C. Sociais e Humanas em Saúde e Covid-19: compreender as interdependências para produzir resistências
Com o título Covid-19: desigualdades, vulnerabilidades, silenciamentos e ignorâncias, pensadores de diferentes perspectivas das Ciências Sociais e Humanas em Saúde jogaram novas luzes no entendimento da pandemia no painel realizado em 30 de abril, na Ágora Abrasco, programação de debates realizada na TV Abrasco, ampliando sentidos e olhares para além da dimensão estritamente biomédica, fazendo valer a importância dessa área na constituição da Saúde Coletiva.
Docente do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBA) e da Coordenação da Comissão de Ciências Sociais e Humanas em Saúde da Abrasco, Monica Nunes faz a abertura e apresentação da sessão, ressaltando o papel das diferentes expertises reunidas para uma análise complexa e com maior profundidade do fenômeno.
“Num país como o nosso não é possível de isolamento sem falar de redes compensatórias e redes solidárias. Por que essa negação do Executivo? Por que essa negação da ciência no nível ideológico?” levantou Sandra Caponi, professora titular do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Catarina (DSCP/UFSC), afirmando que o negacionismo tem como características o uso de temas isolados para o questionamento da visão crítica da ciência, além de mecanismos discursivos marcados por distorções e esvaziamento das ações de pessoas e grupos.
Para ela, há grandes afinidades entre o negacionismo e a razão neoliberal. “Na lógica neoliberal, o SUS, a educação pública e a previdência social são estigmatizadas e lidas como políticas destinadas àqueles que não conseguiram vencer” analisou Sandra, afirmando que a visão do governo é que nada deve mudar após a pandemia. “Há o falso dilema entre vida e economia, que não é uma exclusividade brasileira, mas que não é uma questão, mas sim uma escolha biopolítica entre proteger a vida ou expô-la à morte” sentenciou Sandra.
Também professora do ISC/UFBA, Leny Trad deu sequência às exposições, perguntando a quem interessa silenciar as Ciências Sociais e Humanas em saúde justamente nessa pandemia, articulando o discurso negacionista com os constantes ataques às humanidades. O último foi a suspensão das bolsas PIBIC a “quaisquer áreas que não tecnológicas”, sacramentada em portaria do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 23 de abril.
No entanto, a docente ressaltou que essa tentativa dos obscurantistas é em vão. “Essa busca [de invisibilização] não tem nos detido; e o campo nunca esteve tão afiado, com produções oportunas”, disse Leny, citando a psicóloga boliviana Maria Galindo, que expõe a pandemia como um elemento que traz à tona problemas históricos posto embaixo do tapete pelo pensamento colonial; e Paul Preciado, que articula ao coronavírus o conceito de máscara cognitiva, impedindo a muitos uma reflexão crítica sobre o fenômeno, e que tem sido cada vez mais produzido fora das torres de marfim das universidades.
Observar a situação da população negra e dos auxiliares de enfermagem como categorias com altos percentuais entre os óbitos são elementos, para Leny, que ressaltam a necessidade de um olhar interseccional para revelar hierarquia social e racial que permanece imutável no Brasil contemporâneo. “Qualquer quarentena é sempre discriminatória. Mais possível para uns do que para outros e impossível para um vasto grupo de cuidadores, sem esquecer que matar e deixar viver fazem parte dessa dinâmica” trouxe a expositora, citando Judith Butler e Achille Mbembe.
Compreender as interdependências para produzir resistências: Docente e pesquisador do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/Uerj), e vice-presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Sérgio Carrara destacou o trabalho político desenvolvido pelas entidades científicas como Abrasco, ABA e Sociedade Brasileira progresso da Ciência (SBPC) como fundamentais para a resposta social à pandemia. “É a solidariedade como reação”.
Num tempo em que são retomadas tecnologias do século XVII como a quarentena, o docente criticou os modelos epidemiológicos excessivamente individualistas. “As pessoas não são pontinhos e a sociedade não é um quadro branco. Será que temos condições de pensar a epidemia numa topografia social acidentada como a brasileira?” questionou Sergio Carrara, sem destacar a importância dos modelos matemáticos, porém buscando olhar além deles.
Para o pesquisador, é necessário pensar interdependência, mesmo entendendo os pontos de vulnerabilidade social, como forma possível de articular ações de resistência. “Nossa relação com os sepultadores é uma dessas relações que a sociedade prefere não pensar. A gente percebe que eles são e já eram fundamentais, e que não eram percebidos” finalizou Sergio Carrara.
Vulnerabilidades, privilégios e interdependências também marcaram a fala de Dudu Ribeiro, historiador especialista em gestão estratégica de políticas públicas e coordenador da Iniciativa Negra por Uma Nova Política sobre Drogas. “Essas desigualdades produzem silenciamentos e ignorâncias e dão pistas de como os avanços da pandemia funcionam diferentemente para uns e outros, entre o Titanic e o Navio negreiro. Corpos circulantes e os em isolamentos provocam contagens completamente diferentes” apontou.
Ao destacar a dimensão ainda mais impactante do que comumente é chamado de micropolítica, ele destacou o caráter nocivo das guerras às drogas e as estratégias de aproximação entre os considerados “inimigos” dos “homens de bem”: vírus, estrangeiros, negros em políticas de superencarceramento, e as mulheres negras, às quais destacou como centrais na articulação das redes de cuidado dentro das favelas.
Para ele, somente com esses reconhecimentos a sociedade terá alguma capacidade de dar uma resposta à pandemia sem deixar os grupos historicamente excluídos para trás. “Esse diálogo da produção científica com saberes potentes da vida, a partir de papéis motivadores, é necessário. Como fazer com que isso não se perca e que possamos produzir mais conexões?” encerrou Dudu lendo um trecho de “Cartas à minha mãe”, da escritora cubana Teresa Cárdenas.
Antes de abrir para o debate, Monica Nunes arrematou a discussão, costurando as ricas visões expostas nas falas do painel. “Além das estigmatizações citadas, vejo também uma visão da natureza como inimiga. Essa pandemia faz a gente pensar como estava andando nossa convivência ecológica e a desarmonia na nossa relação com a natureza, o que pode nos fazer entender melhor a emergência dessa epidemia” marcou a abrasquiana. Assista abaixo na íntegra.
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