segunda-feira, 30 de novembro de 2015

O impasse fundamental da COP 21 em Paris

Leonardo BoffJornal do Brasil
Entre os dias 30 de novembro a 11 de dezembro de 2015 se celebrará mais uma Convenção das Mudanças Climáticas (COP 21) em Paris. Todas as realizadas até hoje chegaram a convergências pífias, muito distantes das exigências que o problema global exige. Há uma razão intrínseca ao atual sistema socioeconômico mundializado que impede alcançar objetivos comuns e adequados. É semelhante a um trem sobre os trilhos. Ele está condicionado ao rumo que os trilhos traçam sem outra alternativa.
A metáfora vale para o atual sistema global. As sociedades mundiais continuam obsessionadas pelo ideal do crescimento ilimitado, medido pelo PIB. Falam em desenvolvimento, mas na verdade, o que se busca é o crescimento material. O crescimento pertence aos processos vitais. Mas sempre dentro de limites. Uma árvore não cresce ilimitadamente para cima nem nós crescemos fisicamente de forma indefinida.Chega um ponto em que o crescimento pára e outras funções têm  o seu lugar.
Ocorre que um planeta limitado e escasso de bens e serviços não tolera um crescimento ilimitado. Já nos demos conta de seus limites intransponíveis. Mas o sistema não toma tal fato em consideração.
Disse-o com grande lucidez o co-fundador do eco-socialismo, o franco-brasileiro Michael Löwy: "Todos os faróis estão no vermelho: é evidente que a corrida louca atrás do lucro, a lógica produtivista e mercantil da civilização capitalista/industrial nos leva a um desastre ecológico de proporções incalculáveis; a dinâmica do crescimento infinito, induzido pela expansão capitalista, ameaça destruir os fundamentos da vida humana no planeta"(Ecologia e socialismo 2005, 42).
A questão central não está, como viu o Papa Francisco em sua encíclica sobre O cuidado da Casa Comum,  na relação entre crescimento e natureza. Mas entre ser humano e natureza. Este não se sente parte da natureza, mas seu dono que pode dispor dela como bem quiser. Não cuida dela nem se responsabiliza pelos danos da voracidade de um crescimento infinito com o consumo ilimitado que o acompanha. Assim caminha célere rumo a um abismo, pois a Terra não  suporta mais tanta  exploração e devastação.
Entre as muitas consequências desta lógica perversa é o aquecimento global que não cessa de crescer. Desconsiderando os negacionistas, há dois dados seguros,  estabelecidos pela melhor pesquisa mundial: primeiro: o aquecimento é inequívoco; não dá para negá-lo, basta olharmos em volta e constatarmos os eventos extremos que ocorrem em todo o planeta; segundo: para além da geofísica da própria Terra que conhece fases de aquecimento e de esfriamento, este aquecimento é antrópico, vale dizer, resultado da ininterrupta intervenção humana nos processos naturais. O aquecimento que seria normal vem fortemente intensificado especialmente pelos gases de efeito estufa: o vapor d'água, o dióxido de carbono, o metano, o óxido nitroso e o ozônio. Esses gases funcionam como uma estufa que segura o calor aqui em baixo, impedindo que se disperse para o alto aquecendo em consequência o planeta.
Toda luta é limitarmo-nos a dois graus Celsius, o que permitiria um gerenciamento razoável da adaptação e da mitigação. Para nos mantermos nestes limites, dizem-nos os cientistas, deveríamos reduzir a emissão dos gases em 80% até 2050. A maioria acha isso impossível. Se no entanto, por descuido humano, a temperatura chegar entre 4-6 graus Celsius  por volta desta data, a vida que conhecemos corre risco de desaparecer e atingir grande parte da espécie humana.  O Secretário da ONU Ban Ki Moon advertiu recentemente:"As tendências atuais estão nos levando cada vez mais perto de potenciais pontos de ruptura, que reduziriam de maneira catastrófica a capacidade dos ecossistemas de prestarem seus serviços essenciais".
A consequência é: temos que mudar de rumo ou conheceremos a escuridão. Há que estabelecer uma nova relação para com a Terra, respeitar seus ciclos e limites, sentirmo-nos parte dela, cuidá-la com processos de produção e consumo que atendam nossas necessidades, sem exaurir sua biocapacidade. Deveremos aprender a ser mais com menos e a assumir uma sobriedade compartida em comunhão com toda a comunidade de vida que também precisa da vitalidade da Mãe Terra para viver e se reproduzir.  Ou faremos esta "conversão ecológica"(Papa Francisco) ou estará comprometida nossa trajetória sobre esse pequeno e belo planeta.

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

SUS: “Brasil nunca investiu para viabilizar plenamente o acesso à saúde”.


IHU.UNISINOS:


“O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º em investimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado”, afirmam os médicos.
Foto: prsouza.wordpress.com
“O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir”, dizem Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro àIHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por e-mail.
Segundo os médicos, o estímulo do Estado brasileiro ao setor privado de saúde ocorre desde meados da década de 1960, via incentivos fiscais. “Até hoje incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento de campanhas para os legislativos e executivos”, afirmam.
Na avaliação dos médicos, atualmente várias propostas políticas tentam desmantelar o Sistema Único de Saúde, como aProposta de Emenda Constitucional – PEC 451, de autoria do deputado Eduardo Cunha, que “inclui, como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica” e a PEC 358/13, conhecida como PEC do ‘Impositivo’, “que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a ser destinado a partir de emendas (...). São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS”, pontuam. Segundo eles, “há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940”.
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro reforçam que atualmente o “sistema público possível para o Brasil é o SUS, não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta que seus avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossa Constituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos”.
Gerson Salvador de Oliveira é graduado em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP, especialista em Infectologia pela mesma universidade. Médico assistente da Divisão de Clínica Médica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo e infectologista do Instituto de Medicina Física e Reabilitação do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP.
Pedro Carneiro é graduado pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto pela Universidade de São Paulo e mestrado em Saúde na Comunidade pela Universidade de São Paulo.
Confira a entrevista.
Foto: ocponline.com.br
IHU On-Line - Evidencia no Brasil um movimento em que o Estado está privilegiando planos de saúde em detrimento do SUS? Se sim, desde quando isso vem acontecendo e por quais razões?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Desde meados da década de 1960 o Estado brasileiro estimula o setor privado em saúde, via incentivos fiscais. Até hoje incentiva, através de desconto no imposto de renda de despesas com saúde e isenção de impostos de serviços classificados como filantrópicos, entre eles os muitos dos principais hospitais particulares do país. Parte deste incentivo se deu com objetivo de utilizar os serviços de uma rede já instalada, mas sua intensificação tem a ver com o financiamento de campanhaspara os legislativos e executivos. O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do Sistema Único de Saúde tem diminuído.
IHU On-Line - Identifica uma tentativa de desmantelar o SUS? Quais são as evidências de que isso está acontecendo?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Garantir atenção integral à saúde de toda nossa população custaria muito, e o Brasil nunca investiu num patamar que pudesse viabilizar plenamente esse direito. Em tempos de crise há algumas iniciativas claras de desmantelamento do que existe, como por exemplo, por parte do Governo Federal: a PEC 86, que estabelece que os percentuais mínimos para investimento em saúde devem ser calculados não mais sobre a receita bruta do Estado, mas sobre a receita corrente líquida; a Lei de Diretrizes Orçamentárias em que os recursos previstos para custear a saúde pública não chegam ao mês de outubro de 2016; a “Agenda Brasil”, proposta pelo SenadorRenan Calheiros que em seu texto original orientava “avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos doSUS por faixa de renda”; a proposta do deputado Eduardo Cunha: PEC 451 que “inclui como garantia fundamental, plano de assistência à saúde, oferecido pelo empregador em decorrência de vínculo empregatício, na utilização dos serviços de assistência médica”; PEC "do Impositivo" que garante aos parlamentares disporem de 15% do orçamento da saúde, a ser destinado a partir de emendas; a aprovação pela Câmara de Medida Provisória, que visava anistiar dívidas bilionárias de multas das empresas de medicina de grupo, vetada pela presidente Dilma. São diversas evidências de que existem iniciativas institucionais de favorecimento do setor privado ao custo do desmantelamento do SUS.

“O poder de lobby das empresas de saúde tem se intensificado e a representação no parlamento de defensores do sistema Único de Saúde tem diminuído

IHU On-Line - Que avaliação faz dos SUS ao longo desses 25 anos? Quais foram os avanços e quais ainda são as principais dificuldades do Sistema Único de Saúde brasileiro?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - A saúde a ser garantida como direito de todos e dever do Estado em nossa Constituição, através de um sistema único, provavelmente é a maior conquista cidadã da história de nossa República. Houve grandes avanços: o Plano Nacional de Imunizações; a oferta de atenção primária à saúde, principalmente através da estratégia saúde da família; o programa nacional de HIV/AIDS; os serviços de transplantes e captação de órgãos; a atenção pré-hospitalar a partir do SAMU; entre outros. Os principais obstáculos: financiamento insuficiente, serviços com qualidade muito heterogênea, dificuldade de acesso à atenção especializada na maioria dos municípios, leitos de internação insuficientes, emergências lotadas, recursos humanos com formação muito heterogênea e com vínculos dos mais variados devido à "salada" que existe na gestão da saúde pública: há servidores federais, estaduais e municipais admitidos por concursos, outros contratados por autarquias, outros através de terceirizações, organizações quer seja para formação quer seja para a carreira dos profissionais de saúde.
IHU On-Line - A que atribui as dificuldades do SUS, como a oferta insuficiente de serviços e os déficits de leitos de internação, por exemplo? O problema é orçamentário, de gestão ou outras razões? Quando se trata de funcionamento do SUS, que pontos fundamentais devem ser considerados?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Em resumo há problema de gestão, há problema de recursos humanos, mas o financiamento é muito insuficiente. O Brasil, até o ano passado, era a sétima economia do mundo e o 72º eminvestimento em saúde. Não há gestão eficiente que seja capaz de entregar serviços de excelência sem o financiamento adequado.
IHU On-Line - Quais são as principais contradições que percebe entre o financiamento do Estado ao setor privado e ao setor do SUS?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - O setor privado conta com quase 60% do que é gasto anualmente em saúde para dar conta da assistência de cerca de 25% da população, enquanto o pouco mais de 40% de recursos restantes deve dar conta da assistência dos demais 3/4 em situações ordinárias, além de atender os que têm planos de saúde em tratamentos que os planos se isentam de cobrir: atenção pré-hospitalar, emergências, tratamentos para câncer, transplantes, medicamentos para HIV e hepatites virais por exemplo, além de ações de vigilância e imunizações para toda a população.
Ao SUS cabe, como diz o professor Ricardo Teixeira, fazer muito mais com muito menos. Além do orçamento insuficiente, a União continua oferecendo descontos no imposto de renda para serviços privados e isentando de impostos grandes serviços privados classificados como filantrópicos.
IHU On-Line - Que comparações faz entre o SUS e o sistema de saúde público de outros países da América Latina?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Brasil é o único país da América Latina que oferece sistema universal de atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros. Mas o financiamento per capita é menor do que a média de países da América Latina.

