Necrogoverno
Apresentação
Reproduzimos abaixo a parte mais substancial do texto de nosso parceiro do NESP, porque ela traz uma chave de grande valor para entender os rumos do atual governo.
Reproduzimos abaixo a parte mais substancial do texto de nosso parceiro do NESP, porque ela traz uma chave de grande valor para entender os rumos do atual governo.
por Robson Sávio – NESP –
Não há dúvida: a violência no Brasil é estrutural. Desde o período colonial, foi sendo constituído um perverso arranjo social e político no qual os brancos e os proprietários de terra se impunham sobre os demais.
A República, um golpe de elites (militares, maçons, proprietários de terra, juristas), nunca se constituiu em realidade de fato e os ideais republicanos jamais chegaram à plenitude. Desde então, as políticas de governo (ou a falta delas) ratificam a disposição das relações de poder: consolidam privilégios aos quais apenas determinadas categorias sociais têm acesso.
Nos raros momentos históricos em que houve aumento da participação social e expansão de direitos dos cidadãos, parte da sociedade, notadamente os privilegiados das classes média, saíram dos armários da hipocrisia; se ressentiram e reivindicaram o emprego de critérios meritocráticos.
Para justificar essa ordem social perversa, a violência cultural opera de diferentes maneiras: naturaliza as desigualdades, inverte as relações de causa e efeito, reduz ao silêncio as contradições da sociedade. Cria-se um imaginário social de acordo com o qual a violência direta, caracterizada pelos crimes, e a (violência) estrutural são tratadas como consequência natural do mau procedimento das vítimas (pobres, negros, índios, grupos vulneráveis…). A violência, portanto, deixa de ser vista como tal e passa a ser considerada algo normal e natural.
Depois da traumática experiência da ditadura militar, novos ares sopraram em nossas plagas. Abria-se a possibilidade de construção de uma nação socialmente justa, nos moldes de um estado de bem-estar social.
Mas, já nos inícios dos anos de 1990, o vento impetuoso do neoliberalismo, vindo do Norte, ameaçava, novamente, o sonho dos brasileiros.
No neoliberalismo, prevalece a ideia segundo a qual o poder público, portanto, o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.
O político deixa de ser um representante legítimo a mediar os vários interesses e conflitos sociais, e passa a ser mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos dos cidadãos e dos interesses públicos.
Governos democrático-populares implementaram políticas de expansão do estado social por mais de uma década. E, paradoxalmente, conviveram pacificamente com a violência estrutural, sem proporem reformas profundas no aparato estatal. E enquanto, governo e sociedade, todos “dormíamos em berço esplêndido”, as velhas raposas sedentas de poder – as elites que sempre impuseram dor e sofrimento ao povo brasileiro – tramaram nos bastidores e trataram de articular, em parceria com os Estados Unidos, um golpe parlamentar-jurídico-midiático, “com o Supremo, com tudo”, e retomaram o poder.
Por isso, o golpe de 2016 foi produzido dentro do arcabouço jurídico-institucional para salvaguardar os interesses de seus patrocinadores (banqueiros, industriários, os coronéis do agronegócio, rentistas, especuladores e elites da classe média – médicos, militares, operadores de direito, advogados, juízes, promotores, líderes religiosos conservadores) em detrimento da Constituição e dos interesses populares, com vistas a interromper a construção de um estado social.
Nesse novo contexto, a sanha dessas elites não se contentava mais com a implantação do neoliberalismo. Radicalizaram e querem implantar um estado ultraliberal.
É dentro desse novo quadro que foi eleito e se apresenta, faceiro, o governo Bolsonaro. Para apoiá-lo, utilizam estratégias de uma guerra semiótica e híbrida, via redes sociais – esse circo de misérias e horrores que move verdadeiros zumbis, incapazes de utilizarem a razão e o bom senso.
Saímos de governos que historicamente se impuseram ou foram coniventes com a violência estrutural para um necrogoverno: um governo que mata e destrói.
Senão, vejamos: na agricultura, com a liberação de dezenas de agrotóxicos; no meio ambiente, a auto-regulamentação e o alinhamento com o agronegócio na sua feição mais predatória; na ciência e tecnologia, profundos cortes nos programas de pesquisas e bolsas; na cultura, uma guerra obscurantista; na defesa, a tentativa de cessão de bases aos Estados Unidos, a venda da Embraer e a fragilização dos projetos estratégicos; no desenvolvimento agrário, retrocesso total da política de reforma agrária e caçada aos movimentos sociais do campo; nas políticas de direitos humanos, a criminalização dos movimentos sociais, a perseguição aos indígenas, usuários de drogas, moradores de rua, LGBT’s; na educação, o escola sem partido, o ensino à distância, o corte de bolsas de pesquisa e dos orçamentos de todas as modalidades de ensino, principalmente universitário, e a reforma curricular; na economia, a “abertura” do setor financeiro aos megabancos estrangeiros e a destruição dos bancos públicos; na indústria, a abertura comercial radical e unilateral; na justiça, o apoio ao armamento, o “pacote Moro”, a liberação e aprovação da violência policial; no setor energético, a destruição gradual da Petrobrás e da Eletrobrás; na previdência, a privatização e destruição da Previdência Pública; nas relações exteriores, o alinhamento incondicional com os Estados Unidos, a saída disfarçada dos BRICS e a desarticulação do Itamaraty, além da violação dos princípios de não intervenção e autodeterminação; na saúde, a liberação da venda de cigarros, a gradual privatização do SUS, a volta dos manicômios, a internação compulsória, o investimento em comunidades terapêuticas acusadas de violações de direitos, o descontrole das epidemias; no trabalho, a extinção do Ministério e forte redução de direitos; nos transportes, a precarização do sistema de controle de velocidade (radares), a disfarçada liberação de ¨rebites” para motoristas, a concessão de rodovias, ferrovias e portos em larga escala.
Não se trata da redução do Estado ao mínimo; mas sua quase eliminação. Inclusive com a criminalização dos servidores, o corte de cargos, a proibição de concursos públicos e a desconcentração de competências da União.
Um governo que aposta no esgarçamento total do Estado e do tecido social e no estímulo ao hiper-individualismo, como corolários do autoritarismo ultraliberal.
Bolsonaro e seu clã agem como uma espécie de “agitadores fascistas”: demandam adesão ideológica das massas, num jogo entre ameaçadores versus ameaçados a justificar uma cruzada moralista, autoritária e religiosa contra os valores e os direitos humanos.
Radicalizam a raiz da brutalidade constitutiva da sociedade brasileira (a violência estrutural), expressas na violência da virilidade patriarcal, no autoritarismo da caserna e da justiça e no nosso cinismo de nascença. Tudo como se fosse um jogo onde a violência e o gracejo se misturam com a brutalidade sanguinária, a rigidez do militarismo, o moralismo religioso e os desejos pervertidos da construção de uma sociedade governada por “homens puros e de bem”.
No governo Bolsonaro instala-se o ultraliberalismo que é uma forma contemporânea do totalitarismo. Trata-se de um necrogoverno.
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