sábado, 31 de agosto de 2013

Fazenda Boa Esperança: importante monumento histórico e paisagístico


A Fazenda Boa Esperança, no município de Belo Vale, possui um valor singular para a reflexão sobre a história das políticas de patrimônio histórico. 

Tendo pertencido ao Barão do Paraopeba, importante figura política da então Província de Minas Gerais, a fazenda pertence, desde a década de 70, ao Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha/MG) que, logo depois da aquisição, efetuou o tombamento do Conjunto paisagístico, artístico e histórico da Fazenda da Boa Esperança.

FOTO: Izabel Chumbinho
Detalhe da pintura parietal na capela atribuída ao Mestre Ataíde
Detalhe da pintura parietal na capela atribuída ao Mestre Ataíde


Uma das mais antigas fazendas do Brasil Império, a edificação foi construída com influências arquitetônicas do Norte de Portugal. Uma obra-prima é a pequena capela localizada à esquerda da varanda de entrada da sede. Nela estão belos trabalhos atribuídos ao Mestre Athayde. Também chamam atenção as ruínas da antiga senzala, próximas ao casarão.

A sede da fazenda foi tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (hoje Iphan), ainda nos anos de 1950, com pareceres de ninguém menos do que o arquiteto Lúcio Costa, o historiador Salomão de Vasconcelos e o escritor Carlos Drummond de Andrade. A inscrição no seu Livro de Tombo de Belas Artes é de 27 de agosto de 1959 e a justificativa do tombamento remetia-se sobretudo ao valor “dos trabalhos de talha dourada e valiosíssimos painéis, nos tetos e nas paredes laterais” presentes na sua pequena capela e  atribuídos ao artista Manoel da Costa Ataíde (Citação retirada do Parecer de Tombamento da Fazenda Boa Esperança, de 1 de julho de 1974).

Tratava-se, portanto, de um tombamento diverso ao feito pelo Iepha posteriormente (em fevereiro de 1975), que considerava o Conjunto paisagístico, artístico e histórico da Fazenda da Boa Esperança. Nas palavras do então diretor do Instituto, Luciano Amedée Peret o tombamento abrangia “não só a sede, mas também todos os seus anexos e suas terras, onde há pequenas matas, cursos d água e cachoeiras, procurando assim manter o seu aspecto paisagístico, além de conservar suas condições ecológicas” (Estado de Minas, 1º de dezembro de 1974).
FOTO: Izabel Chumbinho
Vista panorâmica do jardim interno

Uma fazenda, dois tombamentos diversos. Um deles, federal, apenas da sede, e voltado, sobretudo, para o valor artístico dos elementos presentes em sua capela. O outro tombamento, estadual, estende para outro valor: o da paisagem e da natureza. 

Do site: www.iepha.mg.gov.br


foto: Glauco Umbelino

Situada de frente para a Serra, ao leste, onde na entrada uma varanda larga e artística acolhe os primeiros raios de sol matinal, a sede da Fazenda Boa Esperança conseguiu sobreviver, resistindo ao tempo e às intempéries, guardando os indícios da opulência de outrora e mantendo o caráter do tratamento adotado para as construções mineiras da época. 

Em seu pátio, logo à frente bem plantadas as centenárias e silenciosas sapucaieiras escutam  o tempo passar. 

¨CULTURA E NATUREZA NÃO ESTÃO DISTANTES, PAISAGEM CULTURA e PAISAGEM NATURAL SE CONFUNDEM.
 CONCEITO JÁ COMPREENDIDO NA DÉCADA DE 70, POR LUCIANO AMÉDÉE PÉRET. O TOMBAMENTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO, CULTURAL E NATURAL DA FAZENDA BOA ESPERANÇA É UM EXEMPLO INTERESSANTE¨.      

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quinta-feira, 29 de agosto de 2013

SEVERINAS : as novas mulheres do sertão


Titulares do Bolsa Família, as sertanejas estão começando a transformar seus papéis na família e na sociedade do interior do Piauí e se libertando da servidão ao homem, milenar como a miséria.

Por  ELIZA CAPAI, da Agência Pública.

