sábado, 11 de setembro de 2021

Dois setembros, por Wagner Braga Batista


 Artigo - Dois setembros

Wagner Braga Batista

 

Um ano após o atentado terrorista ao World Trade Center, efetuado em 11 setembro de 2001, onze diretores de filmes, de diversas partes do mundo e com diferentes convicções políticas, foram convidados a realizar peliculas com duração de 11 minutos, alusivas ao fato.  Integravam projeto coordenado pelo francês Alain Brigand e dispuseram de 400 mil dólares para realizar cada curta-metragem. (1)

 

Premiado no Festival de Cannes, o filme teve grande repercussão mundial.

 

Uma destas películas, dirigida pelo cineasta inglês Ken Loach, utiliza-se de contraponto crítico para abordar outro atentado.

 

Alude à ocorrencia de 11 de setembro de 1973, ao atentado contra a democracia perpetrado no Chile.

Consumado pela ação de correntes ultra-conservadoras, articuladas com as forças armadas chilenas, o golpe militar teve  apoio de empresas estrangeiras  vinculadas à prospecção mineral, Anaconda,  Kennecott Cooper e Serro, ao capital financeiro e ao setor de telefonia, a ITT, corporação americana.  

 

O golpe militar foi estrategicamente organizado pelos serviços de informação norteamericanos, pela Central Agency of Information- CIA, por meio do Projeto Fulbet ou Two Tracks, duas vias. Utilizava-se de duas estratégias. Uma  fomentava  o descrédito no governo socialista de Allende. Outra produzia desestabilização política e  economica por meio de  ações terroristas que implicavam em sequestros e assassinatos de personalidades identificadas com o governo de Allende, bem como na sabotagem, na destruição de infraestrutura produtiva e no  bloqueio de serviços públicos.

 

Estas ações atentatórias à humanidade são recuperadas pelo filme de Ken Loach, disponivel no endereço: http://www.youtube.com/watch?v=D6qcRMiYgo0.

 

Na oportunidade em que o Governo dos EUA sinaliza nova intervenção militar, desta feita na Siria, convém resgatar as consequencias destas ações veladas na América Latina no final do seculo XX.

Estas intervenções, ainda hoje, são omitidas por setores da imprensa que as acobertaram.

 

A mais drástica, talvez, tenha sido a derrubada do Governo de Salvador Allende, no Chile, instalando a ditadura do General Auguste Pinochet (1973-1990).

 

O golpe militar do Chile rompeu tradições políticas de um país latinoamericano que conseguira manter suas instituições democráticas,  apesar da forte pressão externa norteamericana. Num mundo polarizado pela guerra fria, o governo socialista de Salvador Allende colocava em risco a hegemonia exercida pelos Estados Unidos no continente.

 

A ascensão de Salvador Allende, por meio de eleição direta, também desmentia a tese que o socialismo só se viabilizaria por meio de ações de grupos minoritários.

 

A consolidação deste projeto democrático,  graças à continua  adesão eleitoral e ao aumento da simpatia pelo programa da Unidade Popular, bloco de sustentação política de Allende, colocava em xeque regimes ilegitimos e ditatoriais, no cone sul.

 

Deslocadas politicamente, as forças conservadoras chilenas tentaram de todos os modos barrar seus avanços democráticos. Sem aletrnativas convincentes, após sucessivas tentativas de golpe, lograram exito em 11 de setembro de 1973. Até seu desfecho, defrontaram-se com a resistencia  política pacifica, com ações residuais de auto-defesa de movimentos populares, com manifestações públicas numerosas, que chegaram a contar com 800 mil participantes, e com o voto de 44% dos eleitores chilenos para escolha de parlamentares  em março de 1973, emprestando apoio ao projeto socialista da Unidade Popular.

 

Quando as tentativas de intervenção branca no parlamento, dos atentados terroristas, realizados pela organização ultra-direitista Patria y Libertad, do lock out dos caminhoneiros, que privou a população do abastecimento de gêneros alimentícios, entre outras ações hediondas,  não obtiveram êxito, só restou a alternativa do golpe militar. Consumado em 11 de setembro de 1973.

 

O golpe militar no Chile integralizou o ciclo autoritário no Cone Sul. Todos seus países vivenciaram experiências ditatoriais com maior ou menor intensidade.

 

Sob este viés supõe-se que em alguns países as violações a direitos civis tenham sido mais contundentes. Que a repressão na Argentina tenha se mostrado mais drástica.

 

No Chile, a ação repressiva tornou-se mais intensa e abrangente, posto que  direcionada contra movimentos populares organizados, contra trabalhadores rurais, operários e comunidades marginalizadas,  que tentaram, a duras penas, assegurar direitos conquistados democraticamente.  (2)

 

Em outros países do Cone Sul, os aparelhos da repressão dos regimes ditatoriais foram seletivos. Atingiram principalmente opositores e organismos de resistencia política previamente identificados. No Chile, a repressão voltou-se contra a população. Massacrou contingentes populacionais sem oferecer registros precisos da amplitude destas ações hediondas.

 

Pouco antes do golpe militar, diante da radicalização política, Allende havia sancionado a Lei de Controle de Armas, que favoreceu o desarmamento de organismos de auto-defesa do movimento popular em comunidades favelizadas, no campo,em fábricas e nas universidades.  No entanto, não conseguiu desarmar a direita enquistada nas forças armadas com ramificações em entidades sediciosas encobertas por fachada legal. Não impediu a escalada do terrorismo praticada por estas organizações. À época estes organismos de direita, ariculados com a CIA, praticavam cerca de vinte atentados por dia.

