quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Brasil: de volta ao passado

Brasil, um país do passado

por Deutsche Welle  - Carta Capital
Está na moda um anti-intelectualismo que lembra a Inquisição. Seus representantes preferem Silas Malafaia a Immanuel Kant
Fábio Rodrigues Pozzebom/ABr
Brasil, um país do passado
A escolha foi feita
Philipp Lichterbeck* 
É sabido que viajar educa o indivíduo, fazendo com que alguém contemple algo de perspectivas diferentes. Quem deixa o Brasil nos dias de hoje deve se preocupar. O País está caminhando rumo ao passado.
No Brasil, pode ser que isso seja algo menos perceptível, porque os indivíduos estão expostos ao moinho cotidiano de informações. Mas, de fora, estas formam um mosaico assustador. Atualmente, estou em viagem pelo Caribe – e o Brasil que se vê a partir daqui é de dar medo.
Na história, houve momentos frequentes de regresso. Jared Diamond os descreve bem em seu livro Colapso: Como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Motivos que contribuem para o fracasso são, entre outros, destruição do meio ambiente, negação de fatos, fanatismo religioso. Assim como nos tempos da Inquisição, quando o conhecimento em si era suficiente para tornar alguém suspeito de blasfêmia.
No Brasil atual, não se grita "herege!", mas "comunismo!". É a acusação com a qual se demoniza a ciência e o progresso social. A emancipação de minorias e grupos menos favorecidos: comunismo! A liberdade artística: comunismo! Direitos humanos: comunismo! Justiça social: comunismo! Educação sexual: comunismo! O pensamento crítico em si: comunismo!
Tudo isso são conquistas que não são questionadas em sociedades progressistas. O Brasil de hoje não as quer mais. 
A própria acusação de comunismo é, porém, um anacronismo. Como se hoje houvesse um forte movimento comunista no Brasil. Mas não se trata disso. O novo brasileiro não deve mais questionar, ele precisa obedecer: "Brasil acima de tudo, Deus acima de todos". 
Está na moda um anti-intelectualismo horrendo, "alimentado pela falsa noção de que a democracia significa que a minha ignorância é tão boa quanto o seu conhecimento", segundo dizia o escritor Isaac Asimov. Ouvi uma anedota de um pai brasileiro que tirou o filho da escola porque não queria que ele aprendesse sobre o cubismo. O pai alegou que o filho não precisa saber nada sobre Cuba, que isso era doutrinação marxista. Não sei se a historia é verdade. O pior é que bem que poderia ser.
A essência da ciência é o discernimento. Mas os novos inquisidores amam vídeos com títulos como "Felicianodestrói argumentos e bancada LGBT". Destruir, acabar, detonar, desmoralizar – são seus conceitos fundamentais. E, para que ninguém se engane, o ataque vale para o próprio esclarecimento.
FRP_SilasMalafaianaCamaradosDeputados_250620150002850x566.jpg
Kant? Não, Malafaia (Fotos: ABr)
Os inquisidores não querem mais Immanuel Kant, querem Silas Malafaia. Não querem mais Paulo Freire, querem Alexandre Frota. Não querem mais Jean-Jacques Rousseau, querem Olavo de Carvalho. Não querem Chico Mendes, querem a "musa do veneno" (imagino que seja para ingerir ainda mais agrotóxicos). 
Dá para imaginar para onde vai uma sociedade que tem esse tipo de fanático como exemplo: para o nada. Os sinais de alerta estão acesos em toda parte.
O desmatamento da Floresta Amazônica teve neste ano o seu maior aumento em uma década: 8 mil quilômetros quadrados foram destruídos entre 2017 e 2018. Mas consórcios de mineradoras e o agronegócio pressionam por uma maior abertura da floresta.
Jair Bolsonaro quer realizar seus desejos. O próximo presidente não acredita que a seca crescente no Sudeste do Brasil poderia ter algo a ver com a ausência de formação de nuvens sobre as áreas desmatadas. E ele não acredita nas mudanças climáticas. Para ele, ambientalistas são subversivos.
Existe um consenso entre os cientistas conhecedores do assunto no mundo inteiro: dizem que a Terra está se aquecendo drasticamente por causa das emissões de dióxido de carbono do ser humano e que isso terá consequências catastróficas. Mas Bolsonaro, igual a Trump, prefere não ouvi-los. Prefere ignorar o problema.
Para o próximo ministro brasileiro do Exterior, Ernesto Araújo, o aquecimento global é até um complô marxista internacional. Ele age como se tivesse alguma noção de pesquisas sobre o clima. É exatamente esse o problema: a ignorância no Brasil de hoje conta mais do que o conhecimento. O Brasil prefere acreditar num diplomata de terceira categoria do que no Instituto Potsdam de Pesquisa sobre o Impacto Climático, que estuda seriamente o tema há trinta anos.
Araújo, aliás, também diz que o sexo entre heterossexuais ou comer carne vermelha são comportamentos que estão sendo "criminalizados". Ele fala sério. Ao mesmo tempo, o Tinder bomba no Brasil. E, segundo o IBGE, há 220 milhões de cabeças de gado nos pastos do País. Mas não importa. O extremista Araújo não se interessa por fatos, mas pela disseminação de crenças. Para Jared Diamond, isso é um comportamento caraterístico de sociedades que fracassam. 
Obviamente, está claríssimo que a restrição do pensamento começa na escola. Por isso, os novos inquisidores se concentram especialmente nela. A "Escola Sem Partido" tenta fazer exatamente isso. Leandro Karnal, uma das cabeças mais inteligentes do Brasil, com razão descreve a ideia como "asneira sem tamanho".
Escola Sem Partido foi idealizada por gente sem noção de pedagogia, formação e educação. Eles querem reprimir o conhecimento e a discussão. 
Karl Marx é ensinado em qualquer faculdade de economia séria do mundo, porque ele foi um dos primeiros a descrever o funcionamento do capitalismo. E o fez de uma forma genial. Mas os novos inquisidores do Brasil não querem Marx. Acham que o contato com a obra dele transformaria qualquer estudante em marxista convicto. Acreditam que o próprio saber é nocivo – igual aos inquisidores. E, como bons inquisidores, exortam à denúncia de mestres e professores. A obra 1984, de George Orwell, está se tornando realidade no Brasil em 2018.
É possível estender longamente a lista com exemplos do regresso do país: a influência cada vez maior das igrejas evangélicas, que fazem negócios com a credulidade e a esperança de pessoas pobres. A demonização das artes (exposições nunca abrem por medo dos extremistas, e artistas como Wagner Schwartz são ameaçados de morte por uma performance que foi um sucesso na Europa). Há uma negação paranoica de modelos alternativos de família. Existe a tentativa de reescrever a história e transformar torturadores em heróis. Há a tentativa de introduzir o criacionismo. Tomás de Torquemada em vez de Charles Darwin.
E, como se fosse uma sátira, no Brasil de 2018 há a homenagem a um pseudocientista na Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, que defende a teoria de que a Terra seria plana, ou "convexa", e não redonda. A moção de congratulação concedida ao pesquisador foi proposta pelo presidente da AL e aprovada por unanimidade pelos parlamentares.
Brasil, um país do passado. 
* Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Manual de sobrevivência na selva bolsonara, por Flávio Aguiar

