terça-feira, 27 de agosto de 2019

Profecia: memória perigosa, por Marcelo Barros



Por Marcelo Barros



Nessa semana, no Brasil, as comunidades cristãs e as pessoas que buscam a justiça lembram com saudade de três bispos que exerceram sua missão de modo profético e nos deixaram no mês de agosto. No dia 27, celebramos o 20º aniversário da partida de Dom Hélder Câmara (1999), arcebispo emérito de Olinda e Recife, profeta da não violência e da ação justiça e paz. Sete anos depois, (2006), na mesma data, partiu Dom Luciano Mendes de Almeida (2006), arcebispo de Mariana, MG, considerado pai dos pobres e que, com sua sabedoria, ajudou muito a Igreja Católica na América Latina. Na mesma data, em 2017, falecia, em Belo Horizonte, Dom José Maria Pires, ex-arcebispo de João Pessoa e pioneiro da pastoral das comunidades afrodescendentes no Brasil.
Esses profetas viveram e atuaram em tempos difíceis de um Brasil sob ditadura militar e dentro de uma Igreja Católica, dominada pelo conservadorismo e pela tendência de centralização autoritária.
Atualmente, no Brasil, temos uma realidade política difícil que favorece a desigualdade social, a marginalização dos povos indígenas, das comunidades negras e de todos os mais pobres. Do outro lado, em Roma, na coordenação das Igrejas de comunhão católico-romana, temos o papa Francisco que propõe o modelo de uma Igreja Sinodal e a valorização das Igrejas locais. A esses bispos profetas, não teria sido necessário o papa Francisco pedir que fossem à periferia e tornassem a Igreja pobre e dos pobres. Eles já viviam isso por convicção de fé e por terem sido confirmados nesse caminho pelo Concílio Vaticano II e pela conferência latino-americana de Medellín (1968). Dom Luciano se tornou bispo depois do Concílio. Dom José Maria foi ordenado bispo durante o Concílio, mas assumiu a arquidiocese de João Pessoa dois anos depois do Concílio (1967). Durante o Concílio, Dom Hélder liderou um grupo de mais de 40 bispos que, no dia 16 de novembro de 1965, se reuniu em Roma e assinou um compromisso de viver como pobres e ajudar a Igreja a se inserir no meio dos pobres como Igreja serva, pobre e missionária. empobrecidos.
Há mais de seis anos, o papa Francisco se tornou bispo de Roma. Ele revalorizou os princípios fundamentais da renovação eclesial do Concílio Vaticano II: o caráter de Igreja particular de cada diocese, a responsabilidade de todos os bispos junto com o papa pela Igreja Universal e a necessidade da Igreja retomar o diálogo amoroso e humilde com a humanidade, que, há 60 anos, o papa João XXIII iniciou e que, a partir do final dos anos 70, foi interrompido.

Retomar agora o diálogo com a humanidade é mais exigente do que exige a capacidade de interpretar os sinais dos tempos atuais e escutar os apelos e clamores do mundo dos pobres. Para isso, é preciso uma coragem profética que Dom Helder Camara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires tiveram.  A eles, o papa Francisco não precisaria pedir que se libertassem do clericalismo. Eles se fizeram irmãos do povo e se viam como pessoas comuns. Junto com outros bispos do seu tempo, souberam superar preconceitos e dialogar com a parte da humanidade que procura a transformação social e tem fome e sede de justiça e de um mundo mais igualitário e livre.
Na história, muitas vezes, a ideia de transformação social esteve ligada a ódio, violência e luta armada. Hoje, precisamos resgatar a meta de uma revolução social e política baseada em valores humanos e em uma nova ética. Essa revolução deve radicalizar a democracia, tornando-a mais verdadeira e profunda. Toma a educação como tarefa prioritária para transformar o mundo e, principalmente, deve partir dos mais pobres. Por isso, valoriza as culturas indígenas e negras e se solidariza a todas as forças que trabalham pela transformação social da América Latina e Caribe.
Quem é cristão participa desse processo, fazendo a memória perigosa dos nossos profetas e profetizas. Figuras como as de Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida e Dom José Maria Pires nos animam nesse caminho e nos lembram o que escreveu Paulo aos romanos: “Não se conformem com esse mundo, mas o transformem pela renovação de suas mentes” (Rm 12, 1).

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Bob Fernandes: Amazônia queima e os verbos e gestos de Bolsonaro

Bob Fernandes:

 A palavra antecede e autoriza.

Ao longo de anos Bolsonaro disse e repetiu o que e como pensa o meio ambiente. O que pensa dos povos indígenas. Já como presidente, Bolsonaro tem rasgado o verbo sobre o que pensa e o quer da Amazônia. Quer abrir seus territórios para os garimpeiros e exploração de minérios e do que mais for alcançável na Amazônia.

Assista o vídeo:


segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Sem o SUS, é a barbárie, por Dráuzio Varella




ARTIGO DO DRÁUZIO VARELLA, DE LEITURA OBRIGATÓRIA O SUS foi uma das principais conquistas da Esquerda para a sociedade brasileira.

 SEM O SUS , É A BARBÁRIE

Dráuzio Varella

O Brasil foi ousado ao levar assistência médica gratuita a toda a população “Sem o SUS, é a barbárie.”