“O Brasil é o único país da América Latina que oferece sistema universal de atenção à saúde não só a seus cidadãos, mas também a estrangeiros

 

IHU On-Line - De que modo, além da questão do financiamento, a crise política pode impactar no SUS?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - Há um campo político, em torno da liderança de Eduardo Cunha, com uma agenda que pode ter sérios efeitos no SUS, por exemplo, pela limitação do atendimento de mulheres vítimas de estupro, que inclui a possibilidade de aborto legal. A proposta de Cunha é que se exija o boletim de ocorrência e exame de corpo de delito, retrocedendo numa garantia que data da década de 1940. Há disposição de tentar proibir a pílula do dia seguinte também. O estatuto da família, a redução da maioridade penal, a iniciativa de cancelar o estatuto do desarmamento, caso essas propostas sejam aprovadas, caberá ao SUS atender às pessoas afetadas.
IHU On-Line - O que seria um sistema de saúde público possível para o Brasil neste atual momento?
Gerson Salvador de Oliveira e Pedro Carneiro - O sistema público possível para o Brasil agora é o SUS, não há possibilidade de uma inflexão, de um novo sistema que garanta que os avanços que tivemos sejam preservados. É necessário haver maiores recursos e parâmetros de gestão que orientem o funcionamento dos serviços. Apesar de suas dificuldades, por sua orientação humanista, é o SUS (funcionando nos termos do que está garantido na nossaConstituição) que pode garantir que o Brasil ofereça saúde com dignidade para todos.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Frei Rodrigo Péret: a população precisa se organizar para pressionar as autoridades pelo direito à moradia

Frei Rodrigo Péret, da Pastoral da Terra,  participou do programa MG TV 1 da TV Integração de Uberlândia.

  Frei Rodrigo abordou, entre outros assuntos, a questão da especulação imobiliária que vai contra a função social da propriedade urbana, a ausência de loteamentos populares (as pessoas querem pagar), a luta justa dessas famílias pelo seu direito,  protestou contra o despejos realizados.

Citou  que as ocupações urbanas não tem nada a ver com a fila do " Minha Casa, Minha Vida", que as soluções para as ocupações passam por fundos completamente diferentes e que os movimentos sociais estão lutando para que as administrações municipais abram outros fundos. A questão da habitação não pode ficar "preso" apenas a um programa. 

Afirmou, também, que a população tem que se organizar e chamar para si a responsabilidade. E que temos que ter uma visão ética e humana sobre esta questão.

Clique abaixo para assistir:








MG TV 1 - TV Integração : Sem moradia, ocupações viram escolha de muitos em Uberlândia

terça-feira, 24 de novembro de 2015

E se fosse a lama da Petrobras na praia de Ipanema?

DEMONIZAÇÃO SELETIVA

E se fosse a lama da Petrobras na praia de Ipanema?