“Cada um tem que saber o seu lugar: a mulher tem qualidade inferior, o homem tem qualidade superior.” É bem assim que fala, sem rodeios, um dos homens mais respeitados do município de Guaribas, no sertão do Piauí, pai de sete filhos (seis mulheres e um homem). “O homem é o gigante da mulher”, completa “Chefe”, como é conhecido Horácio Alves da Rocha na comunidade.
Para chegar a Guaribas são dez horas desde a capital, Teresina, até a cidadezinha de Caracol. Dali, 40 minutos de estrada de terra cercada de caatinga até o jovem município, fundado em 1997. Em 2003, Guaribas foi escolhida como piloto do programa Fome Zero. Tinha então o segundo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil, 0,214 – para efeito de comparação, o país com pior IDH do mundo é Burundi, na África com índice 0,355. Hoje, Guaribas tem 4.401 habitantes, 87% deles recebendo o Bolsa Família. São 933 famílias beneficiadas, com renda média mensal de R$ 182. O IDH saltou para 0,508.

Em todo o Brasil, o Bolsa Família atende a 13,7 milhões de famílias – sendo que 93,2% dos cartões estão em nome de mulheres. São elas que recebem e distribuem a renda familiar.

“Eu vivi a escravidão”, diz Luzia Alves Rocha, 31 anos, uma das seis filhas de Chefe. Aos três meses, muito doente, ela foi dada pelo pai para os avós criarem. Quando eles morreram, uma tia assumiu a menina. “Achei que ela não ia aguentar aquela vida de roça: era vida aquilo?”, pergunta a tia Delci. Luzia trabalhou na roça, passou fome, perdeu madrugadas subindo a serra para talvez voltar com água na cabaça. “Quando tinha comida a gente comia, se não, dormia igual passarinho”, diz. Trabalhava sem salário, sem nenhum direito trabalhista, sem saber como seria a vida se a seca não passasse e a chuva não regasse o feijão e a mandioca. Era “a escravidão”.

Quando a seca piorou, Luzia pensou em migrar para São Paulo. Foi então que chegou o programa social do governo: “Com esta ajudinha já consigo levar”, diz. Luzia decidiu ficar em Guaribas. Os filhos estudam. O marido e ela cuidam da roça.

“A libertação da ‘ditadura da miséria’ e do controle masculino familiar amplo sobre seus destinos permite às mulheres um mínimo de programação da própria vida e, nesta medida, possibilita-lhes o começo da autonomização de sua vida moral. O último elemento é fundante da cidadania”, analisam os pesquisadores Walquiria Leão Rego e Alessandro Pinzani, da Universidade de Campinas e da Universidade Federal de Santa Catarinas, no livro Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e cidadania. Durante a pesquisa, eles ouviram beneficiários do programa observando as transformações decorrentes do Bolsa-Família – em especial na vida das mulheres. Chegaram à conclusão que a mudança é grande: “Quando você tem um patamar de igualdade mínimo, você muda a sociedade. Claro que as coisas não são automáticas. Isto não pode ser posto como salvação da nação, mas é um começo.”

Luzia conseguiu realizar o sonho de diversas das mulheres ouvidas pela socióloga Walquiria Leão. Ela juntou R$ 50 e seguiu para o hospital da cidade vizinha, de São Raimundo Nonato para fazer laqueadura das trompas: “se tivesse mais filho a vida ia ser mais pior”. Segundo Walquíria, o desejo de controlar a natalidade foi manifestado por diversas das mulheres que ela entrevistou entre 2006 e 2011 em Alagoas, Vale do Jequitinhonha, Piauí, Maranhão e Pernambuco.

Serena, uma das filhas de Luzia, tem 8 anos e está na terceira série. Ela ajuda a arrumar a casa, já sabe cozinhar, ajuda na roça. Mas não perde suas aulas. Logo depois de cantar o alfabeto e os números, diz que quer ser “advogada e médica”. Quando perguntada sobre casamento, a pequena afirma, com a mão na cintura: “eu não vou casar, vou ser sol-tei-ra…”, diz, demorando nas sílabas.

Em maio o valor do Bolsa Família de Luzia saltou de R$ 70 reais para R$ 212. A mãe comemora: “Agora já posso comprar as coisas para minha filha: a sandália dela arrebentou e pude comprar outra”. No pé da menima, o calçado que custou R$ 7,50. “Primeiro comprei para a menina, num outro mês compro pra mim”, explica Luzia, com os pés descalços.