A frase não é minha, mas traduz o que penso. Foi dita por Gonzalo Vecina, da Faculdade de Saúde Pública da USP, um dos sanitaristas mais respeitados entre nós, numa mesa redonda sobre os rumos do SUS, na Fundação Fernando Henrique Cardoso. Estou totalmente de acordo com ela, pela simples razão de que pratiquei medicina por 20 anos antes da existência do SUS.

 Talvez você não saiba que, naquela época, só os brasileiros com carteira assinada tinham direito à assistência médica, pelo antigo INPS. Os demais pagavam pelo atendimento ou faziam fila na porta de meia dúzia de hospitais públicos espalhados pelo país ou dependiam da caridade alheia, concentrada nas santas casas de misericórdia e em algumas instituições religiosas.

 Eram enquadrados na indigência social os trabalhadores informais, os do campo, os desempregados e as mulheres sem maridos com direito ao INPS. As crianças não tinham acesso a pediatras e recebiam uma ou outra vacina em campanhas bissextas organizadas nos centros urbanos, de preferência em períodos eleitorais.

 Então, 30 anos atrás, um grupo de visionários ligados à esquerda do espectro político defendeu a ideia de que seria possível criar um sistema que oferecesse saúde gratuita a todos os brasileiros. Parecia divagação de sonhadores.

 Ao saber que se movimentavam nos corredores do Parlamento, para convencer deputados e senadores da viabilidade do projeto, achei que levaríamos décadas até dispor de recursos financeiros para a implantação de políticas públicas com tal alcance.

 Menosprezei a determinação, o compromisso com a justiça social e a capacidade de convencimento desses precursores. Em 1988, escrevemos na Constituição: “Saúde é direito do cidadão e dever do Estado”.

 Por incrível que pareça, poucos brasileiros sabem que o Brasil é o único país com mais de 100 milhões de habitantes que ousou levar assistência médica gratuita a toda a população.

 Falamos com admiração dos sistemas de saúde da Suécia, da Noruega, da Alemanha, do Reino Unido, sem lembrar que são países pequenos, organizados, ricos, com tradição de serviços de saúde pública instalados desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

 Sem menosprezá-los, garantir assistência médica a todos em lugares com essas características é brincadeira de criança perto do desafio de fazê-lo num país continental, com 210 milhões de habitantes, baixo nível educacional, pobreza, miséria e desigualdades regionais e sociais das dimensões das nossas.

 Para a maioria dos brasileiros, infelizmente, a imagem do SUS é a do pronto-socorro com macas no corredor, gente sentada no chão e fila de doentes na porta. Tamanha carga de impostos para isso, reclamam todos.
 Esquecem-se de que o SUS oferece gratuitamente o maior programa de vacinações e de transplantes de órgãos do mundo.

Nosso programa de distribuição de medicamentos contra a Aids revolucionou o tratamento da doença nos cinco continentes.

Não percebem que o resgate chamado para socorrer o acidentado é do SUS, nem que a qualidade das transfusões de sangue nos hospitais de luxo é assegurada por ele. Nossa Estratégia Saúde da Família, com agentes comunitários em equipes multiprofissionais que já atendem de casa em casa dois terços dos habitantes, é citada pelos técnicos da Organização Mundial da Saúde como um dos mais importantes do mundo.

 Pouquíssimos têm consciência de que o SUS é, disparado, o maior e o mais democrático programa de distribuição de renda do país. Perto dele, o Bolsa Família não passa de pequena ajuda. Enquanto investimos no SUS cerca de R$ 270 bilhões anuais, o orçamento do Bolsa Família mal chega a 10% disso.

Os desafios são imensos. Ainda nem nos livramos das epidemias de doenças infecciosas e parasitárias e já enfrentamos os agravos que ameaçam a sobrevivência dos serviços de saúde pública dos países mais ricos: envelhecimento populacional, obesidade, hipertensão, diabetes, doenças cardiovasculares, câncer, degenerações neurológicas.

 Ao SUS faltam recursos e gestão competente para investi-los de forma que não sejam desperdiçados, desviados pela corrupção ou para atender a interesses paroquiais e, sobretudo, continuidade administrativa. Nos últimos dez anos tivemos 13 ministros da Saúde.

 Apesar das dificuldades, estamos numa situação incomparável à de 30 anos atrás.

Devemos defender o SUS e nos orgulhar da existência dele.

 Drauzio Varella Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Necrogoverno, por Robson Sávio Reis Souza

