quinta-feira, 19 de março de 2020

Eis o terraplanismo epidemológico


Outras Palavras

Eis o terraplanismo epidemológico

Chacotas, fake news, ataques à imprensa e comunidade científica. Criação de inimigos políticos imaginários. Artifícios de figuras como Trump e Bolsonaro reforçam crise que se alastra, enquanto empresários lucram com o pânico dos desinformados
Por Paulo Capel Narvai, no A Terra é Redonda
Com epidemias, não se deve brincar. Não se deveria, também, manipular doença e morte, mercantilizando-as. Também não se deveria ideologizar e partidarizar o fenômeno epidemiológico, prejudicando o seu enfrentamento com base em evidências científicas. Contudo, o episódio atual protagonizado pelo vírus SARS-Cov-2 (Coronavírus da Síndrome Respiratória Aguda Grave 2) mostra que hoje, no Brasil, não há espaço para esse mundo do “deve ser”. Por aqui, a mais alta autoridade da República faz chacota com a epidemia COVID-19 (do inglês ‘Coronavirus Disease 2019’), empresários manipulam preços de produtos cujo consumo inútil é estimulado pela ignorância e ideólogos terraplanistas zombam do novo coronavírus, que não passaria de um “comunavírus”. O cenário, desalentador, revela uma mescla abjeta de oportunismo político-partidário com ganância e ignorância. A consequência é que aumentam nossas dificuldades para controlar a pandemia.
Difundir informações é essencial no enfrentamento de epidemias. Refiro-me a informações científicas e não a “notícias”, simplesmente. Nem a fake news, decerto. A história brasileira registra o episódio, lamentável, da desinformação da população sobre a epidemia de meningite no início dos anos 1970. A censura imposta à imprensa pela ditadura civil-militar, impedindo a circulação de informações, contribuiu negativamente, pois ajudou a aumentar a circulação do meningococo ao retardar muito a vacinação. A censura à imprensa causou mortes evitáveis1.
Na atual pandemia COVID-19 há, também, guerra de informação, envolvendo potências econômicas. Donald Trump, de um lado, se refere ao coronavírus como “um vírus estrangeiro” [sic] , e acusa a China de utilizar a epidemia para jogar com preços de commodities, petróleo e soja, sobretudo. Zhao Lijian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, respondeu afirmando que o SARS-Cov-2 foi introduzido na China pelos Estados Unidos, em ato criminoso, por ocasião da sétima edição dos Jogos Mundiais Militares, em outubro de 2019, em Wuhan, cidade a partir da qual a epidemia se transformaria em pandemia. O objetivo seria criar dificuldades econômicas aos chineses2. O fato é que ninguém tem dúvida sobre o notável impacto da pandemia sobre as atividades econômicas em todo o planeta. As bolsas de valores, segundo Nouriel Roubini, o economista que anteviu a crise financeira de 2008, cairão de 30% a 40%3.
Outro tipo de guerra de informações é a disputa pelo monopólio da informação “correta” a ser divulgada para “esclarecer” a população e evitar “pânico”, envolvendo cientistas e especialistas de várias áreas. Médicos(as), aos montes, mas também enfermeiros, biólogos e até mesmo “paramédicos”, vêm povoando as redes sociais com suas verdades “científicas”, todos se dizendo apolíticos, técnicos, apoiados em suas “experiências” e “vivências”, as de quem estaria com “a mão na massa”. “Eu sou de fazer, não de ficar falando”, ouvi de um deles. Alguns se dizem “cansados” de ver “besteiras” sendo ditas por leigos e, por estarem “cansados” e “não aguentarem mais”, vêm a público para mostrar onde estaria a verdade e o que fazer. Cada disciplina científica ou especialidade médica, por vezes ignorando a complexidade de fenômenos epidemiológicos, tem sempre algum de seus luminares a postos para nos “explicar” o que se passa. “Cientificamente”, segundo creem. Tudo o que colide com suas certezas “científicas”, ainda que proveniente de outras disciplinas ou especialidades, não merece crédito, nem respeito. Alguns, mais ideologizados, deduzem que outros pontos de vista, igualmente embasados em saberes científicos, teriam apenas a finalidade de criar pânico. Seriam, apenas e tão somente, coisas dessa “turma do contra”.
Não, caro leitor, cara leitora, fique tranquilo(a), pois não me porei a dizer onde está a verdade, nem o que fazer.
As características biológicas e epidemiológicas, básicas, envolvendo o o SARS-Cov-2 são bem conhecidas a esta altura do desenvolvimento da pandemia COVID-19. As básicas. Mas não se sabe como as coisas evoluirão em países tropicais, pois a epidemia está chegando agora. O Brasil está nessa expectativa. O que se sabe é suficiente, contudo, para reconhecer que não se trata de “uma gripe como qualquer outra”.
O pior modo de lidar com a COVID-19 é ficar paralisado, “achando coisas” (que é uma “fantasia” e que não é “tudo isso que a grande mídia propaga”4 ou que é “apenas uma gripinha”). O devaneio sobre a epidemia foi de ninguém menos do que o Presidente da República, principal responsável pelo descuido do governo federal que não deu à epidemia a devida atenção em janeiro, demorando a reagir com relação aos brasileiros que estavam na China e que apenas em fevereiro começou a dar mostras de tentar articular ações federais com Estados e Municípios. Mas até meados de março o país não conhecia qualquer plano para assegurar assistência aos milhares de doentes que, sabe-se, buscarão assistência em serviços públicos e privados. Pressionado por servidores públicos especializados em vigilância epidemiológica, por governos estaduais e municipais, e pela opinião pública, o governo federal pôs em curso seu plano para coordenar o enfrentamento da pandemia no Brasil. Coordenação, registre-se, que é sua obrigação constitucional.

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