"MINHA SINA"
Do outro lado do vale que liga o centro de Guaribas ao bairro Fazenda, Norma Alves Duarte, 44 anos, vive numa casa de dois quartos. Na sala, paredes mal rebocadas mostram as marcas da massa corrida. No canto, um pequeno móvel com uma TV. A vida toda ela ajudou a mãe doente, quase não estudou – cursou até a segunda série. Como todas as mulheres dali, as atividades de criança incluíam colher feijão, pegar lenha e buscar água no olho d’água, que fica a dois quilômetros.

Norma tem 12 irmãos, 2 filhos e vive com o segundo marido – o primeiro a abandonou depois de 20 dias. “Era pau e cachaça. Aí depois arrumei o pai destes meninos. É bom mas é doido, vaidoso o velho, bebedor… Ele é bruto demais, ignorante que só. Fazer o que né? Destino é destino: quem traz uma sina tem que cumprir.”

“Esta palavra, sina, faz parte do que nós chamamos de cultura da resignação e acho que ela foi de fato rompida com o Bolsa Familia”, diz a socióloga Walquiria Leão.

No início do programa, Norma ganhava R$ 42 com seu cartão. Agora “tira” R$ 200. “Mudou, porque eu pego meu dinheirinho, compro minhas coisas, assim mesmo ele (o marido) xingando. Eu não dou ele, ele tem o dele. Ele não me dá nenhum real, bota para comer dentro de casa mas não me dá nem um real, nem dez centavos.” Para Walquíria Leão, “a renda liberta a pessoa de relações privadas opressoras e de controles pessoais sobre sua intimidade, pois a conforma em uma função social determinada, permitindo-lhe mais movimentação e, portanto, novas experiências”.

MAIS DIVÓRCIOS
Ao saírem da miséria, “da espera resignada pela morte por fome e doenças ligadas à pobreza”, nas palavras de Walquiria, estas mulheres começam a protagonizar suas vidas.

No vilarejo de Cajueiro, a uma hora do centro de Guaribas por uma estrada de terra esburacada, a água ainda não chegou às casas. Elenilde Ribeiro, 39 anos, caminha com a sobrinha por um areial com a lata na cabeça, outra na mão. É ela quem cria a menina. “Não quero que ela sofra como eu sofri”, diz. Chegando na casa, o capricho se mostra nos paninhos embaixo de copos metálicos, na estante com fotos de família, o brasão do Palmeiras, e um gato de louça ao lado da imagem de Jesus. Do lado de fora, o banheiro – onde se usa caneca e penico –, um pátio bem varrido, uma horta suspensa, e uma pilha de lenha que Elenilde mesma coleta e quebra, apontando: “está aqui meu botijão de gás”.

Os olhos de Elenilde marejam quando conta ter sido abandonada pelo marido há treze anos, mas seu tom de voz muda ao falar do papel da renda em sua vida. “Tiro R$ 134 no meu cartão Bolsa Família mas para mim está sendo mil. Porque com este dinheirinho eu tenho o dinheiro certo para comprar (na venda) e o dono me confia. E eu sei que com isso, com ele me confiar, eu já estou comendo a mais”, explica. Elenilde também se livrou de trabalhar na roça dos outros em troca de uma diária de R$ 5. “Eu quando pego o meu dinheiro (do cartão) vou na venda, pago a conta mais velha e espero pela vontade do vindião, aí ele vai e me franqueia… E eu vou e compro de novo”. Segundo Walquíria Leão, isso tem ajudado a mulher a conquistar um novo papel na comunidade. “A experiência anterior de vida era sempre de ser desrespeitada, desconsiderada porque ela não tinha dinheiro”.

No final da mesma rua, Domingas Pereira da Lima, 28 anos, não se arrepende de ter abandonado o marido. “Ele ficava namorando com uma e com outra e eu num resisti, vim embora”. Prendendo o choro, ela continua: “Deixava eu com as crianças e se tacava no meio do mundo. A vida não é fácil mas vou levando a vida devagarzinho aqui.” Desde então, Domingas cuida dos quatro filhos com o apoio das irmãs e da mãe.

Em 2003, quando chegou o Fome Zero, foram solicitados 993 divórcios no Piauí. Em 2011 o número saltou para 1.689 casos. Dos casos não consensuais, 134 foram requeridos por mulheres em 2003; em 2011 esse número saltou para 413 – um aumento de 308%.