fepolitica.org.br






Necrogoverno

Robson Sávio Reis Souza

Apresentação
Reproduzimos abaixo a parte mais substancial do texto de nosso parceiro do NESP, porque ela traz uma chave de grande valor para entender os rumos do atual governo.
por Robson Sávio – NESP – 
Não há dúvida: a violência no Brasil é estrutural. Desde o período colonial, foi sendo constituído um perverso arranjo social e político no qual os brancos e os proprietários de terra se impunham sobre os demais.
A República, um golpe de elites (militares, maçons, proprietários de terra, juristas), nunca se constituiu em realidade de fato e os ideais republicanos jamais chegaram à plenitude. Desde então, as políticas de governo (ou a falta delas) ratificam a disposição das relações de poder: consolidam privilégios aos quais apenas determinadas categorias sociais têm acesso.
Nos raros momentos históricos em que houve aumento da participação social e expansão de direitos dos cidadãos, parte da sociedade, notadamente os privilegiados das classes média, saíram dos armários da hipocrisia; se ressentiram e reivindicaram o emprego de critérios meritocráticos.
Para justificar essa ordem social perversa, a violência cultural opera de diferentes maneiras: naturaliza as desigualdades, inverte as relações de causa e efeito, reduz ao silêncio as contradições da sociedade. Cria-se um imaginário social de acordo com o qual a violência direta, caracterizada pelos crimes, e a (violência) estrutural são tratadas como consequência natural do mau procedimento das vítimas (pobres, negros, índios, grupos vulneráveis…). A violência, portanto, deixa de ser vista como tal e passa a ser considerada algo normal e natural.
Depois da traumática experiência da ditadura militar, novos ares sopraram em nossas plagas. Abria-se a possibilidade de construção de uma nação socialmente justa, nos moldes de um estado de bem-estar social.
Mas, já nos inícios dos anos de 1990, o vento impetuoso do neoliberalismo, vindo do Norte, ameaçava, novamente, o sonho dos brasileiros.
No neoliberalismo, prevalece a ideia segundo a qual o poder público, portanto, o Estado, deve ser administrado como uma empresa. O Estado é pensado a partir de interesses privados; deixa de ter como base fundante o interesse público, respaldado na soberania popular, para se preocupar e garantir os interesses de uns poucos.
O político deixa de ser um representante legítimo a mediar os vários interesses e conflitos sociais, e passa a ser mero gestor, ocupado e preocupado com a eficiência de toda uma estrutura pública que, no neoliberalismo, é direcionada a maximizar os interesses econômicos e financeiros dos detentores do poder econômico em detrimento dos direitos dos cidadãos e dos interesses públicos.
Governos democrático-populares implementaram políticas de expansão do estado social por mais de uma década. E, paradoxalmente, conviveram pacificamente com a violência estrutural, sem proporem reformas profundas no aparato estatal. E enquanto, governo e sociedade, todos “dormíamos em berço esplêndido”, as velhas raposas sedentas de poder – as elites que sempre impuseram dor e sofrimento ao povo brasileiro – tramaram nos bastidores e trataram de articular, em parceria com os Estados Unidos, um golpe parlamentar-jurídico-midiático, “com o Supremo, com tudo”, e retomaram o poder.
Por isso, o golpe de 2016 foi produzido dentro do arcabouço jurídico-institucional para salvaguardar os interesses de seus patrocinadores (banqueiros, industriários, os coronéis do agronegócio, rentistas, especuladores e elites da classe média – médicos, militares, operadores de direito, advogados, juízes, promotores, líderes religiosos conservadores) em detrimento da Constituição e dos interesses populares, com vistas a interromper a construção de um estado social.
Nesse novo contexto, a sanha dessas elites não se contentava mais com a implantação do neoliberalismo. Radicalizaram e querem implantar um estado ultraliberal.
É dentro desse novo quadro que foi eleito e se apresenta, faceiro, o governo Bolsonaro. Para apoiá-lo, utilizam estratégias de uma guerra semiótica e híbrida, via redes sociais – esse circo de misérias e horrores que move verdadeiros zumbis, incapazes de utilizarem a razão e o bom senso.
Saímos de governos que historicamente se impuseram ou foram coniventes com a violência estrutural para um necrogoverno: um governo que mata e destrói.
Senão, vejamos: na agricultura, com a liberação de dezenas de agrotóxicos; no meio ambiente, a auto-regulamentação e o alinhamento com o agronegócio na sua feição mais predatória; na ciência e tecnologia, profundos cortes nos programas de pesquisas e bolsas; na cultura, uma guerra obscurantista; na defesa, a tentativa de cessão de bases aos Estados Unidos, a venda da Embraer e a fragilização dos projetos estratégicos; no desenvolvimento agrário, retrocesso total da política de reforma agrária e caçada aos movimentos sociais do campo; nas políticas de direitos humanos, a criminalização dos movimentos sociais, a perseguição aos indígenas, usuários de drogas, moradores de rua, LGBT’s; na educação, o escola sem partido, o ensino à distância, o corte de bolsas de pesquisa e dos orçamentos de todas as modalidades de ensino, principalmente universitário, e a reforma curricular; na economia, a “abertura” do setor financeiro aos megabancos estrangeiros e a destruição dos bancos públicos; na indústria, a abertura comercial radical e unilateral; na justiça, o apoio ao armamento, o “pacote Moro”, a liberação e aprovação da violência policial; no setor energético, a destruição gradual da Petrobrás e da Eletrobrás; na previdência, a privatização e destruição da Previdência Pública; nas relações exteriores, o alinhamento incondicional com os Estados Unidos, a saída disfarçada dos BRICS e a desarticulação do Itamaraty, além da violação dos princípios de não intervenção e autodeterminação; na saúde, a liberação da venda de cigarros, a gradual privatização do SUS, a volta dos manicômios, a internação compulsória, o investimento em comunidades terapêuticas acusadas de violações de direitos, o descontrole das epidemias; no trabalho, a extinção do Ministério e forte redução de direitos; nos transportes, a precarização do sistema de controle de velocidade (radares), a disfarçada liberação de ¨rebites” para motoristas, a concessão de rodovias, ferrovias e portos em larga escala.
Não se trata da redução do Estado ao mínimo; mas sua quase eliminação. Inclusive com a criminalização dos servidores, o corte de cargos, a proibição de concursos públicos e a desconcentração de competências da União.
Um governo que aposta no esgarçamento total do Estado e do tecido social e no estímulo ao hiper-individualismo, como corolários do autoritarismo ultraliberal.
Bolsonaro e seu clã agem como uma espécie de “agitadores fascistas”: demandam adesão ideológica das massas, num jogo entre ameaçadores versus ameaçados a justificar uma cruzada moralista, autoritária e religiosa contra os valores e os direitos humanos.
Radicalizam a raiz da brutalidade constitutiva da sociedade brasileira (a violência estrutural), expressas na violência da virilidade patriarcal, no autoritarismo da caserna e da justiça e no nosso cinismo de nascença. Tudo como se fosse um jogo onde a violência e o gracejo se misturam com a brutalidade sanguinária, a rigidez do militarismo, o moralismo religioso e os desejos pervertidos da construção de uma sociedade governada por “homens puros e de bem”.
No governo Bolsonaro instala-se o ultraliberalismo que é uma forma contemporânea do totalitarismo. Trata-se de um necrogoverno.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