Manual de sobrevivência na selva bolsonara

Por Flavio Aguiar, no site Carta Maior:

Na semana passada participei de um debate na Universidade Livre de Berlim que, partindo de questões literárias, terminou por entrar por reflexões sobre a atual situação brasileira. Houve depoimentos candentes sobre o clima de perseguição e violência contra a dissidência ao candidato vitorioso e sua trupe que se implantou durante a eleição e que tende a se intensificar depois da posse. Houve relatos que variaram da desarticulação dos programas sociais desenvolvidos durante os governos de Lula e Dilma (como o de apoio às pequenas cacimbas de água no Nordeste), imediatamente posta em prática pelo governo Temer, passando pelos conflitos familiares e perseguição desde já a professores, estudantes, até o de estupros de mulheres simplesmente porque apoiaram o outro candidato.

No debate e depois dele me veio então esta ideia de escrever um manual de sobrevivência na “selva bolsonara”. Começo pelo relato das expectativas, continuo pelas sugestões de auto-defesa, e termino com algumas conclusões.

Expectativas


Em meio a tantas idas e vindas, voltas e contra-voltas, da “transição”, uma coisa é clara: o governo de Bolsonaro será uma grande mascarada. A campanha já foi; o governo vai estender, ampliar e aprofundar o estilo.

Em primeiro lugar trata-se de mascarar o passado; em seguida, o futuro. Para tanto vai ser necessário mascarar indefinidamente o presente.

Mascarar o passado

A ambição do projeto em torno do qual Bolsonaro e sua “equipe" gravitam á mistificar o passado, impondo a ideia de que a ditadura de 64 a 85 foi um período idílico entre governo e povo, baseado na ideia de prosperidade com segurança. Vão se varrer para debaixo do tapete todas as crises e percalços do regime, não apenas no sentido de edulcorar a repressão. As crises econômicas de 66/67, o brutal endividamento externo, a falência em ler o que viria a ser a crise do petróleo a partir da guerra de 1973 no Oriente Médio, a transformação do sonho da casa própria no pesadelo da prestação e da inadimplência, o afogamento do ensino público e outras mazelas serão simplesmente negadas.

Em consequência deste delírio seria necessário mascarar tudo aquilo que foi conquista da Constituição de 88, e o período de conquistas sociais vivido durante os governos de Lula e o primeiro de Dilma. Sem falar na presença soberana da política externa brasileira. Tudo isto vai ser jogado para debaixo do tapete da “maior corrupção que atingiu o país”, e também da cobertura fornecida pela falácia anacrônica da “ameaça comunista", que é um dos poucos fios comuns que unem o coral desencontrado que é a “equipe” do futuro governo, onde, curiosamente, o general Mourão vem despontando como uma “voz ajuizada”.

