da verdade
29.       Neste corajoso testemunho da verdade de Deus e da Boa Nova salvífica, possa sustentar-nos o Homem-Deus Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador, que nos fortifica espiritualmente com a sua promessa infalível: “Não temais, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o Reino” (Lc 12, 32).
Cristo é fonte de alegria e de esperança. A fé n’Ele transfigura a vida humana, enche-a de significado. Disto mesmo puderam convencer-se, por experiência própria, todos aqueles a quem é possível aplicar as palavras do apóstolo Pedro: “Vós que outrora não éreis um povo, mas sois agora povo de Deus, vós que não tínheis alcançado misericórdia e agora alcançastes misericórdia” (1 Ped 2, 10).
30.       Cheios de gratidão pelo dom da compreensão recíproca manifestada durante o nosso encontro, levantamos os olhos agradecidos para a Santíssima Mãe de Deus, invocando-A com as palavras desta antiga oração: “Sob o abrigo da vossa misericórdia, nos refugiamos, Santa Mãe de Deus”. Que a bem-aventurada Virgem Maria, com a sua intercessão, encoraje à fraternidade aqueles que A veneram, para que, no tempo estabelecido por Deus, sejam reunidos em paz e harmonia num só povo de Deus para glória da Santíssima e indivisível Trindade!
Havana (Cuba), 12 de fevereiro de 2016.
FONTE: RADIO VATICANO