O pensamento de Darcy Ribeiro contra o viralatismo atual

Jornal GGN




Dallagnol, Lava Jato e o pensamento de Darcy Ribeiro, por Rafael Molina Vita

Mais uma vez o moralismo de fachada se mostrou destruidor. Vivemos uma situação surreal, com o protofascismo se espalhando por vários setores da sociedade, promovendo ataques aos direitos humanos em todas as suas dimensões


Dallagnol, Lava Jato e o pensamento de Darcy Ribeiro

por Rafael Molina Vita

O procurador Deltan Dallagnol, figura central na Operação Lava Jato, enquanto exercia suas funções no Ministério Público, rodava o país palestrando sobre as “10 medidas anticorrupção”. Estes eventos revelavam um agente de estado que atribuía a si mesmo uma missão quase divina, a de purificação da política, e possuía a visão de que os colonizadores portugueses eram os responsáveis por nossa “desgraça”, pois seriam impuros, degredados, ao contrário dos ingleses, fruto da ética protestante, de religiosos com o objetivo de construir uma nação “pura”, os Estados Unidos da América. Nenhuma palavra sobre a nossa escravidão de três séculos (que como bem aponta Jessé Souza, não existia em Portugal) ou sobre nossa histórica e brutal desigualdade de renda e concentração de terras.
O final da história, todo mundo sabe. Em nome desta missão divina de purificação, a força tarefa da Lava Jato passou como um trator por todos os direitos e garantias constitucionais, direitos estes conquistados através de séculos de lutas sociais e esforços políticos em prol de um mundo mais fraterno, especialmente após a hecatombe provocada pela segunda guerra mundial.
Mais uma vez o moralismo de fachada se mostrou destruidor. Vivemos uma situação surreal, com o protofascismo se espalhando por vários setores da sociedade, promovendo ataques aos direitos humanos em todas as suas dimensões (direitos políticos, sociais e meio ambiente). Neste cenário, uma minoria da população se beneficia, através de palestras remuneradas, especulação financeira, privatizações e nepotismo. Em suma: mais uma vez a ética humanista é deixada de lado em favor do deus dinheiro, tão familiar aos estadunidenses.
Não consigo imaginar algo tão antagônico a essa concepção lavajatiana como o pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro. Ele, que combatia o viralatismo do brasileiro e, ao contrário dos atuais dirigentes do nosso país, era um homem de fazimentos, ou seja, de realizações. Sua alma inquieta colaborou na criação da Universidade de Brasília, do Parque Indígena do Xingu. Foi o responsável pela criação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEP), pelo projeto cultural do Memorial da América Latina e pelo projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB). Suas obras, como o “O Povo Brasileiro- a formação e o sentido do Brasil” são reconhecidas internacionalmente.
Darcy não passou a vida escondido em um gabinete no sul do país. Viveu entre os índios, conheceu o Brasil profundo. Percorreu a América Latina em seu exílio imposto pela Ditadura Militar. Enfrentou os desafios da vida política como chefe da Casa Civil de João Goulart, vice-governador do Rio de Janeiro e senador. Toda essa experiência prática e acadêmica fundamentou sua confiança nas potencialidades do povo latino americano.
Então, nós fizemos um povo. Um povo capaz de herdar 10 mil anos de sabedoria indígena, de adaptação ao trópico e fazer uma civilização tropical. Depois é que o Europeu chega aqui, plantando trigo. Esse povo está aí e eu digo que somos a nova Roma (…). E por que nova Roma? Somos a maior massa latina”.
É inconcebível a ausência das principais obras dos intelectuais responsáveis pelo entendimento da formação no Brasil na grade curricular dos cursos de Direito. Como atuar de acordo com o interesse público sem entender as contradições e complexidades da sociedade brasileira? Sem estudar Celso Furtado, Milton Santos, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Nelson Werneck Sodré?
Para avançarmos como civilização, precisamos disputar a guerra cultural que procura nos reduzir a capachos estadunidenses, portadores de uma inferioridade congênita que sempre nos reduzirá a um papel de menor importância no sistema capitalista mundial. A Lava Jato e o neoliberalismo tardio de Paulo Guedes são os maiores exemplos de que essa cultura, difundida nos meios acadêmicos e de comunicação de massa, tem um potencial altamente destrutivo, não poupando nem as grandes Empresas de tecnologia nacional. A história do Brasil, especialmente a partir da revolução de 1930, se traduz no choque dessas duas concepções de Nação. 
Sobre a propalada preguiça latino-americana, deixe-me dizer que dizer-lhe que um operário da Volkswagen do México ou de São Paulo trabalha o mesmo ou mais que seu colega alemão, ganhando um salário cinco vezes menor. Os diretores e gerentes de cá é que ganham dez vezes mais que os de lá. O mesmo ocorre como o boia-fria do Paraná ou o vaqueiro da Bahia, que trabalham mais do que qualquer peão do Texas ou camponês galo, labutando em condições muito piores e ganhando dez vezes menos”.
Nestes tempos de anti-intelectualismo, resgatar Darcy é devolver a autoconfiança ao povo brasileiro.
Rafael Molina Vita – formado em Direito e membro  da ABJD (Associação Brasileira de Juristas pela Democracia).