Mascarar o futuro

Dois dos “sonhos” (na verdade, pesadelos) preferidos da “equipe”, cujo “coach” é o delirante Olavo Carvalho, são: a) realinhar a política externa do Itamaraty e do país como um todo, em torno da visão de Trump e dos Estados Unidos como os messias que salvarão o Ocidente da débâcle diante do “comunismo” e dos perigos “muçulmano” e outros; e b) enquadrar a juventude através de uma doutrinação ideológica e partidária no ensino, da creche à pós-graduação, que a vacine contra a possibilidade do temido “retorno das esquerdas” e seus “temas conexos”, ou seja, temas “comunistas” e “deletérios”, como igualdade de gênero, combate à homofobia e outros preconceitos, etc.

Além disto, será necessário mascarar todas as crises futuras como “futuras aberturas para um melhor destino”. O eventual “desemprego” passaria a se chamar de “liberdade”; a fome, a falência da saúde pública serão rebatizadas como “correção dos rumos estatizantes” e por aí irá. A doutrinação ideológica unidimensional será rebatizada como “liberdade de expressão e pensamento” contra a ideologia “estatizante”, “comunista” e "destruidora da família”. E assim por diante.

Ergo, mascarar continuamente o presente

Os primeiros momentos do governo Bolsonaro prometem ser uma montanha russa de sobre-desce, trepida-trepida, balança mas não cai, ou cai e aqui e ali, em quase todas as frentes. Por exemplo, e dos menores, da busca de uma tecnologia de ponta passaremos a uma tecnologia pontuda, com possível propaganda de travesseiros, com o ministro-astronauta. Haverá trombadas com o Congresso, prováveis turbulências internas e externas com a nova política externa “de cabeça erguida”, conforme o futuro chanceler, mas ao mesmo tempo com ela enfiada na areia do anacronismo anti-comunista, na obtusidade dos aspectos mais retrógrados do trumpismo, e assim por diante. Na economia, viraremos porquinhos de laboratório das experiências mais radicais de neoliberalismo desde Pinochet. Vão privatizar até a cadeira do presidente.

Tudo isto só vai se manter de pé, ou de quatro, através de uma brutal repressão em todos os sentidos. Vai começar pela criminalização dos movimentos sociais, tipo MST, MTST. Vão tentar, com ajuda da tigrada da toga, aleijar ou extirpar definitivamente o PT da cena política. Nas universidades, nas escolas, na saúde pública, haverá perseguições implacáveis. Com aluda da alcateia de oportunistas, haverá a instituição da delação premiada contra terceiros. Como houve na ditadura: nas universidades grupos de docentes denunciavam outros grupos de “inimigos” para ocupar cargos de direção, favores internos, fluxo financeiro, etc.

Todo fracasso será revestido com a capa do sucesso. As redes sociais regurgitarão e vomitarão sucessos. Haverá ajuda nisto, pelo menos na parte econômica, por parte da mídia mainstream tradicional, que será domesticada. Vão aprovar, como vaquinhas de presépio, a criminalização dos movimentos sociais, a perseguição ao PT, a repressão aos dissidentes. Haverá vagidos débeis contra os aspectos mais abstrusos da política governamental, por exemplo, na FSP. Vamos ver até onde aguentam. Ainda não sei como tentarão controlar a internet e dobrar a mídia alternativa e seus jornalistas, mas isto virá.

Esqueçam políticas de proteção ao meio-ambiente. As ONGs e partidos de extrema-esquerda, que ajudaram a criticar acerbamente os governos petistas, terão lágrimas de sobra para chorar o leite derramado e as florestas esturricadas. Mas isto vai ser mascarado como “ordem e progresso”. Enfim, nosso inferno vai ganhar muitos matizes.

Entre eles o das novas disputas sucessórias que já estão começando.

Há, visivelmente, desde já, três projetos em marcha. O mais vistoso é o de Moro, amealhando o aparato judicial e policial disponível. Faz parte deste projeto manter Lula na cadeia, como cereja do bolo, e destruir a “máquina de corrupção do PT”, a “maior da história do Brasil”. Vai haver o industriamento em escala industrial da pressão sobre o aparato político, em particular o Congresso. Ponto forte: terá o apoio da tigrada da toga. A ver se empalma o “acaudilhamento” da PF e arredores. Ponto fraco: Moro agora é vitrine, e está perdendo prestígio na seara internacional rapidamente.

Há o projeto Bolsonaro. Dizer que não pretende a reeleição é algo que tem nariz comprido e pernas muito curtas. Ainda mais com a prole que tem, tão ávida quanto descalibrada. Ponto forte: está na presidência. Ponto fraco: ele mesmo, inseguro, instável, despreparado, sujeito a chuvas internas e trovoadas externas que o deixam tão assustado como quando deveria ir a um debate na Globo e nunca foi.

Correndo por fora, há o “ajuizado” Mourão. Pode ganhar a simpatia da caserna, é seu ponto forte. Pode ser visto como o porta-voz da caserna, é seu ponto fraco. O meio financeiro e empresarial pode não gostar. Idem, o meio financeiro internacional e estadounidense, que desde a Guerra das Malvinas olha o meio militar latino-americano com desconfiança e desde o fracassado golpe contra Hugo Chavez em 2002 com desdém.