Impacto da barragem destruída causa uma "Escola Base" às avessas. Imprensa brasileira perde ímpeto acusatório quando casos emblemáticos envolvem as elites econômicas
por Alceu Luís Castilho Rede Brasil Atual
FABIO BRAGA/FOLHAPRESS
Lama
Lama liberada com o rompimento de barragens em Mariana (MG) chegou ao mar do Espírito Santo
A maior catástrofe ambiental do século 21 no Brasil ganha novo ícone com a chegada da lama da Samarco (Vale, BHP) no Oceano Atlântico. Mas quem se importa com a avalanche gosmenta de resíduos na Praia de Regência, no Espírito Santo? Em um litoral que o biólogo André Ruschi define como “a Amazônia marinha do planeta“? Pouco após a barragem da mineradora se romper, no dia 5, houve quem perguntasse, diante da desatenção inicial da grande imprensa: “E se fosse com a Petrobras?” Cabe agora atualizar a pergunta: “E se essa lama estivesse chegando na Praia de Copacabana? Ou Ipanema, Leblon, Barra? Ganharia a capa de Veja?”
As revistas seguem alienadas. Tivemos três fins de semana após o crime socioambiental, ocorrido no dia 5 de novembro. Nem por isso o tema mereceu alguma manchete de Veja, Época ou IstoÉ. Claro que o tema está lá, mas de forma protocolar. Os jornais até acordaram um pouco, diante da viralização do tema na internet. E estão cumprindo (ainda que em fragmentos, com peças isoladas de um quebra-cabeças) parte de sua função. As nossas revistas panfletárias, porém, não estão interessadas em contar à nossa classe média distraída – mas contar com todas as letras – que estamos diante de um dos episódios mais emblemáticos deste nosso capitalismo sôfrego, particularmente inconsequente. E violento.
Sim, as mineradoras fazem estragos por todo o mundo. Inclusive a Vale e a BHP, as maiores ao lado da Rio Tinto. O que não nos impede de constatar que as nossas publicações tipicamente vestais (essas que fazem capas sobre corrupções específicas de grupos políticos específicos) estejam tratando o caso de Mariana de forma secundária, como se fosse um detalhe – um desastre renovável. A Globo multiplicou os minutos sobre as mortes na França e parece sem fôlego para manter a catástrofe brasileira no noticiário. Mas não é só isso. Há um problema de postura. Não veremos o William Waack espumando por causa dos povoados arrasados e das espécies extintas. Não veremos analistas econômicos conectarem as vidas destruídas de pescadores (ou camponeses) à doce vida dos sócios da Vale.
E, portanto, no que se refere ao ambiente, o jornalismo brasileiro ganha a sua Escola Base. Mas às avessas: por falta de acusação, por falta de ímpeto de não somente constatar a responsabilidade da Samarco (Vale, BHP), mas constatar com a capacidade exclamativa que demonstra em outras situações. E sem que haja esforço de costurar uma narrativa maior, de questionar um sistema predador, que libera nossos recursos naturais para o saque bilionário por um punhado de empresas, livres para acumular (com fartas isenções fiscais) e poluir. Sem que se nomeie com todas as letras o partido – o PMDB – que controla o setor da mineração no país, amplamente financiado pelas próprias mineradoras. Quantas vezes o leitor ouviu o nome do PMDB em meio a essa lama toda?
Demonizações seletivas
A Escola Base foi aquele caso em São Paulo em que donos de uma escola infantil foram acusados de abuso sexual. A imprensa foi histérica a respeito (imaginem se o acusado fosse o dono de uma rede gigantesca de escolas privadas) e teve de fazer, tempos depois, um mea culpa: eles eram inocentes. Um mea culpa que simplesmente não é feito em relação aos linchamentos diários, espalhados por todo o país, de acusados – pobres, negros – de outros tipos de crime. A imprensa brasileira ainda é protagonista de espetáculos medievais de demonização de indivíduos, satanizações de acusados que servem também para justificar o tratamento excludente a grupos sociais inteiros. “Eles que não invadam nossa praia”.
E, no entanto, essa imprensa não se move (ou se move em círculos, sem ser incisiva) quando os suspeitos ou criminosos têm colarinho branco, CNPJ e gigantescas equipes de marketing. Briga com o porteiro, nunca com o patrão. Nossa elite não será algemada nem tratada como escória. Nem que seja ela a responsável por poluição ambiental e roubo de terras, destruição de biomas e especulação financeira assassina, nem que patrocine a crise, seja ela mesma a crise, nem que ela seja notoriamente atrasada (ou mais despudorada) em relação às demais elites do capitalismo mundial – porque ainda mais cínica e impune. Os cárceres estarão cada vez mais entupidos dos pequenos traficantes de drogas. Teremos 1 milhão de presos, 1 milhão de inimigos convenientes.
Estamos no país onde a ministra da Agricultura vai à Ásia e se deslumbra com mármores e tapetes, em uma missão oficial para promover o agronegócio brasileiro, esse agronegócio primo da mineração predadora, ambos a esmagar as florestas restantes, os povos indígenas e as populações tradicionais. E lá estava ela na Índia, toda alegre e intensa, vendendo as supostas maravilhas de uma nova fronteira agrícola, a do Matopiba (Maranhão-Tocantins-Piauí-Bahia), onde a família Marinho tem terras e onde o Cerrado ganha sua destruição diária, com o aval de governo e oposição, sem holofotes, sem proteção legal, sem lama, sem espetáculo – sem uma narrativa, uma cobertura diária que ao menos coloque em dúvida esse modelo, essa lógica.
Uma das coisas mais curiosas da imprensa brasileira a serviço da plutocracia é que ela não se dá conta de nossos rombos socioambientais nem quando o PT também deixa ali sua assinatura, nem quando o governo federal que fustigam tenha papel importante nessa destruição. A não ser que pretendam desprestigiar uma estatal. Porque o que querem é apenas colocar outro grupo político no poder, uma espécie de política de substituição de destruições, de preferência sem algum verniz compensatório, alguma inclusão em meio à implosão. É por isso que as próximas capas da Veja vestirão como presidiários apenas aqueles que a revista julgar convenientes; nunca os plutocratas com pedigree. Latifundiários da comunicação a minimizar a dor de multidões e a sacralizar o ódio das minorias. Em nome de seus pais, de seus filhos e apesar da lama no mar do Espírito Santo.
Alceu Luís Castilho é jornalista e autor do livro “Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro”

segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Há 50 anos o "Pacto das Catacumbas" era assinado em pleno Concílio Vaticano II

Blog do Miro:

O "pacto das catacumbas" no Vaticano

Por Frei Betto, no site da Adital:

Fez 50 anos, dia 16, que um grupo de bispos e cardeais, em pleno Concílio Vaticano II, assinou o Pacto das Catacumbas. Sem alarde, pouco mais de 40 prelados celebraram missa nas catacumbas de Santa Domitila, em Roma, e ali selaram o pacto que, em poucas semanas, recebeu a adesão de mais de 500 bispos.

O pacto consiste no compromisso de lutar pelos direitos dos pobres e por uma Igreja despojada e servidora, mais próxima de Jesus que da suntuosidade dos imperadores romanos.

O papa João XXIII abriu o caminho para a "opção pelos pobres” na Igreja Católica. Ao inaugurar o Concílio, declarou: "Em face dos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta – tal qual é e quer ser – como a Igreja de todos e, particularmente, a Igreja dos pobres.”

Bispos da América Latina, Ásia e África – onde se concentra a população mais pobre – encabeçaram o pacto, também assinado por alguns europeus e canadenses.

Monsenhor Hakim, bispo da Igreja Melquita em Nazaré, cidade de Jesus, se fez acompanhar no Concílio pelo padre Paul Gauthier e a freira Marie-Thérèse Lescase. Gauthier havia largado a cátedra de teologia na França para, como São José, viver em Nazaré do trabalho de suas mãos, na construção civil. Marie-Thérèse deixara a clausura do Carmelo para ser operária em Nazaré.

Fundadores da Fraternidade dos Companheiros e Companheiras de Jesus, os dois foram a Roma se empenhar na conversão da Igreja à causa dos pobres.

Dom Helder Câmara, então bispo auxiliar do Rio, foi o primeiro a aderir ao pacto. Outros brasileiros o seguiram. Dois cardeais também assinaram: Lercaro, de Bolonha, e Gerlier, de Lyon.

Plantou-se ali a semente do que, mais tarde, viria a ser conhecida como a Igreja dos pobres. A Igreja das Comunidades Eclesiais de Base e das pastorais populares. Desse movimento, que adotou como método cotejar os fatos da vida com os fatos da Bíblia, nasceu a Teologia da Libertação.