Ainda assim, na pequena Guaribas, a mulher ficar presa em casa em dias de festa, o alcoolismo e a infidelidade masculina são histórias contadas com naturalidade. “Vixi, aqui se conta nos dedos as mulheres que não apanham do marido”, é comum as mulheres dizerem.

Na delegacia da cidadezinha, o delegado explica que por ali o clima é sempre “muito tranquilo, sem nenhuma ocorrência. Só umas brigas de casal, coisa que a gente aconselha e eles voltam” diz.

Mirele Aline Alves da Rocha é uma das que se conta nos dedos. Aos 18 anos, a bonita jovem explica: “Apesar da minha idade já ser avançada para os daqui, eu não estou nem aí para o que eles falam. Eu quero é estudar”. A maioria das amigas se casaram aos 13 anos. Já Mirele, soteira, cursa o terceiro ano do Ensino Médio na escola estadual de Guaribas, onde vive com a tia – os pais moram no município de Cajueiro. O cartão do Bolsa Família está no nome da mãe, que recebe R$ 102 por Mirele e pelo caçula de nove anos. Ambos estudam. “Eu vejo a realidade da minha mãe e não quero seguir pelo mesmo caminho. Eu quero estudar para ter um futuro, para ser independente, para não ficar dependendo de um homem”, decreta a jovem.

No primeiro bimestre de 2013, em Guaribas, a frequência escolar atingiu o percentual de 96,23%, para crianças e adolescentes entre 6 e 15 anos – o equivalente a 869 alunos – e 82,29% para os jovens entre 16 e 17 anos, de um total de 175.

Mirele vai fazer o Enem e “ver o que dá”. Para cursar faculdade ela terá que sair de Guaribas mas planeja se graduar e voltar: “Gosto mesmo é daqui”.

“Nunca é demais lembrar que nossa pobreza não é um fato contingente, mas deita raízes profundas na nossa história e na forma de conduzir politicamente as decisões estatais”, avalia Walquiria. “O Bolsa Família deveria se transformar em política publica, não mais política de um governo”. “É um processo, um avanço que mal começou. E ainda é muito insuficiente. Mas quem narra uma história tem que ser capaz de narrar todos os passos desta história”, finaliza.

Eliza Capai é documentarista independente, autora do filme Tão Longe é Aqui. Esta reportagem foi realizada através do Concurso de Microbolsas de Reportagem da Pública.




quarta-feira, 28 de agosto de 2013

¨MAIS MÉDICOS¨: UMA VEREDA PARA OS NOSSOS GRANDES SERTÔES

A opinião do médico sanitarista Reinaldo Guimarães sobre o Mais Médico:
Do site: cebes.org.br
“Mais Médicos”: uma vereda para os nossos grandes sertões
De Reinaldo Guimarães*

O programa “Mais Médicos” está focado na necessidade de colocar médicos onde não há médicos e onde médicos não querem ir. O “Mais Médicos” não está interessado em atender as expectativas da corporação e, principalmente, de seus representantes sindicais.

O “Mais Médicos” não está fazendo competição com o mercado de trabalho dos médicos brasileiros. Antes de importar médicos, houve uma chamada para médicos brasileiros que, lamentavelmente, não prosperou. Em parte, devido a uma feroz campanha contra o programa liderada pelos líderes corporativos sindicais e de vários Conselhos Regionais de Medicina.

Após a frustração da chamada de médicos brasileiros, o programa abriu uma chamada internacional que, apesar de ter atraído médicos de vários países, não logrou ainda atingir as metas estabelecidas pelo Ministério da Saúde. Foi então que, com a interveniência da Organização Panamericana da Saúde, foi assinado o convênio com Cuba.

Se a campanha contra o programa já era feroz, a partir daí os sindicalistas médicos entraram numa escalada de insanidades que atingiu o seu ápice com as declarações do presidente do CRM de Minas Gerais. Disse ele que, caso tenha notícia de algum médico em exercício com diploma obtido no exterior e sem revalidação, acionará o Ministério Público do Trabalho e a Polícia Federal para impedi-lo. Fora de si (imagino eu), disse que orientará os médicos mineiros a não cooperarem com os “sem Revalida” cubanos, caso haja algum pedido de ajuda técnica por parte desses. No meu ponto de vista, caso essa afirmativa de seu presidente seja confirmada, o CRM de Minas está sob suspeição para julgar quaisquer transgressões éticas vindouras, posto que o seu presidente está a instruir os médicos mineiros a discriminar colegas, infringindo o Código de Ética Médica. Este, em seu capítulo I (princípios fundamentais), reza que “A Medicina  é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e será exercida sem discriminação de nenhuma natureza” (grifo meu).

Os representantes corporativos esbravejam: sem o Revalida, não dá! Digo eu: se a banca examinadora não quiser, o Dr. Pitanguyou ou Dr. Jatene não serão aprovados num exame para revalidação de diploma. Não é a toa que apenas 10% dos que tentaram revalidar seus diplomas obtidos no exterior, desde a instituição do teste, conseguiram a revalidação. Com o estado de espírito que a maioria dos meus colegas têm apresentado com relação ao “Mais Médicos”, seria uma carnificina.

No dia 23 de agosto, um artigo na Folha de São Paulo dizia que médicos são produzidos em série em Cuba, para exportação. O tom era discretamente derrisório. É verdade, médicos são produzidos em série e esta é, há décadas, a principal ferramenta para a projeção internacional de Cuba. Qual o problema? Há quem exporte soldados e armas e guerras, há quem exporte cocaína e por aí vai. Cuba exporta médicos. Nesse caso, trata-se do que, em diplomacia, se chama soft power. Tão legítimo quanto, por exemplo, a exportação de programas de ajuda realizada há décadas pela agência estatal de cooperação norte-americana USAID.

Cuba produz médicos “em série”, também porque, graças ao bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos e, mais tarde, com o colapso soviético, necessita, para subsistir, de divisas. O exercício do soft power médico contribui também para que entrem divisas em Cuba. Pessoalmente, não me sinto confortável em apoiar que a remuneração de um profissional seja, em parte, apropriada pelo Estado. Mas o meu desconforto diminui quando me dou conta de quase 40% dos meus rendimentos são religiosamente apropriados pelo Estado brasileiro na forma de impostos variados. Parte desses, na fonte, como é o caso dos médicos cubanos que um colunista hidrófobo da revista Veja denominou de “escravos do Partido Comunista cubano”.

Outro comentário lido sobre os médicos cubanos, “produzidos em série”, é que eles não prestam. Sua formação é precária e eivada de ideologia. Não é o que a opinião internacional informada sustenta (tomei como tal o American Journal of Public Health, o Lancet e uma carta publicada em Science) (1)(2)(3)A conclusão do artigo de Cooper et. al. sobre a prevenção e controle das doenças cardiovasculares em Cuba vale a pena ser transcrita: “Where as the social and political structure of societies can under go rapid and dramatic change, such cultural norms as food, music, and religion are sometimes more resilient. The goal of socialist revolutions in poor undeveloped countries has been first and foremost to catch up with the industrial economies of the world. In public health, this has meant almost exclusively the elimination of infectious diseases and the assurance of low death rates in childhood. Cuba stands as the prime example of the unequaled success of the socialist project in achieving that goal. Within that tradition, however, the need to aggressively intervene against engrained cultural patterns, particularly those related to consumption, was something of a foreign idea. A fundamental rethinking of this strategy will be required to take full advantage of the new knowledge in prevention science that could now make an important contribution to the future health of the Cuban people. The improvements in quality and duration of life in Cuba over the last 50 years have been astounding and set the standard for poor countries around the world. These achievements—for example, eliminating polio in 1962, two decades ahead of the United States—are evidence of the remarkable goals Cuba is capable of achieving. Similar leadership in CVD prevention could make enormously valuable contributions to the worldwide campaign to control what has already become the most severe epidemic ever faced by humanity. The Cuban experience thus demonstrates that control of CVD in non industrialized countries is by no means impossible, and it highlights the critical importance of population-based prevention strategies” (4).

Acredito que os médicos cubanos talvez não sejam peritos em “procedimentos” de última geração - nem os realmente úteis, nem os inúteis ou francamente prejudiciais. Entretanto, desconfio que a maior parte dos médicos brasileiros também não seja, embora atualmente talvez almejem sê-lo. Mas os médicos cubanos não estão entre nós como “procedimentólogos”, mas como profissionais no campo da atenção primária (promoção, prevenção e cuidados básicos de saúde). E, nesse terreno, creio que eles têm muito a nos ensinar. Aliás, de acordo com o presidente Barack Obama, têm a ensinar também aos médicos norte-americanos (“U.S. President Barack Obama hasacknowledgedthatthe United Statescouldlearn from Cuba's medical foreign aidprogram”).