Haveria outras candidaturas, por ora, imprevisíveis.

Auto-defesa

Não esperemos qualquer ajuda por parte de instituições jurídicas, a não ser patetices apatetadas oriundas de seus escalões superiores.

Haverá ajuda internacional sim, mas de efeito limitado.

Temos de contar com o fato de que se houve, e houve, manipulação da informação e de consciências por parte das equipes virtuais da campanha de Bolsonaro, com certeza uma grande parte dos que nele votaram ouviram, nestas mentiras que lhes foram servidas via Facebook, WhatsApp, etc., exatamente aquilo que queriam ouvir para justificar seu voto pelo embrutecimento político, para justificar aquilo que seu ressentimento, medo da ascensão dos “outros”, das “outras” e de tudo mais, sua sensação de desamparo, exigiam que fizessem. Quando um erro ético desta monta é cometido, a primeira tendência é afincar-se a ele. Depois, esquecer o que foi feito. Quando a onda Bolsonaro passar, e ela vai passar, vamos ouvir, de milhões de corações pulsantes: “votei em Bolsonaro? Eu não!! Como você pode imaginar isto de mim. que sempre defendi a democracia?” Etc.

Portanto, preparemo-nos. As amizades perdidas não se recomporão. Ou pelo menos muitas delas. As vozes familiares não se reconciliarão, pelo menos durante muito tempo.

Como dizia alguém, “hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”.

A primeira coisa a fazer é manter o equilíbrio interno, e não ceder à tentação de imitar o comportamento dos bolsonaros. Vi horrorizado o vt da professora em Brasília gritando palavrões e impropérios enquanto o “eleito” passava em direção ao centro do processo de transição. Entendo a raiva e o desabafo. Mas não é por aí. Vejo também com preocupação a atitude de amig@s e correligionári@s que propagam mensagens e informações sem checar sua procedência e veracidade. Temos de manter o princípio da credibilidade. Da seriedade. Do respeito a si mesm@ e a outrem.

Segundo, é preciso organizar-se. Evitar ações individuais e voluntariosas. Valorizar a informação compartilhada. Valorizar a mídia alternativa. Evitar a militância depressiva. Alertar sobre perseguições, descalabros, violências, sim, mas também, e principalmente, sobre resistência, alegria, humor, reação ao fascismo. Valorizar as formas coletivas de resistência, de organização, mídias, sindicatos, associações de todos os tipos, organizar comitês de defesa da democracia em todos os quadrantes.

Estudar história. A pior sensação que as ditaduras transmitem é de que serão eternas. Não, elas passam. A de 64 passou. Agora tem gente querendo traze-la de volta. É uma minoria. São ditadores de pijama. Há muito outros, milhões, que embarcaram, mistificados, nesta canoa. Vai ser duro, mas poderão ser ganhos para a causa democrática. Assim como os e as abstencionistas. Os pequenos e as pequenas Pilatos e Pilatas. Poderão crescer.

Isto aqui já vai enorme. Voltaremos ao assunto. Por ora, pensemos como Mário Quintana:

“Esses, que hoje
Atravancam meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho”.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Cuba deixa o Mais Médicos após declarações “ameaçadoras" de Bolsonaro

Brasil de Fato


Após cinco anos presentes em cerca de 3.600 municípios do País, médicos cubanos retornarão à Ilha

Governo cubano disse que as declarações do presidente eleito a OPAS e sobre a preparação dos médicos da Ilha são desrespeitosas / Foto: Arquivo Saúde Popular

