Artigo publicado em 2011 e continua atualissimo.
- Por Joao Paulo Cunha, editor de Cultura do Jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 19/11/2011.
As palavras não são isentas, trazem carga emocional e política, traduzem visões de mundo. O recente movimento Occupy Wall Street parece ter dado novo sentido à palavra ocupação. Se num país, que sempre foi modelo ideológico de liberdade, a população – principalmente os jovens – está nas ruas ocupando praças e centros simbólicos do poder econômico, há algo que precisa ser melhor entendido. Em primeiro lugar, a liberdade que serve aos propósitos econômicos não tem a mesma tradução quando se trata de manifestação política. Além disso, a ausência de padrão de convivência com as pessoas na rua mostra que a dimensão pública não é uma experiência corrente na sociedade em que privatizar é um juízo moral positivo. Por fim, a exposição pública de discordância deixa de ser pontual para ir ao coração do sistema. Não dá mais para esperar o show da próxima eleição presidencial.
- Por Joao Paulo Cunha, editor de Cultura do Jornal Estado de Minas, Caderno Pensar, 19/11/2011.
As palavras não são isentas, trazem carga emocional e política, traduzem visões de mundo. O recente movimento Occupy Wall Street parece ter dado novo sentido à palavra ocupação. Se num país, que sempre foi modelo ideológico de liberdade, a população – principalmente os jovens – está nas ruas ocupando praças e centros simbólicos do poder econômico, há algo que precisa ser melhor entendido. Em primeiro lugar, a liberdade que serve aos propósitos econômicos não tem a mesma tradução quando se trata de manifestação política. Além disso, a ausência de padrão de convivência com as pessoas na rua mostra que a dimensão pública não é uma experiência corrente na sociedade em que privatizar é um juízo moral positivo. Por fim, a exposição pública de discordância deixa de ser pontual para ir ao coração do sistema. Não dá mais para esperar o show da próxima eleição presidencial.
O que os jovens de várias partes do mundo têm mostrado é que a ilusão do futuro ruiu. A crise nas economias ricas, com a diminuição do crescimento, parece mostrar que as bases da economia mundial não se sustentam mais. As pessoas perceberam que, mesmo que façam tudo como manda o figurino, nada está garantido. A mutipolarização do mundo impede que as dificuldades sejam hoje exportadas. Durante décadas, as regras do mercado não davam aos países periféricos condições de igualdade, o que fazia deles válvulas de escape dos distúrbios centrais. Hoje, com mercados internos fortes e alianças que passam ao largo das grandes economias, os países pobres e em desenvolvimento precisam se dar conta das próprias expectativas de crescimento e liberdade.
Outro fato que vai se tornando cada vez menos aceito é a tradução financeira da economia, como se a garantia a ser dada aos bancos e instituições insolventes fosse indispensável à saúde de todo o sistema. Bancos passaram a ser vistos como de fato são: vendedores de crédito e cobradores de juros. E, muitas vezes, incompetentes, quando não criminosos, nas duas operações: vendem o que não possuem e cobram além do razoável. Se por muito tempo as pessoas projetaram pôr o dinheiro para trabalhar a seu favor, hoje sabem que nada substitui a produção. Não é à toa que o emprego e a educação se tornaram os grandes ativos de confiabilidade no mundo líquido.
Outro mito que cai com a crise da economia é a atração magnética entre democracia e desenvolvimento. O mundo ocidental patrocinou as mais cruentas ditaduras contemporâneas para preservar sua estrutura de ganhos. Escravizou populações para preservar o suprimento de petróleo e, quando a crise extrapolou a dimensão meramente energética e se revelou na contramão de movimentos internos de liberdade, comemorou a libertação de “seus” ditadores e ainda inventou que tudo só foi possível por causa do Facebook. As democracias ocidentais estão na origem das ditaduras do Oriente Médio e Norte da África, e não no seu desenlace.