A fonte de uma das maiores frustrações (e de aprendizado) dos especialistas brasileiros no terreno da educação e do trabalho em saúde foi a evidência de que reformas curriculares não mudam o mercado de trabalho e que o caminho de ajustar a formação médica às necessidades de saúde é o inverso. É a mudança do mercado que será capaz de ajustar os currículos. Se tomarmos a atual conformação do mercado médico brasileiro, com a deterioração paulatina e consentida do SUS e a expansão selvagem do sistema suplementar, concluiremos que a formação médica entre nós decididamente não vai ao encontro das necessidades de saúde, muito pelo contrário. Não foi por outra razão que os médicos brasileiros não atenderam ao chamado do “Mais Médicos”. A campanha dos líderes corporativos contra o programa, nesse sentido, interpreta corretamente os desejos da maioria dos nossos médicos, em particular os mais jovens.

Esta é a razão da convocação dos médicos estrangeiros e, em particular, dos cubanos que, pelas razões que expressei no início desse texto, parecem estar dispostos a enfrentar os desafios médico-sanitários do Brasil profundo. Pode vir a ser um bom exemplo ao mercado.

Em 1997, uma equipe liderada por Maria Helena Machado concluiu e publicou uma pesquisa sobre os médicos brasileiros. O panorama que nela se vislumbra permanece atual, a despeito de terem se passado 16 anos. A rigor, as tintas com que Machado e sua equipe descrevem a categoria médica brasileira de então devem ser hoje bastante mais carregadas. Uma cópia do livro pode ser encontrada em http://static.scielo.org/scielobooks/bm9qp/pdf/machado-9788575412695.pdf. A leitura desse clássico me parece indispensável para compreender os dilemas dos médicos e seus representantes corporativos frente ao “Mais Médicos”.

Julie Feinsilver é uma socióloga atualmente na American University. Esteve no Brasil como consultora da presidência da Fiocruz em 1996. Nos últimos 20 anos vem estudando a diplomacia médica cubana. Em 2010, publicou um artigo na revista CubanStudies (5) que fornece uma visão abrangente sobre a ação de Cuba nesse terreno durante os primeiros 50 anos da revolução cubana. O centro de sua argumentação se localiza no balanço entre a solidariedade e o pragmatismo como vetores da atuação internacional de Cuba no campo da saúde. Creio ser uma leitura essencial para compreender esse tema e uma cópia de seu trabalho pode ser encontrada em:http://www.academia.edu/1139326/Fifty_Years_of_Cubas_Medical_Diplomacy_From_Idealism_to_Pragmatism.

* - Médico Sanitarista
Notas

(1) Manuel Franco, Richard Cooper, Pedro Orduñez - Making Sure Public Health Policies Work. SCIENCE, Vol 311 www.sciencemag.org.  24 February 2006, p. 1098 (letters).
(2) R. S. Cooper, P. Orduñez, M. D. I. Ferrer, J. L. B. Munoz, A., Espinosa-Brito - Cardiovascular Disease and Associated Risk Factors in Cuba: Prospects for Prevention and Control. http://ajph.aphapublications.org/doi/abs/10.2105/AJPH.2004.051417, Am. J. Public Health 96, 94 (2006).
(3) Wakai S. - Mobilization of Cuban doctors in developing countries. Lancet 2002: 360;92

(4) Tradução: “Onde a estrutura social e política das sociedades pode ser afetada por mudanças rápidas e dramáticas, tais normas culturais como alimentos, música e religião são, por vezes, mais resistentes. O objetivo de revoluções socialistas em países subdesenvolvidos pobres tem acontecido em primeiro lugar para acompanhar as economias industriais do mundo. Na saúde pública, isso significa quase que exclusivamente a eliminação de doenças infecciosas e a garantia de baixas taxas de mortalidade na infância. Cuba permanece como o principal exemplo do sucesso inigualável do projeto socialista em alcançar esse objetivo. Dentro dessa tradição, no entanto, a necessidade de intervir de forma agressiva contra padrões culturais arraigadas, particularmente aqueles relacionados ao consumo, era algo de uma ideia estrangeira. Um repensar fundamental desta estratégia será obrigatório para se tirar o máximo proveito dos novos conhecimentos em ciência de prevenção que poderiam agora fazer uma contribuição importante para o futuro da saúde do povo cubano. As melhorias na qualidade e na duração da vida em Cuba ao longo dos últimos 50 anos têm sido surpreendentes e definem o padrão para os países pobres ao redor do mundo. Estas conquistas, por exemplo, a eliminação da poliomielite em 1962, duas décadas à frente dos Estados Unidos, são a prova dos objetivos notáveis que Cuba é capaz de alcançar. Liderança semelhante na prevenção de doenças cardiovasculares poderia fazer contribuições extremamente valiosas para a campanha mundial para controlar o que já se tornou a epidemia mais grave já enfrentada pela humanidade. A experiência cubana demonstra, portanto, que o controle de doenças cardiovasculares em países não industrializados é absolutamente impossível, e destaca a importância fundamental das estratégias de prevenção baseadas na população".

(5) Julie M. Feinsilver -Fifty Years of Cuba's Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism. Cuban Studies, Volume 41, 2010, pp. 85-104

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Há 14 anos, partia Dom Helder


A história do Brasil está recheada de mártires. São eles que, a cada dia, lutam pelos direitos humanos, pela preservação do meio ambiente, pelo fim da opressão e da violência. E suas vidas são o próprio exemplo do ideal que defendem. Poderíamos ficar horas e gastar páginas citando o nome de cada um desses líderes. Mas, hoje, vamos relembrar o exemplo de vida e abnegação de Dom Hélder Câmara.

Quando morreu, em 1999, Dom Helder não era mais arcebispo de Olinda e Recife, posto que ocupou entre 1964 e 1985. Vivia nos fundos da Igreja da Fronteira, na capital pernambucana, cuidando da saúde. Na sexta-feira, dia de sua morte, ele havia passado várias horas ouvindo música. Na hora de dormir, balbuciou o que seriam suas últimas palavras: “Estou voltando à casa do Pai”. Três horas depois, sua vida silenciou.

Nascido na capital cearense, em 1909, entrou para o Seminário aos 14 anos. Oito anos depois foi ordenado sacerdote. Dom Helder foi ainda um dos fundadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), instituição que reúne os bispos da Igreja Católica no país e tem como objetivo dinamizar missões evangelizadoras.

Irrequieto e revolucionário, sempre atuou na defesa dos pobres e a favor das classes de trabalhadores menos reconhecidas. Foi o fundador da Legião Cearense do Trabalho e criou a Sindicalização Operária Feminina Católica, para defender os interesses de lavadeiras, empregadas domésticas e passadeiras. Também fundou a Cruzada São Sebastião, para atender favelados, e o Banco da Previdência, que atua junto àqueles que estão na faixa de pobreza extrema.

Dom Helder denunciou as torturas a presos políticos no Brasil e foi muito perseguido pela ditadura militar. Chegou a ser ameaçado de morte e teve sua residência, na Igreja das Fronteiras, metralhada. Em maio de 1969, o Padre Henrique Pereira Neto, seu colaborador na Arquidiocese de Olinda e Recife, foi torturado e morto por integrantes da força de repressão. E qualquer menção a Dom Hélder foi proibida nos meios de comunicação durante sete anos (1970-1977).