O governo cubano anunciou, nesta quarta-feira (14), sua retirada do Programa Mais Médicos e a ruptura do convênio com o governo brasileiro. A decisão vem logo após declarações “ameaçadoras e depreciativas” do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL).
“O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, fazendo referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, declarou e reiterou que modificará termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba, ao por em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e como única via a contratação individual”, explica um dos trechos do documento.
O governo cubano justifica que as mudanças anunciadas pelo futuro governo são “inaceitáveis” e não cumprem com as garantias ratificadas no ano 2016 “com a renegociação do Termo de Cooperação entre a Organização Pan-americana da Saúde e o Ministério da Saúde da República de Cuba”.
Iniciado em 2013, o Programa Mais Médicos possibilitou a fixação de aproximadamente 20 mil médicos cubanos em mais de 3.600 municípios do País. Mais de 700 municípios tiveram pela primeira vez em sua história um profissional médico.
Ao classificar como “condições inadmissíveis”, o governo de Cuba ressalta a impossibilidade de manter a presença de profissionais cubanos no Programa e a continuidade da cooperação.
"O povo brasileiro, que fez com que o Programa Mais Médicos fosse uma conquista social, que desde o primeiro momento confiou nos médicos cubanos, aprecia suas virtudes e agradece o respeito, a sensibilidade e o profissionalismo com que foram atendidos, poderá compreender sobre quem cai a responsabilidade de que nossos médicos não possam continuar oferecendo sua ajuda solidária nesse país”, finaliza o comunicado.
Confira a íntegra da nota:
DECLARAÇÃO DO MINISTÉRIO DA SAÚDE PÚBLICA
O Ministério da Saúde Pública da República de Cuba, comprometido com os princípios solidários e humanistas que durante 55 anos têm guiado a cooperação médica cubana, participa desde seus começos, em agosto de 2013, no Programa Mais Médicos para o Brasil. A iniciativa de Dilma Rousseff, nessa altura presidenta da República Federativa do Brasil, tinha o nobre propósito de garantir a atenção médica à maior quantidade da população brasileira, em correspondência com o princípio de cobertura sanitária universal promovido pela Organização Mundial da Saúde.
Este programa previu a presença de médicos brasileiros e estrangeiros para trabalhar em zonas pobres e longínquas desse país.
A participação cubana nele é levada a cabo por intermédio da Organização Pan-americana da Saúde e se tem caracterizado por ocupar vagas não cobertas por médicos brasileiros nem de outras nacionalidades.
Nestes cinco anos de trabalho, perto de 20 mil colaboradores cubanos ofereceram atenção médica a 113 milhões 359 mil pacientes, em mais de 3 mil 600 municípios, conseguindo atender eles um universo de até 60 milhões de brasileiros na altura em que constituíam 88 % de todos os médicos participantes no programa. Mais de 700 municípios tiveram um médico pela primeira vez na história.
O trabalho dos médicos cubanos em lugares de pobreza extrema, em favelas do Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador de Baía, nos 34 Distritos Especiais Indígenas, sobretudo na Amazônia, foi amplamente reconhecida pelos governos federal, estaduais e municipais desse país e por sua população, que lhe outorgou 95% de aceitação, segundo o estudo encarregado pelo Ministério da Saúde do Brasil à Universidade Federal de Minas Gerais.
Em 27 de setembro de 2016 o Ministério da Saúde Pública, em declaração oficial, informou próximo da data de vencimento do convênio e em meio aos acontecimentos relacionados com o golpe de estado legislativo-judicial contra a Presidenta Dilma Rousseff que Cuba “continuará participando no acordo com a Organização Pan-americana da Saúde para a implementação do Programa Mais Médicos, enquanto sejam mantidas as garantias oferecidas pelas autoridades locais”, o que até o momento foi respeitado.
O presidente eleito do Brasil, Jair Bolsonaro, fazendo referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos, declarou e reiterou que modificará termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-americana da Saúde e ao conveniado por ela com Cuba, ao pôr em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e como única via a contratação individual.
As mudanças anunciadas impõem condições inaceitáveis que não cumprem com as garantias acordadas desde o início do Programa, as quais foram ratificadas no ano 2016 com a renegociação do Termo de Cooperação entre a Organização Pan-americana da Saúde e o Ministério da Saúde da República de Cuba. Estas condições inadmissíveis fazem com que seja impossível manter a presença de profissionais cubanos no Programa. Por conseguinte, perante esta lamentável realidade, o Ministério da Saúde Pública de Cuba decidiu interromper sua participação no Programa Mais Médicos e foi assim que informou a Diretora da Organização Pan-americana da Saúde e os líderes políticos brasileiros que fundaram e defenderam esta iniciativa.
Não aceitamos que se ponham em dúvida a dignidade, o profissionalismo, e o altruísmo dos colaboradores cubanos que, com o apoio de seus familiares, prestam serviço atualmente em 67 países. Em 55 anos já foram cumpridas 600 mil missões internacionalistas em 164 nações, nas quais participaram mais de 400 mil trabalhadores da saúde, que em não poucos casos cumpriram esta honrosa missão mais de uma vez. Destacam as façanhas de luta contra o ébola na África, a cegueira na América Latina e o Caribe, a cólera no Haiti e a participação de 26 brigadas do Contingente Internacional de Médicos Especializados em Desastres e Grandes Epidemias “Henry Reeve” no Paquistão, Indonésia, México, Equador, Peru, Chile e Venezuela, entre outros países.
Na grande maioria das missões cumpridas, as despesas foram assumidas pelo governo cubano. Igualmente, em Cuba formaram-se de maneira gratuita 35 mil 613 profissionais da saúde de 138 países, como expressão de nossa vocação solidária e internacionalista.
Em todo momento aos colaborados foi-lhes conservado seu postos de trabalho e o 100 por cento de seu ordenado em Cuba, com todas as garantias de trabalho e sociais, mesmo como os restantes trabalhadores do Sistema Nacional da Saúde.
A experiência do Programa Mais Médicos para o Brasil e a participação cubana no mesmo, demonstra que sim pode ser estruturado um programa de cooperação Sul-Sul sob o auspício da Organização Pan-americana da Saúde, para impulsionar suas metas em nossa região. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento e a Organização Mundial da Saúde qualificam-no como o principal exemplo de boas práticas em cooperação triangular e a implementação da Agenda 2030 com seus Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Os povos da Nossa América e os restantes do mundo bem sabem que sempre poderão contar com a vocação humanista e solidária de nossos profissionais.
O povo brasileiro, que fez com que o Programa Mais Médicos fosse uma conquista social, que desde o primeiro momento confiou nos médicos cubanos, aprecia suas virtudes e agradece o respeito, a sensibilidade e o profissionalismo com que foram atendidos, poderá compreender sobre quem cai a responsabilidade de que nossos médicos não possam continuar oferecendo sua ajuda solidária nesse país.
Havana, 14 de novembro de 2018.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