Quando os jovens americanos e europeus ocupam praças e ruas estão dando um passo à frente, mas não inovam em termos de atitude política. Ao sul do planeta, as ocupações são estratégias de sobrevivência e contestação ao modelo de concentração econômica. E não é de hoje. Por isso é interessante entender a dialética que parece opor palavras como ocupação e invasão. Atrás delas estão visões de mundo e interesses que apontam para formas também diferenciadas de se praticar a política e o protagonismo social. Entre os gringos de Nova York e os sem casa de Belo Horizonte, há um mesmo gesto de contestação: só a representação não basta. No limite, a possibilidade de conviver com a participação direta é o índice de democracia de um Estado liberal.
Sem tudo
No Brasil, o significante “invasão” se relaciona com o crime, com o desrespeito à propriedade privada, com a apropriação de bem demarcado em sua posse e sentido econômico. Os invasores tomam o que não é deles, destroem a produção, impedem a aplicação da lei e subvertem a noção de Justiça. O invasor é elemento que desestrutura aquilo que é funcional: derruba pés de laranja, quer trocar milhões de toneladas de grãos por uma feira de produtos orgânicos, estabelece padrões de produção que não atendem às necessidades externas.
A força da palavra invasão encontra, no entanto, limites na própria interpretação da lei, que defende, constitucionalmente (portanto acima de qualquer norma inferior) o valor social da propriedade. Além disso, a produção extensiva de carne e grãos no Brasil conflita não apenas com a lógica da necessidade de alimentar a população (o que a soja transgênica não faz, já que ninguém se alimenta de soja, a não ser carneiros e porcos), mas com a própria ciência contemporânea e as diretrizes da sustentabilidade.
Foi em razão disso que os movimentos sociais, preocupados com a dimensão simbólica das palavras e de sua tradução na vida social, assumiram a palavra “ocupação”, em lugar de invasão. Quem ocupa tem como fundamento de seu ato a legalidade, a moralidade, a ciência e a política, todas no sentido mais alto: legalidade constitucional, moralidade pública, ciência contemporânea e política como expressão da liberdade, inclusive com a capacidade de assumir formas novas de relacionamento e prestação de serviços (como a educação, que são prioridade nos assentamentos). Os sem terra brasileiros já fazem o movimento “ocupe” há muitos anos e, não fosse isso, a estrutura inflexível das relações no campo não teria se mexido.
Em nossa cidade, Belo Horizonte, um movimento de ocupação que merece destaque. Na região da Nova Pampulha, o Dandara reúne cerca de 4 mil pessoas, que vivem numa ocupação “rururbana”, em área desprezada há 40 anos, e que só agora vem despertando o interesse de uma construtora que reclama sua posse, depois de deixar a área abandonada e sem qualquer forma de proteção. Organizada, com vários projetos fundados na solidariedade, a comunidade aponta para o déficit habitacional da cidade, hoje em torno de 200 mil unidades (cerca de 55 mil famílias). A cidade tem 80 mil imóveis desocupados. A desapropriação do Dandara custa menos que um décimo das obras da Copa. E não deveria custar nada. O movimento vem sendo tratado com violência pelas autoridades, sendo sujeito de estratégias recorrentes de ameaça de uso da força.
Uma das originalidades da ocupação é a união dos princípios das reformas agrária e urbana na mesma área. Hoje, a reforma agrária vai além da luta pela posse da terra para reivindicar novo modelo de produção de alimentos, sustentável e ecológico, apontando para bandeiras universais. Do mesmo modo, os movimentos por moradia despertaram para a crítica da configuração urbana e de suas estratégias de especulação. Ao recorrer a um projeto coletivo, com sustentação na economia solidária e na relação orgânica com outras formas de exercício da cidadania (inclusive na cultura), a ocupação Dandara pode dar lições aos bem-intecionados jovens de Wall Street.
As famílias na ocupação Dandara sabem o que querem, mas vivem em situação de penúria. O que parece que anda faltando é ocupação das consciências dos responsáveis pela questão, como a Câmara e a prefeitura da cidade, solertes em debater a verticalização mas cegas com o que anda ao rés do chão.
*João Paulo Cunha, editor de Cultura do Jornal Estado de Minas.
- Enviada por Gilvander Moreira, frei Carmelita.
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