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Doente de Brasil, por Eliane Brum


O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de troca da guarda.
O presidente Jair Bolsonaro durante cerimônia de troca da guarda.EVARISTO SA (AFP)


Doente de Brasil - Eliane Brum 
El País Brasil
Como resistir ao adoecimento num país (des)controlado pelo perverso da autoverdade
 Jair Bolsonaro é um perverso. Não um louco, nomeação injusta (e preconceituosa) com os efetivamente loucos, grande parte deles incapaz de produzir mal a um outro. O presidente do Brasil é perverso, um tipo de gente que só mantém os dentes (temporariamente, pelo menos) longe de quem é do seu sangue ou de quem abana  rabo para as suas ideias. 
Enquanto estiver abanando o rabo – se parar, será também mastigado. Um tipo de gente sem limites, que não se preocupa em colocar outras pessoas em risco de morte, mesmo que sejam funcionários públserviço do Estado, como os fiscais do IBAMA, nem se importa em mentir descaradamente sobre os números produzidos pelas próprias instituições governamentais desde que isso lhe convenha, como tem feito com as estatísticas alarmantes do desmatamento da Amazônia. 
 O Brasil está nas mãos deste perverso, que reúne ao seu redor outros perversos e alguns oportunistas. Submetidos a um cotidiano dominado pela autoverdade, fenômeno que converte a verdade numa escolha pessoal, e portanto destrói a possibilidade da verdade, os brasileiros têm adoecido. Adoecimento mental, que resulta também em queda de imunidade e sintomas físicos, já que o corpo é um só. É desta ordem os relatos que tenho recolhido nos últimos meses junto a psicanalistas e psiquiatras, e também a médicos da clínica geral, medicina interna e cardiologia, onde as pessoas desembarcam queixando-se de taquicardia, tontura e falta de ar. 
Um destes médicos, cardiologista, confessou-se exausto, porque mais da metade da sua clínica, atualmente, corresponde a queixas sem relação com problemas do coração, o órgão, e, sim, com ansiedade extrema e/ou depressão. Está trabalhando mais, em consultas mais longas, e inseguro sobre como lidar com algo para o qual não se sente preparado.
 O fenômeno começou a ser notado nos consultórios nos últimos anos de polarização política, que dividiu famílias, destruiu amizades e corroeu as relações em todos os espaços da vida, ao mesmo tempo em que a crise econômica se agravava, o desemprego aumentava e as condições de trabalho se deterioravam. Acirrou-se enormemente a partir da campanha eleitoral baseada no incitamento à violência produzida por Jair Bolsonaro em 2018. 
Com um presidente que, desde janeiro, governa a partir da administração do ódio, não dá sinais de arrefecer. Pelo contrário. A percepção é de crescimento do número de pessoas que se dizem “doentes”, sem saber como buscar a cura. 
 Vou insistir, mais uma vez, neste espaço, que precisamos chamar as coisas pelo nome. Não apenas porque é o mais correto a fazer, mas porque essa é uma forma de resistir ao adoecimento. Não é do “jogo democrático” ter um homem como Jair Bolsonaro na presidência. Tanto como não havia “normalidade” alguma em ter Adolf Hitler no comando da Alemanha. Não dá para tratar o que vivemos como algo que pode ser apenas gerido, porque não há como gerir a perversão. Ou o que mais precisa ser feito ou dito por Bolsonaro para perceber que não há gestão possível de um perverso no poder? Bolsonaro não é “autêntico”. Bolsonaro é um mentiroso.
 Podemos – e devemos – discutir como chegamos a ter um presidente que usa, como estratégia, a guerra contra todos que não são ele mesmo e o seu clã. Como chegamos a ter um presidente que mente sistematicamente sobre tudo. 
Podemos – e devemos discutir – como chegamos a ter um antipresidente. Assim como podemos – e devemos – perceber que a experiência brasileira está inserida num fenômeno global, que se reproduz, com particularidades próprias, em diferentes países.  
Esse esforço de entendimento do processo, de interpretação dos fatos e de produção de memória é insubstituível. Mas é necessário também responder ao que está nos adoecendo agora, antes que nos mate. 
 Em 10 de julho, o psiquiatra Fernando Tenório escreveu um post no Facebook que viralizou e foi replicado em vários grupos de Whatsapp. Aqui, um trecho: “Acabei de atender a um homem de 45 anos, negro, sem escolaridade. Nos últimos cinco anos, viu seus colegas de setor serem demitidos um a um e ele passou a acumular as funções de todos. Disse-me que nem reclamou por medo de ser o próximo da fila. Tem sintomas de esgotamento que descambam para ansiedade. 
Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. Se eu tivesse algum poder iria sugerir ao DSM (o manual de transtornos mentais da psiquiatria) esse novo diagnóstico. Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. Entrei agora na Internet e vi que a reforma da previdência corre para ser aprovada sem sustos. O povo, adoecido de Brasil, permanece inerte. Vai trabalhar sem direito a aposentadoria até morrer de Brasil”. 