Flávio Dino decreta liberdade de opinião e pensamento nas escolas do Maranhão

Sem mordaça

Governador reeleito destaca garantias constitucionais para ensinar e aprender e barra gravações e ameaças para coagir professores e alunos
por Redação Rede Brasil Atual
MARIANA BOTÃO/LE MONDE DIPLOMATIQUE/CC
Flávio Dino
Para Dino, projeto 'Escola Sem Partido' tem propósitos autoritários incompatíveis com uma educação digna
São Paulo – O governador reeleito do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), editou nesta segunda-feira (12) um decreto que garante a liberdade de opinião nas escolas do estado. É uma resposta à proposta conhecida como "Escola sem Partido", que impõe cercear professores com o pretexto de combater suposta "doutrinação ideológica" nas escolas. 
Segundo Dino, "falar em 'Escola Sem Partido' tem servido para encobrir propósitos autoritários incompatíveis com a nossa Constituição e com uma educação digna". 
O decreto destaca trecho da Constituição Federal que garante "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber", proíbe ameaças e ações violentas para cerceamento de opiniões, bem como impede que alunos, funcionários e professores sejam filmados sem autorização. 
A gravação para denunciar educadores suposto "viés político-partidário" é prática estimulada pelos defensores do "Escola Sem Partido". Em Santa Catarina, por exemplo, a deputada estadual eleita Ana Caroline Campagnolo (PSL-SC) chegou a criar um número de Whatsapp para que professores que manifestassem insatisfação com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) fossem denunciados. Além de uma investigação da parte da Promotoria de Justiça de Florianópolis, a ação da parlamentar rendeu um protesto bem-humorado nas redes sociais. 
Na semana passada, professores, estudantes e profissionais da educação conseguiram barrar, mais uma vez, em comissão especial na Câmara dos Deputados, a votação do Projeto de Lei (PL) 7.180/2014, que institui as ferramentas de censura do "Escola Sem Partido".

Confira o decreto

Decreto Liberdade nas Escolas Maranhão

sábado, 10 de novembro de 2018

Bolsonaro paralisará o governo após posse

Por Ricardo Kotscho, em seu blog:

Ou o capitão reformado Jair Bolsonaro não esperava ganhar as eleições ou é um político irresponsável.

Nesses primeiros dez dias após a vitória, o presidente eleito já deu suficientes demonstrações de total despreparo e de falta de um programa de governo.

Atirando balas perdidas para todo lado, Bolsonaro já deixou claro, para quem ainda tinha alguma dúvida, que não tem a menor ideia de como vai governar este país de 208 milhões de habitantes e 12,5 milhões de desempregados.

Se continuar nesta sucessão de trapalhadas, recuos, ditos e desditos, criando, fundindo e fechando ministérios, arrumando inimigos mundo afora, vai paralisar o governo federal logo após a sua posse.

Esta é a nua e crua verdade dos fatos. O resto é marketing de especulação e indústria de fake news, como se o eleito ainda estivesse em campanha, cercado por filhos, áulicos e meia dúzia de militares de pijama.

Em sua primeira incursão pelo poder em Brasília, parecia um homem assustado, desconfiado, olhando para os lados e para o alto, como se temesse novo atentado ou a chegada de um disco voador.

Revelou visível dificuldade e desconforto para responder a perguntas de jornalistas sobre qualquer assunto, simplesmente porque até agora não conseguiu definir prioridades e um programa mínimo de governo para os primeiros 100 dias.

Sobre o seu primeiro dia de governo, disparou logo cedo nesta quinta-feira um Twitter para anunciar que vai abrir a “caixa preta” do BNDES, um dos maiores bancos de desenvolvimento do mundo, criado há 52 anos por Getúlio Vargas.

O que ele quer com isso, desmoralizar o banco?

Na véspera, também pelo Twitter, decidiu fechar o Ministério do Trabalho, sem dizer o que fará com as secretarias setoriais que cuidam de emprego, proteção ao trabalhador, combate ao trabalho escravo, entre outras muitas atribuições, nem para onde irão seus funcionários de carreira.

Como se fosse um Trump tropical, dispara novas mensagens pelo Twitter para nomear ou desnomear ministros ou anunciar medidas no varejo do improviso, como mudar a embaixada em Israel para Jerusalém.

A troco de quê? O que o Brasil ganha com isso?

Entre um encontro e outro com ministros militares, o presidente da República e o do STF, o novo presidente soltou mais um nome para o seu ministério, o da Agricultura, apresentado como competente técnica do setor, uma agrônoma.