 

O filme de Ken Loach utiliza-se do depoimento de um chileno exilado para reconstituir  a violação de direitos civis praticada pelo governo militar e seus organismos de repressão, especialmente a DINA- Direção de Inteligência Nacional.

 

Por meio de carta de condolencia dirigida a familiares de vítimas do atentado ao World Trade Center,  refere-se a dolorosos sentimentos comuns.  Reporta-se não apenas à morte de  entes queridos, mas às perdas de inestimável patrimônio democrático causadas por golpe de Estado. 

 

O exilado fala das conquistas chilenas e da insegurança. Do medo que os circundava. Da prepotência que se avizinhava. Que ameaçava subtrair direitos para fazer valer interesses mesquinhos: “ O mercado, o lucro tornavam-se mais importantes do que as deciões democráticas de nosso povo”. Assinalava uma dor comum que os unia. Uma dor legitimada por ações unilaterais e incongruentes. Pelo terror do golpe de Estado no Chile, apoiado pelo Governo norteamericano de Richard Nixon, e pelo atentado legitimado pelo fundamentalismo religioso. Islamico. Extende esta dor a outras gerações, aos seus filhos condenados a exilio involuntário. Reproduz, então, as palavras finais de Allende, quando estava sendo bombardeado pelos autores do golpe de Estado: Eles detêm a força, podem nos subjugar, mas não subjugarão o processo histórico.

 

Todos nossos atos estão comprometidos com a História. E é este o compromisso que invocamos. O compromisso com a memória e com o futuro, resguardados pela História.

 

A recuperação histórica impõe a condenação formal destes fatos como uma exigência democrática e ética. Como uma conquista da consciência democrática restaurada pelo povo do Chile e de outros países da América Latina. Impõe a condenação histórica dos que praticaram crimes contra a democracia e contra a humanidade.

 

A História nos remete à formação do aparelho repressivo destinado a eliminar conquistas democráticas do povo chileno e de todos aqueles que tentassem preservá-las.

 

O comando deste aparato, centrado na DINA, foi entregue ao coronel Manuel Contreras.

A sistemática violação de direitos civis se beneficiou da ação de militares chilenos treinados na Escuela das Americas, que disseminou o uso da tortura na América Latina, de agentes norteamericanos, entre os quais Michael Townley, que participou dos assassinatos do General Carlos Pratts, em 1974, em Buenos Aires, e do ex-Senador Orlando Letelier, em 1976, em Washington.

 

A Escola das Américas, criada em 1946, esteve sediada no Panamá até o ano de 1984.

 

A exemplo da base de Guantánamo, em Cuba, servia à realização de atividades militares ilegais e semi-clandestinas dos serviços de informação norteamericanos. (3)   A partir de meados da década de 1980, foi transferida para Fort Benning, no distrito de Columbus, Estado de Virginia, EUA.

 

Estima-se que ofereceu treinamento a mais de cinquenta mil milicianos, policiais e militares integrantes de aparelhos repressivos em 23 países latinoamericanos, entre eles o coronel Manuel Contreras, comanadante da DINA, e o General  Leopoldo Fortunato Galtieri, ditador argentino no período de 1981/ 82.

 

DINA também contou com a colaboração de agências repressivas de outros países do Cone Sul, viabilizada por meio da obscura Operação Condor. (4)

 

Em junho de 2008, Manuel Contreras foi condenado à prisão perpétua, acusado de ser  mandante do assassinato do general Prats. No ano seguinte, a justiça chilena ordenou a prisão de 120 ex-agentes do DINA denunciados pelas sistemáticas violações de direitos humanos durante a ditadura de Pinochet.

 

Em 5 de setembro do corrente, a  Associação Nacional dos Magistrados do Poder Judiciário do Chile fez retratação pública pela sua  “omissão”  frente aos 5 mil pedidos de proteção feitos por pessoas que foram detidas ou desapareceram durante o regime militar chileno..

 

Estes fatos merecem condenação formal da História.

 

Enquanto Nova Iorque rememora o trágico atentado terrorista, que vitimou três mil cidadãos norteamericanos, as forças democráticas de todo mundo denunciam a sedição, a espionagem e as atrocidades praticadas pela política externa norteamericana em todo mundo. Relembram com pesar os milhares de chilenos assassinados por agentes da repressão, sob os aupícios da CIA.

 

Estes dois atentados contra a humanidade devem ser igualmente condenados pela História, por todas as forças sociais que se batem em defesa de direitos humanos.

 

A consciência humanitária exige a condenação formal de crimes hediondos, do genócidio, dos sequestros, dos assassinatos e da  tortura praticados por agentes a serviço do Estado, bem como de intervenções belicistas realizadas para viabilizar interesses estratégicos obscuros e não declarados.

 

Notas

 

(1) 11'9"01 September 11 (2002) realizado por Samira Makhmalbaf (Irã), Claude Lelouch (França), Youssef Chahine(Egito), Danis Tanovic (Bosnia-Herzegovina), Idrissa Ouedraogo (Burkina Faso), Ken Loach (Reino Unido), Alejandro González Iñárritu (México), Amos Gitaï (Israel), Mira Nair (India), Sean Penn (Estados Unidos) e Shohei Imamura (Japão), duração : 135 min

 

(2) Archivo digital de las Violaciones de los Derechos Humanos de la Dictadura Militar en Chile (1973-1990) URL:  http://www.memoriaviva.com/  acessado em 09 de setembro de 2013

 

(3) Esquadrões da Morte, a escola francesa (2003) Marie-Monique Robin, França, dur 79 min

 

(4) Operação Condor (2007) Roberto Mader, Brasil, 100 min

 

Wagner Braga Batista é professor aposentado da UFCG

 

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