Esse processo foi enriquecido, na América Latina, pela Conferência Episcopal de Medellín, que em 1968 reuniu quase todos os bispos do continente.

Com a morte de Paulo VI, que via com simpatia o pacto, a Igreja dos pobres se arrefeceu sob os pontificados de João Paulo II e Bento VI. Dom Paulo Evaristo Arns teve a sua arquidiocese, São Paulo, retalhada por Roma. A periferia da capital paulista foi entregue a bispos conservadores.Leonardo Boff sofreu punição de um ano de "silêncio obsequioso”. Editoras católicas ficaram com medo de editar obras de teólogos da libertação. As CEBs, sem apoio de bispos, esfriaram seu vigor. A CNBB amainou a sua voz profética.

Estudos mostram que esse recuo católico do mundo dos pobres levou-os a buscar abrigo nas Igrejas evangélicas. Basta observar as missas de domingo nos centros urbanos: quase todos os fiéis são de classes média e alta. A poucos metros dali, no que outrora foi um cinema, a igreja evangélica reúne centenas de fiéis no culto, entre os quais a cozinheira, a faxineira, o porteiro do prédio, que trabalham para os que foram à missa...

Hoje, infelizmente, não são raros os jovens que procuram o sacerdócio em busca de status. Exceções são aqueles dispostos a atuar nas periferias, nas favelas, nas regiões pobres do interior.

O papa Francisco retoma, com sua linha pastoral, o Pacto das Catacumbas. Quer uma Igreja misericordiosa, missionária, pobre, comprometida com "a revolução da ternura”. Deve, porém, enfrentar as rígidas estruturas da Cúria Romana e de todos aqueles que, na Igreja Católica, colocam o Direito Canônico acima do Evangelho de Jesus.

domingo, 22 de novembro de 2015

Apolo Lisboa: Minas Gerais e o flagelo da mineração



Minas Gerais e o flagelo da mineração. Entrevista especial com Apolo Lisboa

“‘Ecologizar a economia’ significa subordinar as empresas e seu modo de trabalhar à sobrevivência dos ecossistemas, desenvolvendo uma política ambiental correta, em que a produção não comprometa a sobrevivência do ecossistema”, diz o pesquisador.
Foto: www.folhavitoria.com.br
Instituto Humanitas Unisinos:

ruptura da barragem da mineradora Samarco, em Mariana,Minas Gerais, “é apenas um dado alarmante que chama a atenção para uma situação que estamos tentando alertar há bastante tempo”, diz Apolo Lisboa à IHU On-Line, na entrevista a seguir, concedida por telefone.
Apolo reside em Minas Gerais e acompanha de perto a situação das implicações negativas da mineração no estado, e assegura que entre as causas que contribuíram para a ruptura da barragem de rejeitos estão “a rapidez com que se promove a flexibilização de medidas de segurança” nas empresas e a “falta de fiscalização” nas mineradoras.
De qualquer maneira, pontua, “esse não foi um acidente inesperado. Das 735 barragens de rejeitos de Minas Gerais, mais de 200 foram apontadas como tendo problemas por alguns técnicos do governo. O peso excessivo dessa barragem que rompeu se deu porque estavam aumentando a barragem para receber mais carga ainda. Essa barragem descalçou outra muito maior, chamada Germano, que está com uma trinca de três metros de largura”.
Lisboa também critica a falta de um instrumento que pudesse avisar as pessoas do acidente. Segundo ele, “se a barragem tivesse rompido à noite – moravam 600 pessoas ali – a tragédia teria sido muito maior do ponto de vista humano”. Ele frisa ainda que o processo de licenciamento das barragens também tem de ser revisto, “porque os membros do conselho responsáveis por conceder o licenciamento não têm condições técnicas de viajar e conhecer o empreendimento no local” e às vezes chegam a votar “20, 30 projetos em uma reunião (...). Mas e depois, quando ocorre um acidente, essas pessoas teriam que pagar por isso? Elas deveriam ser presas? Esse tipo de licenciamento gera irresponsabilidade”, adverte.
Apolo Lisboa (foto abaixo) é formado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, e é um dos idealizadores do Projeto Manuelzão de despoluição do Rio das Velhas, em Minas Gerais. Atualmente é professor da UFMG.
Confira a entrevista.
Foto: hojeemdia.com.br
IHU On-Line - Quais foram as falhas que geraram a explosão da barragem de rejeitos da Samarco, em Mariana?
Apolo Lisboa - Desde a época colonial, no final do século XVII (1694-1696), as minas foram descobertas na região de Ouro Preto, Itabirito e Mariana e foram sendo espalhadas para outras cidades de Minas Gerais. Essas minas eram, nesse período, diretamente ligadas à Coroa Portuguesa, através do Rio de Janeiro. Portanto, o estado de Minas Gerais sempre foi subserviente àmineração, por causa do valor financeiro que agregava arrecadação e impostos – a própria Inconfidência Mineira aconteceu porque o governo dePortugal, após o terremoto em Lisboa, estava precisando de dinheiro e resolveu aumentar os impostos para 20%, o conhecido quinto, que gerou uma revolta em Minas.
As mineradoras inglesas que vieram depois, seguidas das mineradoras transnacionais ou multinacionais, herdaram essa tradição e esse poder que vinha desde a época de Portugal. A partir da Lei Kandir, que vem do governo Fernando Henrique, as mineradoras não pagam mais ICMS e o royalty pago é baixíssimo, nem se compara com o royalty pago pelo petróleo. Além dos mais, tem se aumentado a velocidade para possibilitar a exportação de minérios e, com isso, estão flexibilizando medidas de segurança para exportar o máximo no menor tempo possível.
ruptura dessa barragem é apenas um dado alarmante que chama a atenção para uma situação que estamos alertando há bastante tempo, embora não houvesse espaço para tal. E eu não tenho certeza se essa ruptura implicará em alguma mudança com o tempo. A presidente falou em multa de 250 milhões de reais, o que não é nada para a mineradora, porque parece que só o seguro da Vale é de 4 bilhões de reais. Com 250 milhões não dá para recuperar nada na região e as barragens de rejeitos continuarão, mesmo todas estando com problemas. O Estado não tem técnicos para fazer a avaliação dessas barragens, e quem faz a avaliação ambiental são as próprias mineradoras, que posteriormente enviam um relatório para o Estado.
Mas respondendo a sua questão, entre os fatores que contribuíram para a ruptura da barragem, eu mencionaria a rapidez com que se promove a flexibilização de medidas de segurança, a falta de fiscalização dessas barragens, a falta de moral do Estado brasileiro, que não tem autoridade para investigar nada, porque muitos membros do Estado são financiados pelas mineradoras. Agora, de qualquer maneira, esse não foi um acidente inesperado.
Nas 735 barragens de rejeitos de Minas Gerais, mais de 200 foram apontadas como tendo problemas por alguns técnicos do governo. O peso excessivo dessa barragem que rompeu se deu porque estavam aumentando a barragem para receber mais carga ainda. Essa barragem descalçou outra muito maior, chamada Germano, que está com uma trinca de três metros de largura. Estão fazendo obras emergenciais para tentar segurá-la, mas isso gera riscos para quem está fazendo essa obra.
Já houve vários acidentes em Minas Gerais: há aproximadamente cinco anos, em uma mina chamada Herculano, houve três mortes; na Mina Rio Verde houve cinco mortos, e a empresa foi multada em 50 milhões de reais, mas essas multas não são pagas. Se você sobrevoar a região em volta de Belo Horizonte, na região onde há mais minério de ferro, você só verá buracos que são do tamanho de três ou quatro quadras, com 200 a 300 metros de profundidade; são grandes crateras para todos os lados.