Na verdade, trata-se da deputada Teresa Cristina, do DEM, uma fazendeira do Mato Grosso do Sul, indicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária, mais conhecida como bancada do boi ou ruralista, a maior do Congresso Nacional, que domina o Centrão.

Teresa Cristina também é conhecida na Câmara como “musa do veneno”, grande defensora da liberalização de agrotóxicos na agricultura, que esteve com Bolsonaro, semanas atrás, no bunker da Barra da Tijuca.

Não poderia ter escolhido ninguém melhor para sinalizar o que o novo governo pretende fazer nesta área.

Para o Ministério do Meio Ambiente, que ele desistiu de juntar com a Agricultura, também promete nomear um “técnico”, Pode-se imaginar o que vem por aí.

Ofuscado pelos superministros Paulo Guedes e Sergio Moro, que não param de dar entrevistas, Bolsonaro tenta criar fatos novos para ocupar a mídia e as redes sociais, mas a cada intervenção só aumentam a barafunda à sua volta e as incertezas sobre o novo governo.

Até agora, ninguém sabe como vai ficar a Esplanada dos Ministérios, que vai precisar de muitos caminhões de mudanças, sem que até agora se saiba quanto o país irá economizar com os cortes de ministérios. De 15 inicialmente previstos, os sobreviventes já passaram para 18, por enquanto.

Nunca se viu tamanha balbúrdia numa transição de governo desde a redemocratização.

Até a data da diplomação do presidente eleito causou transtornos porque ele tem nova cirurgia do intestino marcada para o dia 12 de dezembro, em São Paulo.

Acabou ficando para o dia 10, justamente a data em que se comemora a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tudo a ver.

Além dos problemas internos que já criou para a futura governabilidade, nestes poucos dias, Bolsonaro produziu atritos com China, Venezuela, Cuba, países árabes, Brics e Mercosul.

E, com tudo isso, continua a campanha de pra frente Brasil, agora vai, nas redes sociais, acusando de pessimistas vermelhos quem não está torcendo para o governo dar certo “porque estamos todos no mesmo barco”.

De que adianta torcer, se o barco é furado, o time é mambembe e o técnico parece mais perdido do que cachorro em dia de mudança?

Acreditem: a tragédia que se avizinha do dia do jogo para valer é tamanha que já tem muita gente embarcando no “Fica, Temer!”.

Pensando bem, dos males o menor. Esse, pelo menos, a gente já conhece.

O outro, que vai assumir, é uma bomba relógio prestes a explodir a qualquer momento, mais imprevisível do que a “caixa preta” do BNDES.

Pelas primeiras amostras da nova ordem, a impressão que se tem é a de um bando de patos desarranjados perdidos no Planalto Central e na Barra da Tijuca em busca de abrigo.

Faltam apenas 54 dias para a posse. Melhor já apertar os cintos.

quarta-feira, 7 de novembro de 2018

Falsa neutralidade do Escola 'sem' Partido

Por Ana Luíza Matos de Oliveira, no site da Fundação Perseu Abramo:

Livro "Escola “sem” partido: Esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira", organizado por Gaudêncio Frigotto, traz contribuições de diversos autores para entender o ideário do "Escola sem Partido", que tem crescido como movimento na sociedade brasileira.

Segundo os autores, o "Escola sem partido" emite uma mensagem de certeza e proposição de ideias supostamente neutras, mas que escondem, na verdade, um teor fortemente "persecutório, repressor e violento". Não sem motivo os autores escolheram que o "sem" do título fosse entre aspas, pois há na verdade partidos da extrema direita e outros grupos políticos por trás do projeto. 

Ou como explica Frigotto, o "sem" refere-se ao "partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto, da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres etc. Um partido que ameaça os fundamentos da liberdade e da democracia." A tentativa é de definir por lei o que é ciência e que os professores só possam seguir a cartilha das conclusões e interpretações da ciência oficial, uma ciência supostamente neutra.

Nesse sentido, é importante pontuar que não é possível ser "neutro" ao educar. Não existe neutralidade. Dizer que a ditadura militar não foi uma ditadura, mas uma guerra dos militares contra os comunistas que queriam transformar o Brasil na "nova Cuba", como defendem altos assessores do presidente eleito e inclusive o eleito vice-presidente, não é ser "neutro" e mostrar a "verdade". Revisar a história brasileira contra um suposto doutrinamento do ensino de história do Brasil quanto à ditadura militar, por exemplo, é na verdade tripudiar sobre a história brasileira, sobre a historiografia nacional e internacional, pois está comprovado e embasado que o golpe de 1964 estabeleceu um regime ditatorial no Brasil.

Ou como afirma Frigotto: "Se o conhecimento científico tem como fim entender quais as determinações que produzem os fenômenos da natureza e os sociais, em sociedades cindidas em classes sociais com interesses conflitantes e antagônicos, as concepções de natureza e sociedade e de ser humano, os métodos de apreendê-las e os resultados que daí advêm não são neutros e, portanto, são políticos."

sábado, 3 de novembro de 2018

Pós-eleições: construindo a resistência | Vladimir Safatle, Marilena Chaui, André Singer

A mobilização depende da sociedade.