 Não há normalidade nem jogo democrático quando um perverso governa a partir da administração do ódio e da mentira Alagoano da pequena Maribondo, Fernando Tenório fez residência e atuou na rede pública de saúde mental do Rio de Janeiro. Atualmente, mantém consultório na capital fluminense e atende trabalhadores de um sindicato do setor hoteleiro. O psiquiatra me conta, por telefone, que cresceu muito o número de pessoas que chegavam ao seu consultório com sintomas como taquicardia, desmaios na rua, sinais de esgotamento corporal, dores de cabeça frequentes, sentimentos depressivos. Eram pessoas que estavam objetiva e subjetivamente esgotadas pela precarização das condições de trabalho, como jornada excessiva, acúmulo de funções, metas impossíveis de cumprir, falta de perspectivas de mudança, insegurança extrema. Tinham um “trabalho de merda” e, ao mesmo tempo, medo de perder o “trabalho de merda”, como testemunharam acontecer com vários colegas.
 O psiquiatra diz que ele mesmo se descobriu adoecido meses atrás. “Fiquei muito mal, porque me senti quase um traficante de drogas legais. Estava tratando uma crise, que é social, no indivíduo. E, de certo modo, ao dar medicamentos, estava tornando essa pessoa apta a sofrer mais, porque a jogava de volta ao trabalho.” 
Na sua avaliação, o adoecimento está relacionado à precarização do mundo do trabalho nos últimos anos, acentuada pela reforma trabalhista aprovada em 2017, e foi agravado com a ascensão de um governo “que declarou guerra ao seu povo”. “O Brasil hoje é tóxico”, afirma. 
Após a publicação do post, Tenório sentiu ainda mais o nível da toxicidade cotidiana do país: recebeu xingamentos e ameaças. Um dos agressores lembrou que sua filha, cuja foto viu em uma rede social, um dia poderia ser estuprada. A menina é um bebê de menos de 2 anos. 
 “Tóxico” é palavra de uso frequente de brasileiros ao relatarem o sentimento de viver em um país onde já não conseguem respirar. 
Na constatação de que o governo Bolsonaro já aprovou 290 agrotóxicos em apenas sete meses, o envenenamento ganha uma outra camada. É como se os corpos fossem um objeto atacado por todos os lados. 
País que ultrapassou a possibilidade das metáforas, a toxicidade do Brasil abrange todas as acepções. Cresce nos consultórios os casos de depressão provocados e alimentados pelo contexto político e social Mas que adoecimento é este que Tenório chama de “doente de Brasil”? Um psicanalista que prefere não se identificar por temer represálias explica que aumentou muito nos consultórios os quadros depressivos provocados pelo momento vivido pelo Brasil, em que especialmente pessoas ligadas à esquerda, mas não necessariamente ao PT, sentem uma total perda de sentido e horizonte. “Para a psiquiatria, a depressão é a tristeza sem contexto. Ou seja, ela é relacionada à estrutura psíquica de cada pessoa, às fundações e alicerces construídos na infância”, explica. 
“O que temos vivido hoje nos consultórios é o aumento da depressão com contexto, esta que não tem a ver com a estrutura do indivíduo e que nem vai melhorar no divã. Esta em que o uso de medicamentos só vai servir para obscurecer o esclarecimento das questões. Esta que só pode ser sanada por mudanças sociais.” 
 O rompimento dos laços, como a divisão das famílias provocada pela polarização política, tornou as pessoas ainda mais sujeitas ao adoecimento mental e com menos ferramentas para lidar com ele. 
Como disse um filósofo, ninguém deixa de dormir porque está tendo uma guerra no outro lado do mundo, com exceção daqueles que vivem a guerra. Com isso, ele queria dizer que as pessoas perdiam o sono muito mais por pequenas dores e preocupações comezinhas com as quais se identificavam, como as relacionadas à família e ao mundo dos afetos, do que por enormes barbáries que ocorriam no outro lado do mundo. 
 O que os brasileiros testemunharam foi uma inversão: a política, que sempre foi algo do campo público, invadiu o campo privado, passando a ser um fator íntimo, um fator primeiro de identificação. 
Dias atrás uma amiga presenciou uma conversa em que duas garotas decidiam quais os critérios para dividir apartamento com uma outra. “Não suportaria dividir com uma petista”, disse uma delas. Essa conversa, exceto no caso de militantes mais radicais, dificilmente aconteceria anos atrás: ninguém costumava perguntar qual era a orientação política antes de dividir a casa com alguém. A eleição, que costumava ser um acontecimento pontual, da esfera pública, tornou-se algo crucial na esfera privada. Do mesmo modo, o inverso também aconteceu. Questões íntimas, como a orientação sexual de cada um, como o que acontece na cama de cada um, passaram a ser discutidas publicamente. Esse fenômeno atingiu fortemente laços que cada um considerava incondicionais, como os familiares, laços com os quais se contava para enfrentar a dureza da vida. E acentuou ainda mais os quadros depressivos e persecutórios, aumentando ansiedade e angústia, corroendo a saúde. 
 O sofrimento é agravado pela constatação de que as instituições não barram a violência do governo e do governante Uma psicanalista de São Paulo, que também prefere não se identificar, acredita que o adoecimento do Brasil de 2019 expressa a radicalização da impotência. 