No entanto, após este período, veio o reconhecimento a todo o trabalho que Dom Helder afetuosamente desprendia aos mais necessitados. Foi o único brasileiro indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz. Foi um homem do tempo da esperança, símbolo da busca por uma melhor qualidade de vida para todos por meio de atitudes pacíficas. 
Em homenagem aos seus 104 anos de seu nascimento e 62 de sua consagração como bispo,  preparamos uma seleção de trechos e mensagens deste grande mártir de nosso tempo. Confira:  
Deus
"Nós temos desfigurado Deus, tornando-O a resposta às nossas ignorâncias, a compensação de nossas impotências, a consolação de nossas angústias, assim como os poderes terrenos se serviram Dele para justificar sua força, suas ambições."
Ser a Igreja
"Vocês me perguntam se não sou por acaso a árvore que esconde a floresta. Mas onde vocês vêem uma floresta de ditadores, de generais, de agressores que esmagam o homem em nome da civilização cristã, de bispos, padre e cristãos que se acumpliciam com eles, ou se mostra indiferentes diante de seus abusos, eu vejo uma floresta de homens e mulheres, de jovens de todas as idades que não aceitam e repudiam uma religião alienada e alienante. Que estão dispostos a dar suas vidas pela causa da liberação dos homens. Eles também são a Igreja.”
Pessoas
"As pessoas te pesam? Não as carregue nos ombros. Leva-as no coração."
Desafios
“Quando os problemas se tornam absurdos, os desafios se tornam apaixonantes.”
Mudança
"Feliz de quem entende que é preciso mudar muito para ser sempre o mesmo."
Egoísmo
"Para além, muito além dos egoísmos individuais, dos egoísmos de classe, dos egoísmos nacionais, é preciso abraçar, sorrir, trabalhar."
"O anti-amor é o egoísmo. É o fechamento em si que torna impossível qualquer encontro com quem quer que seja. Quem pensa e proclama que ama de mais, ama de menos."
"O egoísmo, que não é monopólio individual, nos conduz a tais absurdos que um dia, evidentemente, o homem compreenderá a necessidade de se libertar dele."
Esperança
“Um dos meus anseios de chegar ao infinito é a esperança de que, ao menos lá, as paralelas se encontrem.”
“Esperança é crer na aventura do amor, jogar nos homens, pular no escuro confiando em Deus.”
“Sem arriscar, não vivemos a esperança.”
"Que importa que eu seja uma choupana, se mora em meu barraco a Santíssima Trindade?."
Causa
"O segredo de ser jovem – mesmo quando os anos passam, deixando marcas no corpo – é ter uma causa a que dedicar a vida." 
Palavras
"Os homens gastam-se tanto em palavras que não conseguem entender o silêncio de Deus."
Pessoas racionais
"Tem pena, Senhor, tem carinho especial com as pessoas muito lógicas, muito práticas, muito realistas, que se irritam com quem crê em um cavalinho azul."
Graça
"É graça divina começar bem. Graça maior persistir na caminhada certa. Mas graça das graças é não desistir nunca."
Ajudar
"A maneira de ajudar os outros é provar-lhes que eles são capazes de pensar."
Pobres
"Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto porque eles são pobres, chamam-me de comunista."
Discordar
"Se discordas de mim, tu me enriqueces."
Amor
"O amor é o perfume das almas."
Trabalho
"Nenhum trabalho é indigno nas mãos do homem."
Comunismo
"Jamais tive qualquer esperança numa solução comunista para os problemas que afligem a humanidade. Não creio, porém, que o comunismo seja o perigo número um, pois antes dele estão a miséria e a injustiça, o desespero dos homens, nos quais as ilusórias promessas comunistas mergulham suas raízes."
Agricultura
"A agricultura está se industrializando por toda parte, inclusive no Brasil. Sucede, no entanto, que se tal industrialização é mal conduzida, seus resultados podem ser altamente danosos, criando problemas ecológicos, matando pessoas, deslocando ou eliminando populações inteiras."
Música e dança
"Deus colocou a noção de ritmo no interior dos homens, dos animais, das plantas e até mesmo das pedras. Um homem que anda, um pássaro que voa, uma folha que cai, são prenúncios da dança. No coração do átomo e no balé dos astros, o ritmo e a harmonia foram plantados pelo nosso Criador e Pai. Escutar música e apreciar a dança equivalem a  uma verdadeira prece."
Sociedades multinacionais
"Elas são empresas onde o homem não conta, a não ser pelo que possa produzir."
Política
"A política é uma atividade muito importante. E bem sei que o amor e a justiça, como descritos no Evangelho, não passarão das palavras aos gestos a não ser por meio de opções e atuações políticas."
Ingenuidade
"Não devemos ter medo de passar por ingênuos diante dos sábios e dos especialistas. O que são eles senão ingênuos que se dedicaram ao estudo e à pesquisa?"
Contradição
"Há muito tempo percebi que a contradição ajuda mais que o elogio. Ela encoraja a humildade, sem a qual não se dá um passo no caminho traçado por Nosso Senhor"
Sonhar junto
"Também não devemos ter medo de ser apenas uma gota d’água. É a reunião das gotas que põe em movimento os riachos, os rios, os oceanos. E temos de levar em conta o fato de que as nascentes não reúnem um grande número delas"

Adaptado de Luciano Lopes ( revistaecológico.com.br )