“A era do humanismo está terminando”, por Achille Mbembe


Por
 Pensar Contemporâneo

Achille Mbembe (1957, Camarões francês) é historiador, pensador pós-colonial e cientista político; estudou na França na década de 1980 e depois ensinou na África (África do Sul, Senegal) e Estados Unidos. Atualmente, ensina no Wits Institute for Social and Economic Research (Universidade de Witwatersrand, África do Sul).
O artigo foi publicado, originalmente, em inglês, no dia 22-12-2016, no sítio do Mail & Guardian, da África do Sul, sob o título “The age of humanism is ending” e traduzido para o espanhol e publicado por Contemporeafilosofia.blogspot.com, 31-12-2016. A tradução é de André Langer.
“Não há sinais de que 2017 seja muito diferente de 2016.
Sob a ocupação israelense por décadas, Gaza continuará a ser a maior prisão a céu aberto do mundo.
Nos Estados Unidos, o assassinato de negros pela polícia continuará ininterruptamente e mais centenas de milhares se juntarão aos que já estão alojados no complexo industrial-carcerário que foi instalado após a escravidão das plantações e as leis de Jim Crow.
A Europa continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal ou o que o teórico cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar dos complexos acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição ecológica da Terra continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez mais em uma guerra de extermínio entre as várias formas de niilismo.
As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas, longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo, rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões mortais.
A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio necessário – é, em última instância, a coisa certa.
Com o triunfo desta aproximação neodarwiniana para fazer história, o apartheid, sob diversas modulações, será restaurado como a nova velha norma. Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas, para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias estabelecidas.
Nenhuma das alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização, a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização, seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a civilização.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra – a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela liberação geral de paixões, emoções e afetos.
Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o mecanismo principal para a validação da verdade. Como os mercados estão se transformando cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender.
A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo, acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios computacionais.
A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas dos novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas infraestruturas do inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão.
A principal função da repressão era estabelecer as condições para a sublimação. Nem todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser dito ou feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da própria liberdade e da liberdade de todos. Em parte graças às formas dos novos meios e à era pós-repressiva que desencadearam, o inconsciente pode agora vagar livremente. A sublimação já não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.
Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social. No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza – o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta violenta para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos dentre eles, aos fracos em que não querem se transformar.
Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.
A política se converterá na luta de rua e a razão não importará. Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um ambiente ultracompetitivo.
Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda, progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política. Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política, este é o problema do século XXI.”

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

Moro ministro: pagamento pelos serviços prestados , por Luiz Felipe Miguel

Luiz Felipe Miguel
Professor de Ciência Política na UnB

Como previsto, Moro aceitou o cargo que Bolsonaro lhe ofereceu.

O teatrinho feito até agora foi comprometido pela indiscrição do general Mourão, que revelou que o acerto já estava encaminhado desde antes da eleição. Mourão gosta de passar por ingênuo e boquirroto, mas é um esperto. A indiscrição provavelmente é uma jogada das disputas internas por poder, visando desgastar o juiz de primeira instância.

Pela imprensa, muitos liberais lamentam a decisão de Moro, porque ela "confere credibilidade" à "narrativa" de que a Lava Jato não é imparcial e tinha como objetivo principal retirar o PT do poder. Na verdade, não precisava disso, pois o caráter da operação já estava evidente desde muito cedo. O problema, para esses liberais, é que vai ficando cada vez mais difícil separar o avanço neofascista das suas etapas prévias: o golpe de 2016 e a criminalização da esquerda. Se eles não querem ser cúmplices de um, terão que fazer autocrítica dos outros.

Há um precedente à situação de Moro. Francisco Rezek, na qualidade de presidente do TSE, foi responsável pelas eleições de 1989. Em seguida, aceitou o convite de Collor para ser ministro das Relações Exteriores, renunciando ao Supremo para assumir a pasta. Perto do que ocorreu nas últimas semanas, a eleição de 1989 foi uma brincadeira de criança, mas o triunfo de Collor também dependeu de manipulação, intimidação e dinheiro ilícito, com os quais a justiça eleitoral foi complacente. A nomeação de Rezek manchou de suspeição o processo eleitoral. (E, anos depois, completando o círculo com enorme desfaçatez, Collor devolveu Rezek ao Supremo, com uma inédita segunda nomeação.)

O caso de Moro é pior ainda. Não se trata "apenas" de fechar os olhos para a sujeira na campanha, mas de um juiz que agiu criminosamente para, primeiro, destituir uma presidente e, segundo, impedir a candidatura do favorito às eleições presidenciais. Não é exagero dizer que, caso houvesse ocorrido julgamento honesto em Curitiba, Porto Alegre e Brasília, Jair Bolsonaro provavelmente não seria o presidente eleito do Brasil. Ao aceitar um cargo que só é explicável como paga pelos serviços prestados, o juiz Moro se mostra desmerecedor de qualquer respeito como magistrado e torna ainda mais incontestável a exigência de anulação de seus atos.