As pessoas, hoje, não sabem como reagir à quebra do pacto civilizatório representada pela eleição de uma figura violenta como Bolsonaro, que não só prega a violência como violenta a população todos os dias, seja por atos, seja por aliar-se a grupos criminosos, como faz com desmatadores e grileiros na Amazônia, seja por mentir compulsivamente. Não sabem, também, como parar essa força que as atropela e esmaga. Sentem como se aquilo que as está atacando fosse “imparável”, porque percebem que já não podem contar com as instituições – constatação gravíssima para a vida em sociedade. E então passam a sentir-se como reféns – e, seguidamente, a atuar como reféns. 
“Como reagimos à violência de alguém como Bolsonaro, que faz e diz o que quer, sem que seja impedido pelas instituições?”, questiona. “Toda a nossa experiência dá conta de que a vida em sociedade é regulada por instâncias que vão determinar o que pode e o que não pode, que têm o poder de impedir a quebra do pacto civilizatório, este pacto que permite que a gente possa conviver. Nesta experiência de que há um regulador, se uma pessoa é racista, ela vai ser processada – e não virar presidente do país. 
O que vivemos agora, com Bolsonaro, é a quebra de qualquer regulação. E isso tem um enorme impacto sobre a vida subjetiva. Ninguém sabe como reagir a isso, como viver numa realidade em que o presidente pode mentir e pode até mesmo inventar uma realidade que não corresponde aos fatos.” A documentação das experiências de autoritarismo em diferentes épocas e países costuma relatar o sofrimento físico e psíquico das vítimas, mas geralmente em condições explícitas. Como, por exemplo, um judeu num campo de concentração nazista. Ou uma das mulheres torturadas no Doi-Codi, em São Paulo, durante a ditadura militar do Brasil (1964-1985). Perceber essa violência explícita como violência é imediato. 
O que a experiência autoritária do bolsonarismo tem demonstrado é o quanto pode ser difícil resistir (também) à violência do cotidiano, aquela que se infiltra nos dias, nos pequenos gestos, na paralisia que vira um modo de ser, nas covardias que deixamos de questionar. O cotidiano de exceção tem se infiltrado e realizado em milhões de pequenos gestos de autocensura, silêncio e ausência no Brasil. Há milhares, talvez milhões de pequenos gestos de conformação acontecendo neste exato momento no Brasil. Em silêncio. Pequenos movimentos de autocensura, ausências nem sempre percebidas. Uma autora me conta que conseguiu manter seu livro no catálogo da editora sem usar a palavra sexualidade.... para falar de sexualidade. Uma diretora me diz que vestiu os corpos de suas atrizes, até então nuas, numa peça de teatro. A professora de uma das mais importantes universidades públicas do país me relata que muitos colegas já deixaram de analisar determinados temas em salas de aula por medo do “poder de polícia” dos alunos, que têm gravado as aulas e se comportado de forma ainda mais violenta que a polícia formal. Um curador de eventos preferiu não fazer o evento. Mudou de assunto. Outro deixou de convidar uma pensadora que certamente levaria bolsocrentes para a sua porta. Nunca saberemos o que poderia acontecer, porque o acontecimento foi impedido para não sofrer o risco de ser impedido. Há tantos que já preferem “não comentar”. Ou que dizem, simpaticamente: “me deixa fora dessa”. É também assim que o autoritarismo se infiltra, ou é principalmente assim que o autoritarismo se infiltra. E é também assim que se adoece uma população por aquilo que ela já tem medo de fazer, porque antecipa o gesto do opressor e se cala antes de ser calada. E em breve talvez tenha medo também de sussurrar dentro de casa, num mundo em que os aparelhos tecnológicos podem ser usados para a vigilância. 
Chega o dia em que o próprio pensamento se torna uma doença autoimune. É assim também que o autoritarismo vence antes mesmo de vencer. Um dos sintomas do cotidiano de exceção que vivemos é a colonização de nossas mentes. Mesmo pessoas que viveram a ditadura militar não têm recordação de algum momento da sua vida em que tenham pensado todos os dias no presidente da República. Bolsonaro administra o horror dos dias, com suas violências e mentiras, de um modo que o torna onipresente. Faça o teste: quantas horas você consegue ficar sem pensar em Bolsonaro, sem citar uma bestialidade de Bolsonaro? É isso o autoritarismo. Mas sobre isso poucos falam. Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalíptica do mundo Se Bolsonaro encarna a vanguarda messiânica-apocalítica do mundo, é preciso sublinhar que os brasileiros não estão sós. Um amigo estrangeiro me conta que, desde que Donald Trumpassumiu, a primeira coisa que ele faz ao acordar é conferir qual é a barbaridade que o presidente americano escreveu no Twitter, porque sente que isso afeta diretamente a vida dele. E afeta. Mario Corso, psicanalista e escritor gaúcho, aponta que não é possível pensar no que ele chama de “ethos depressivo” deste momento fora do contexto do Ocidente. “Veja o Reino Unido. O novo primeiro-ministro (referindo-se ao pró-Brexit Boris Johnson) é um palhaço. E eles já tiveram Churchill!”, exemplifica. “O problema, no Brasil, é que além de toda a crise global, elegemos um cretino para presidente”, diz o psicanalista. “O que assusta é que não há freios para impedi-lo. E, assim, ele segue atacando os mais frágeis. Como Bolsonaro é covarde, ele não engrossa