“O Estado não tem técnicos para fazer a avaliação dessas barragens, e quem faz a avaliação ambiental são as próprias mineradoras

 

IHU On-Line - Uma das críticas feitas à Samarco é de que ela não tinha um plano de contingenciamento. Em que deveria consistir esse plano?
Apolo Lisboa – Não havia nenhuma sirene para tocar na hora em que a barragem rompeu. Quando se deu o rompimento da barragem, havia pessoas andando de moto nas ruas, familiares buscando crianças na escola, e foram eles que saíram gritando, anunciando que a barragem havia se rompido. A empresa tampouco tinha um sistema de alto-falante. Se a barragem tivesse se rompido à noite – moravam 600 pessoas ali – a tragédia teria sido muito maior do ponto de vista humano. Mas, e a morte de todos os peixes no Rio Doce? E os pássaros e animais silvestres que precisam de água para beber, onde eles vão tomar água? Então, trata-se de uma tragédia de escala fenomenal.
Dá a impressão de que essa foi a única fez que aconteceu uma tragédia aqui em Minas Gerais, mas no dia a dia são lançados milhões de litros de esgotos nos rios; essa é uma tragédia lenta.
IHU On-Line - O que seria uma alternativa para as barragens de rejeitos? Existe algum modo de substituir essas barragens ou de tratar esses rejeitos?
Apolo Lisboa – Seria possível fazer o tratamento a seco desse rejeito. Existe essa tecnologia, que é um pouco mais cara, mas as mineradoras não querem gastar dinheiro nenhum. Os acionistas e os diretores querem bater recorde de lucratividade, é uma corrida insana ao lucro e às carreiras pessoais. Eu vi uma notícia - não posso confirmar, teria que fazer uma pesquisa – de que na China já teriam morrido milhares de pessoas por conta de tragédias nas mineraçõespelo rompimento de barragens de rejeitos, mas o país já está investindo no tratamento a seco, proibindo a construção de novas barragens.
IHU On-Line - Quais são os principais problemas em torno do licenciamento ambiental das barragens de rejeitos?
Apolo Lisboa – Está faltando, primeiramente, um conceito, ou seja, licenciamento tem que obedecer a qual critério de qualidade? O licenciamento, quando o governo quer, é feito via ad referendum, porque os membros do conselho responsáveis por conceder o licenciamento não têm condições técnicas de viajar e conhecer o empreendimento no local, por vezes é preciso votar 20, 30 projetos em uma reunião, e as pessoas fazem isso mecanicamente. Mas e depois, quando ocorre um acidente, essas pessoas teriam que pagar por isso? Elas deveriam ser presas? Esse tipo de licenciamento gera irresponsabilidade.
O licenciamento, a meu ver, deveria ter uma proposta: qualquer atividade econômica não pode lesar o ecossistema, ou seja, se existe um ecossistema, ele tem que ser preservado. É possível fazer uma intervenção pontual, mas que não desequilibre e que não comprometa a sobrevivência do ecossistema como um todo na bacia hidrográfica, na microbacia. O licenciamento tem de ser vinculado por GPS, tem de verificar se a obra está localizada na região da microbacia e qual será o impacto disso para a vegetação, para os peixes, para a qualidade da água. Se isso fosse feito, teríamos o que chamo de “ecologizar a economia”.
Atualmente o meio ambiente está subordinado aos interesses das empresas. O que propomos é que o meio ambiente seja soberano, ou seja, que os empreendimentos econômicos sejam feitos levando em conta os investimentos necessários para não destruir o ecossistema local. Então, é preciso ter um licenciamento vinculado por GPS a uma localização, somando os efeitos conjuntos das empresas que atuam nessa região. Hoje o licenciamento é isolado para cada empresa, e não são somados seus impactos na bacia e na microbacia, o que faz com que se possa destruir completamente uma bacia de porte médio.
Portanto, “ecologizar a economia” significa subordinar as empresas e seu modo de trabalhar à sobrevivência dos ecossistemas, desenvolvendo uma política ambiental correta, em que a produção não comprometa a sobrevivência do ecossistema.
IHU On-Line - Já é possível estimar qual é o impacto da explosão da barragem para os recursos hídricos da região? Pode nos dar um panorama de qual foi o impacto da explosão da barragem nos recursos hídricos da região? Qual é o impacto específico da lama que chegou ao leito do Rio Doce? Que outros rios e afluentes serão afetados por conta da situação do Rio Doce?
Apolo Lisboa – Governador Valadares, que é uma cidade grande que tem quase o mesmo tamanho de Montes Claros, está completamente sem água. O abastecimento de água na cidade está sendo feito por um trem de ferro, que é da própria Vale.
A cidade tem um reservatório, mas com a suspensão da captação da água no rio, não é possível abastecer a cidade. Todas as cidades às margens do Rio Doce estão comprometidas porque não podem pegar água, porque a lama que está nos rios tem muito mineral e metal e ainda não se tem a dimensão de quais serão as consequências disso. Por incrível que pareça, o governo não tinha um estudo detalhado sobre a composição da lama nas barragens.
Ministério Público e o governo tinham que ter um estudo. Estavam esperando o rompimento da barragem para fazer o exame depois? Não tem sentido, não se pode confiar no que as mineradoras dizem, pois elas dizem que as barragens são muito seguras.

 


Uma coisa interessante – e terrível – é que em todo lugar rico em ouro e em minério de ferro a população é pobre

IHU On-Line - Quantas cidades estão na margem do Rio Doce?
Apolo Lisboa – Ao todo, na volta da bacia do Rio Doce, existem 222 cidades, mas na margem devem ser em torno de 50, porque a bacia do Rio Doce é muito espalhada e, portanto, recebe muitos afluentes. No entanto, o rio estava quase sem água porque a retirada de água do rio é muito grande e isso tem gerado um fenômeno em Minas Gerais, que é a seca subterrânea: a retirada de água através de poços artesianos e bombas é tão grande que os rios estão secando. Não há um controle nas outorgas – eu digo que são “autorgas” porque as pessoas chegam e tiram água por conta própria.
Para se ter ideia da situação, o governo do estado de Minas Gerais não tinha nenhum hidrólogo empregado no Instituto Mineiro de Gestão das Águas – IGAM, e as outorgas são dadas às cegas. Inclusive, várias pessoas que concediam outorgas no estado nos últimos anos, hoje são funcionárias das mineradoras; pessoas que já foram diretoras dos órgãos do estado, hoje são diretoras das mineradoras. É uma promiscuidade muito grande; o Estado não exerce seu papel nem cumpre as leis.
Eu fiquei sabendo, através de um ex-funcionário de uma mineradora, que quando os fiscais do estado chegam às mineradoras, já chegam brincando e dizendo: “onde vamos almoçar hoje?”, porque são bem recebidos com almoços. Por fim, o laudo deles é o que a mineradora faz, pois em geral as mineradoras se autofiscalizam. É uma vergonha a relação de promiscuidade entre o governo de Minas Gerais e as mineradoras - e essa relação se dá no governo do PT, do PSDB e outros, porque eles não têm diferença nenhuma na visão de mundo sobre a questão ambiental. Portanto, eles agem de forma corrupta porque são financiados pelas mineradoras. No caso da Assembleia Legislativa, 67% dos deputados atuais foram financiados por mineradoras e, no plano federal, há dois deputados – Leonardo Quintão, do PMDB, e Gabriel Guimarães, do PT – que são os presidentes da Comissão do Marco Regulatório da Mineração na Câmara Federal.
IHU On-Line - Quais são os principais problemas ambientais ocasionados por conta da mineração em Minas Gerais, para os quais se chama pouca atenção?
Apolo Lisboa – A mineração feita próximo a Belo Horizonte, conforme o solo, tem muito teor de arsênio, porque o arsênio é associado ao ouro e ao minério de ferro. No Rio das Velhas, a partir de Nova Lima - onde a empresa inglesa Morro Velho trabalhou durante muito tempo –, há um grande derrame de arsênio permanente, porque quando eles furam os buracos e fazem as minas, o arsênio começa a ser levado pelas águas da chuva. Em Paracatu, próximo a Brasília, tem a mina canadense Kinross, que contaminou o ar da cidade e a água.
Portanto, Minas Gerais está vivendo o flagelo da mineração. Claro que grande parte da riqueza de Minas vem da mineração, mas a mineração não precisava ser feita desse jeito, ela tem de respeitar as pessoas, os animais e os ecossistemas. No caso do Rio Doce, o prejuízo à fauna é enorme, imagine os peixes sendo sufocados pela falta de oxigênio, porque a lama grossa está ocupando todo o espaço dos rios. Além disso, os pássaros e os animais terrestres estão sem acesso à água.
Porém essa situação já ocorre normalmente em Minas Gerais. Não nesta dimensão de tragédia abrupta, mas através do lançamento de esgotos nos rios. Não existem estações de tratamento de esgotos em quase nenhum dos municípios, mesmo Belo Horizonte começou a construir as Estações de Tratamento de Efluentes - ETEs em 2001, e hoje trata 50% do esgoto, mas não 100%. Então, estamos vivendo na pré-história em matéria de saneamento.
IHU On-Line - Quais as implicações do arsênio ao meio ambiente e à saúde?
Apolo Lisboa – O arsênio tem forma orgânica e inorgânica. Então, essa forma inorgânica que está no solo, que está inerte, se torna perigosa na medida em que cai no metabolismo e é absorvida. São duas formas de arsênio, eu não posso dar detalhes do metabolismo do arsênio, mas ele é um veneno muito perigoso quando invade o corpo humano e passa a fazer parte do metabolismo.
IHU On-Line - Os municípios que têm mineradoras são social e economicamente bastante precários e pobres. Quais são os principais problemas sociais e econômicos que evidencia acerca desse aspecto? O que seria uma alternativa para mudar esse cenário?
Apolo Lisboa – Uma coisa interessante – e terrível – é que em todo lugar rico em ouro e em minério de ferro a população é pobre. Isso porque a mineração gera empregos, mas causa um transtorno doido porque transfere milhares de homens para essa região – como aconteceu em Serra Pelada – e com isso vem junto a prostituição, drogas, violência e crimes. Depois, quando passa o ciclo de mineração, ficam os pobres e a decadência das escolas e dos postos médicos. Portanto, do ponto de vista da qualidade de vida humana, a mineração é uma ilusão.
Quando uma mineradora anuncia sua ida para uma região, faz uma propaganda de que os imóveis serão valorizados e que as pessoas poderão vender seus terrenos, mas depois vem o lado cruel. Há cidades da região de Minas Gerais em que a mineração invadiu a Serra do Cipó, a Serra Geral, que era um santuário ambiental. No município de Serro, perto deDiamantina, a Câmara de Vereadores, por dez a zero, votou pela não aceitação da mineradora por conta do que vem acontecendo nas cidades vizinhas.
Outro problema enfrentado pelos municípios onde há mineradoras diz respeito à água. Em Minas Gerais, por exemplo, existe o mineroduto – canos de mais ou menos um metro de diâmetro, que, ao transportar minério dos garimpos até o porto, usam uma grande quantidade de água, a qual poderia ser usada para abastecer, por exemplo, várias vezes o município de Belo Horizonte.

“Não dá mais para admitir que deputados financiados por mineradoras sejam relatores e presidentes da Comissão que está avaliando o Marco da Mineração

IHU On-Line - Como a ruptura da barragem da Samarco está repercutindo em Minas Gerais? Como o poder público tem se manifestado?
Apolo Lisboa – O governador Fernando Pimentel (PT) cometeu uma gafe enorme, ao conceder uma entrevista na sede da empresa Samarco Vale, no momento em que ele deveria ter concedido uma entrevista na prefeitura ou em algum espaço público. O Secretário de Assuntos Minerários de Minas Gerais [José Guilherme Ramos] é genro do presidente do Sindicato das Mineradoras - Sindicato das Indústrias Extrativas de MG / Sindiextra [José Fernando Coura] e foi nomeado subsecretário de assuntos minerários. A presidente Dilma Rousseff visitou a região uma semana depois e anunciou a multa à empresa, o que não terá impacto no sentido de resolver os problemas gerados pelo rompimento da barragem. A punição foi usada para dizer que o governo é enérgico, mas não é. Governo que é financiado por mineradoras apoia essa política. Na verdade, isso é um jogo de cena, porque a presidente está com dificuldades políticas e está precisando de apoio.
Nós não temos visto mudanças significativas na questão ambiental: a ministra do Meio Ambiente [Izabella Teixeira] não tem papel nenhum, então não temos uma política estatal séria para o meio ambiente, em defesa do território brasileiro, em defesa do ecossistema e do solo - a erosão e o desmatamento tomam conta de todo o lado. O Ministério do Meio Ambiente e autoridades tomam medidas isoladas e pontuais que não têm efeito nenhum, só para divulgar que estão fazendo alguma coisa.
O estado de Minas Gerais, em relação à mineração, herdou uma política de séculos e o governo não tem uma política ambiental. Todos os secretários de Meio Ambiente, com alguma rara exceção, são indicados pela Federação das Indústrias. A Federação das Indústrias indica o secretário de Indústria e Comércio, indica o secretário de Agricultura junto com a Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais - FAEMG e indica o secretário do Meio Ambiente.
IHU On-Line - O que deve ser considerado a partir de agora, tendo em vista a pauta do Marco da Mineração?
Apolo Lisboa – Não dá mais para admitir que deputados financiados por mineradoras sejam relatores e presidentes da Comissão que está avaliando o Marco da Mineração. Também não podemos aceitar que as mineradoras financiem governadores e deputados. Não podemos aceitar financiamentos secretos, inclusive de pessoa física; tudo tem que ser declarado.
Temos que “ecologizar a economia”, a atividade econômica tem que estar dentro dos limites de sustentabilidade ecossistêmica, porque sustentabilidade também virou uma palavra oca, está virando marketing de empresas, e a economia não pode extrapolar os limites ambientais explícitos; é preciso ser rígido.
A maior mudança é a da mentalidade, mas a única forma de ter um governo que pense desse modo é se a população que foi à rua em junho de 2013 volte e defina as eleições gerais no Brasil.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Apolo Lisboa – Devemos responsabilizar criminalmente os governantes – prefeitos, governadores e presidentes – e criar o impeachment ambiental, porque a questão ambiental não entra na agenda política por causa da corrupção e também por conta de uma mentalidade atrasada, que não entende a questão ambiental. Infelizmente a nossa presidente e o governador de Minas Gerais não entendem nada de meio ambiente, eles acham que o meio ambiente é insumo: água, terra, minério; são pessoas que tiveram uma formação apenas da sociologia marxista e não incluíram Charles Darwin, os animais, a vida e a evolução no seu modo de pensar.