com os maiores que ele.” Boris Johnson não chega a ser um Donald Trump. E nem Donald Trump chega a ser um Jair Bolsonaro. Mas a diferença maior está na qualidade da democracia. Tanto nos Estados Unidos quanto no Reino Unido, as instituições têm conseguido exercer o seu papel. No Brasil, não chega a ser perda total – ou não bastou (ainda) “um cabo e um soldado” para fechar o STF, como sugeriu o futuro possível embaixador do país nos Estados Unidos, Eduardo Bolsonaro, o garoto zerotrês. Mas a precariedade – e com frequência a omissão – das instituições – quando não conivência – são evidentes. “Enquanto Bolsonaro não consegue uma ditadura total, porque isso ele quer, mas ainda não conseguiu, ele antecipa a ditadura pelas palavras”, diz Corso. “Bolsonaro usa aquilo que você definiu como autoverdade para antecipar a ditadura. Os fatos não importam, o que ‘eu’ digo é o que é.” “A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu” Para Rinaldo Voltolini, professor de psicanálise da Universidade de São Paulo, a autoverdade é a amputação da palavra no sentido pleno. “Este é um grande disparador do sofrimento das pessoas, ao constatarem que estão fora no nível mais importante. Não é que você está fora porque não tem uma casa ou um carro, hoje você está fora das possibilidades de leitura do mundo. O que você diz não tem valor, não tem sentido, não tem significado. É como se, de repente, você já não tivesse lugar na gramática”, diz o psicanalista. “O que é a guerra? A guerra acontece quando a palavra, como mediadora, se extinguiu. Isso acontece entre duas pessoas, entre países. Sem a mediação da palavra, se passa diretamente ao ato violento.” A autoverdade, como escrevi neste espaço, determinou a eleição de Bolsonaro. E seguiu moldando sua forma de governar pela guerra, o que implica a destruição da palavra. Assim, desde o início do governo, Bolsonaro tem chamado os órgãos oficiais de mentirosos sempre que não gosta do resultado das pesquisas. Como quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística mostrou que o número de desempregados tinha aumentado no seu governo. Nos últimos dias, porém, o antipresidente levou a perversão da verdade, esta que torna a verdade uma escolha pessoal, à radicalidade. Decidiu que a jornalista Míriam Leitão não foi torturada – e ela foi. Insinuou que o pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil teria sido executado pela esquerda, quando ele desapareceu por obra de agentes do Estado na ditadura militar. Decidiu que ninguém mais passa fome no Brasil – o que é desmentido não só pelas estatísticas como pela experiência cotidiana dos brasileiros. Decidiu que os dados que apontaram a explosão do desmatamento na Amazônia, produzidos pelo conceituado Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, eram mentirosos. Isso porque apenas no mês de julho de 2019 foi desmatada uma área de floresta maior do que a cidade de São Paulo, com índices três vezes maiores do que no mesmo mês no ano passado. E Bolsonaro decidiu ainda que “só os veganos que comem vegetais” se importam com o meio ambiente. Bolsonaro controla o cotidiano porque fora de controle. Bolsonaro domina o noticiário porque criou um discurso que não precisa estar ancorado nos fatos. A verdade, para Bolsonaro, é a que ele quer que seja. Assim, além da palavra, Bolsonaro destrói a democracia ao usar o poder que conquistou pelo voto para destruir não só direitos conquistados em décadas e todo o sistema de proteção do meio ambiente, mas também para destruir a possibilidade da verdade. O que vivemos não é mal-estar, mas horror “Narrar a história é sempre o primeiro ato de dominação. Não é por acaso que Bolsonaro quer adulterar a história. A história da ditadura é construída por muitos documentos, é uma produção coletiva. Mas ele decide que aconteceu outra coisa e não apresenta nenhum documento para comprovar o que diz”, analisa Voltolini. “Não é que estamos vivendo o mal-estar na civilização. Isso sempre houve. A questão é que, para ter mal-estar é preciso civilização. E hoje, o que está em jogo, é a própria civilização. Isso não é da ordem do mal-estar, mas da ordem do horror.” Como enfrentar o horror? Como barrar o adoecimento provocado pela destruição da palavra como mediadora? Como resistir a um cotidiano em que a verdade é destruída dia após dia pela figura máxima do poder republicano? Rinaldo Voltolini lembra um diálogo entre Albert Einstein e Sigmund Freud. Quando Einstein pergunta a Freud como seria possível deter o processo que leva à guerra, Freud responde que tudo o que favorece a cultura combate a guerra. Os bolsonaristas sabem disso e por isso estão atacando a cultura e a educação. A cultura não é algo distante nem algo que pertence às elites, mas sim aquilo que nos faz humanos. Cultura é a palavra que nos apalavra. Precisamos recuperar a palavra como mediadora em todos os cantos onde houver gente. E fazer isso coletivamente, conjugando o nós, reamarrando os laços para fazer comunidade. O único jeito de lutar pelo comum é criando o comum – em comum. É preciso dizer: não vai ficar mais fácil. Não estamos mais lutando pela democracia. Estamos lutando pela civilização.
 Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista.