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Do Correio da Cidadania

Gilmar Mauro, da coordenação nacional do MST, em entrevista ao Correio da Cidadania,  lamentou a indicação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura e o pouco avanço que a pauta da reforma agrária obteve nos últimos períodos. Para ele, o governo paga, agora, o preço da despolitização gerada pelos anos triunfais do lulismo.

“A indicação da Kátia Abreu para nós foi uma surpresa no sentido negativo. Não imaginávamos que uma representante de um setor que sempre nos combateu, combateu a agricultura familiar e os sem terra nesse país pudesse ter assento como ministra do governo que nós ajudamos a eleger”.

Apesar de reiterar a necessidade da sonhada reforma agrária, Gilmar afirmou que tal debate, hoje, virou uma responsabilidade de toda a sociedade, pois o atual modelo agrário envolve o abastecimento de água, de energia, a alimentação, o desmatamento e a poluição do solo.

“A reforma agrária hoje em dia não depende só dos sem terra, do MST e dos movimentos de luta por ela, mas de um debate amplo da sociedade. Não cabe mais uma reforma agrária no estilo clássico no Brasil, nós temos de discutir com a sociedade que tipo de uso vamos dar ao solo, à água e aos recursos naturais”, destacou.

Por fim, Gilmar Mauro reafirmou a necessidade da criação de novos instrumentos de luta de classe, “mais horizontais” e que abarquem uma parcela maior da classe trabalhadora, inclusive no sentido de se formar uma ampla frente de representações progressistas. Um desafio não só brasileiro, mas de escala planetária.

Leia a entrevista com Gilmar Mauro a seguir.

Como você, como uma das vozes e líderes de um dos maiores movimentos sociais do Brasil, tem visto o atual governo, imerso em uma crise política e de representatividade, além de condutor de uma política econômica contrária às promessas de campanha, que deve ter forte impacto contracionista, além de induzir grave crise social?

De fato, é uma situação que nós todos não esperávamos, de o governo acenar com um discurso na campanha e, ao adentrar a presidência, propor um ajuste fiscal que todos sabemos não ter feito nenhum país do mundo crescer. Principalmente quando esse ajuste recai sobre os trabalhadores.

Mas eu acho que tanto no mandato anterior quanto nesse, e de certa forma também um pouco nos tempos de Lula, o governo despolitizou de maneira geral a sociedade. Essa história, por exemplo, de construir o linguajar de classe média é completamente despolitizadora e agora o governo está colhendo os frutos disso. Eu digo que é despolitizador porque essa ideia de classes A, B, C, D e E, ou seja, essa sopa de letras, é oriunda da sociologia norte-americana, que discute a possibilidade de mobilidade social sem a alteração da estrutura de propriedade, que no caso brasileiro não foi alterada no último período. Na análise marxista, tem-se a ideia de quem é proprietário dos meios de produção e de quem não é proprietário e vende sua força de trabalho. Portanto, em detrimento da propriedade e da venda da força de trabalho, o consumo define uma ou outra classe. É um processo despolitizador e que instigou a ideia do consumo.

Evidentemente, durante o governo Lula houve crescimento econômico.  É importante destacar que o governo Lula foi beneficiado por um cenário internacional favorável às commodities agrícolas, os preços subiram e, aproveitando-se disso e com os investimentos e financiamentos públicos, somados à abertura de capital com algum ganho salarial, emprego etc., produziu-se um crescimento econômico tímido, mas com alguns ganhos. Construiu-se a ideia de que é possível que todos ganhem: capitalistas e trabalhadores, e todos nós sabemos que isso não é possível no capitalismo. Podemos ter situações favoráveis, como as que aconteceram principalmente no segundo mandato do Lula, mas esse cenário foi se modificando ao longo do governo Dilma e, evidentemente, não dá para todo mundo ganhar no capitalismo.

A segunda questão, que no meu modo de ver foi um erro, é a ideia de trabalhar na dimensão despolitizadora de classe média. Porque, na verdade, o que nós temos é um contingente muito grande de classe trabalhadora, com composição muito heterogênea. Com setores extremamente precarizados, a grande maioria, e uma parte inserida no mercado. Mas, no final das contas, é tudo classe trabalhadora.

O cenário macroeconômico mundial e brasileiro, com o ingrediente da despolitização, trouxe para esse mandato de Dilma vários problemas. O primeiro deles é que não dá para seguir a lógica do governo Lula porque o cenário internacional é outro. E o governo não tem mais dinheiro, porque, nesses mandatos, não foram feitas reformas profundas, sem desconsiderar algumas melhorias no social que tivemos. Mas não houve reforma agrária, não houve reforma nos meios de comunicação, não houve reforma política, não houve reforma no poder judiciário e, portanto, os grandes temas brasileiros continuam tais quais foram legados pelos governos anteriores. É a situação de agora da economia internacional em crise, com um cenário difícil e sem dinheiro. E aí vem o ajuste, que implica cortes de gastos sociais e perdas para a classe trabalhadora.

No meu modo de ver, é um governo que, do ponto de vista ideológico, diz uma coisa e faz exatamente outra, mas também paga um preço pelo processo de despolitização vivido no último período.

Vou dar mais um exemplo. Todos nós sabemos que quem produz a nossa riqueza é a classe trabalhadora. Uma ponte ou uma escola é produzida por operários da construção civil, por engenheiros, por arquitetos, ou seja, governo nenhum produz a ponte ou constrói a escola. E quem paga a conta também é a classe trabalhadora, porque uma parte da mais-valia é extraída e utilizada no pagamento dos impostos que sustentam o Estado. Governo nenhum faz grandes coisas, mas um bom governo estabelece boas prioridades e isso nunca foi feito no Brasil.

Tem mais um ingrediente importante de destacar: estamos vivendo uma época, em escala planetária, de falta de projeto político. A minha impressão – e vários intelectuais compartilham dessa impressão – é de que não há futuro, apenas presente, e o presente significa consumo. Quando eu falei da despolitização e de instigar o consumo, estamos vivendo isso em escala planetária. As juventudes e adolescências desse tempo histórico estão muito ligadas ao tempo presente e ao consumo, e o tal do consumo é uma coisa efêmera. A pessoa consome hoje, amanhã não consegue consumir outro produto, entra em depressão e assim por diante. Mas o pior não é isso. Em tempos passados, a juventude queria se igualar ou ser parecida com os pais. Agora vivemos um tempo invertido: os pais estão querendo ser iguais aos filhos, é a busca da juventude eterna.

A minha impressão é que falta um projeto para o futuro e digo isso principalmente por conta do ingrediente da despolitização. Governos que contribuem com tal processo, evidentemente, produzem situações como a que estamos vivendo. Além dos problemas da falta de enfrentamento às questões centrais do Brasil, estamos vivendo um tempo em que o neoliberalismo, em escala planetária, está muito eficiente do ponto de vista ideológico. Foi um fracasso do ponto de vista econômico e social, mas, ideologicamente, um sucesso. E ao mesmo tempo, há uma dificuldade muito grande das esquerdas, dos movimentos e dos instrumentos organizativos da classe trabalhadora de fazer um diálogo amplo com as massas.

Qual é a postura do MST face ao governo diante da atual conjuntura? Tem havido alguma revisão da relação do movimento com o governo Dilma?

Nesse momento conjuntural, e em outros, continuamos colocando a pauta da reforma agrária. Nós achamos que o primeiro mandato do governo Dilma foi um desastre para a reforma agrária, não avançamos em praticamente nada no governo anterior e a pauta continua estagnada. Toda a lógica macroeconômica, baseada na produção de commodities agrícolas para ter um equilíbrio no balanço de pagamentos, foi estimulada desde o governo FHC, passou por Lula e chegou a Dilma. Ou seja, buscava-se, através da exportação de commodities e da busca por superávit comercial, equilibrar o balanço de pagamentos, negativo nas contas e serviços. E tudo isso levou a uma priorização e grandes investimentos no agronegócio.

Evidentemente, o agronegócio se beneficiou desde o governo FHC, passando por Lula e Dilma, muito mais do que a agricultura familiar e muito mais do que os movimentos sociais e populares, como o Movimento dos Sem Terra. A reforma agrária ficou estagnada. O que nós estamos trabalhando no momento? Estamos colocando a pauta da reforma agrária em debate e estamos atentos para que não haja nenhum tipo de retrocesso do ponto de vista da luta democrática. Não sou lá um defensor desse Estado Democrático de Direito, que é um Estado de classes e nunca orientado a servir aos interesses da classe trabalhadora, entretanto, sou contrário a retrocessos, golpismos etc.

O que estamos tentando colocar agora, junto com outras organizações sociais, é uma pauta da classe trabalhadora, que se contraponha tanto à agenda do governo, de ajuste econômico, quanto ao Congresso, através da aprovação do PL 4330 (das terceirizações de atividades-fim) e de outras medidas que, no nosso modo de ver, são afrontas às conquistas da classe trabalhadora, assim como é uma afronta o projeto de lei sobre a redução da maioridade penal.

Ou seja, estamos nos colocando contra isso tudo e ao mesmo tempo tentando construir uma pauta política que coloque os temas da classe trabalhadora em evidência e em discussão. Isso está se fazendo com lutas. Só nesse mês de abril, nós conseguimos fazer mais de 30 ocupações, chegando perto de 50 ocupações de terra pelo Brasil, número que só tende a crescer. E, ao mesmo tempo, estamos participando de todas as jornadas de lutas unificadas pelos setores da classe trabalhadora contra as medidas recessivas do governo, do congresso e do poder judiciário.

Como o movimento recebeu a nomeação de Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura? Qual o significado dessa nomeação e qual o impacto que poderá ter na continuidade de um processo de reforma agrária, antiga promessa do Partido dos Trabalhadores?

Como contraponto à indicação da Kátia Abreu, foi indicado um bom ministro do Desenvolvimento Agrário, que é o Patrus Ananias. Inclusive, contrapondo pessoalmente grande parte dos postulados defendidos pela Kátia Abreu. Qual é o problema? É que o Ministério do Desenvolvimento Agrário tem um orçamento pífio, inclusive com a perspectiva de contingência de 40% do orçamento para a reforma agrária.

A indicação da Kátia Abreu para nós foi uma surpresa negativa. Não imaginávamos que uma representante de um setor que sempre nos combateu, sempre combateu a agricultura familiar e os sem terra, pudesse ter assento como ministra do governo que nós ajudamos a eleger. Do ponto de vista simbólico, foi um ingrediente extremamente negativo, entretanto, nós achamos que não devemos entrar nessa briga de nomes, porque o problema não está só nos nomes. O problema é a linha geral do governo, que continua sendo a mesma, de tentar priorizar o agronegócio e o viés da exportação de commodities agrícolas, mesmo com o cenário internacional completamente diferente daquele enfrentado no passado.

Evidentemente, isso vai ter consequências, aliás, já está trazendo consequências graves para o nosso país, como o envenenamento do solo e da água, a eterna monocultura, problemas graves com o abastecimento de água, como, por exemplo, no estado de São Paulo. E todo mundo sabe que não é um problema só deste momento. Já é um impacto de consequências, tanto pelo desmatamento quanto pela monocultura, e assim por diante. É uma lógica destruidora do meio ambiente e concentra riqueza e renda no campo. Obviamente, estamos combatendo-a abertamente, não só na indicação e no nome propriamente, porque não adiantaria colocar um outro nome ali que seguisse a mesma lógica. O que buscamos é combater toda essa lógica econômica. É importante, e tenho destacado entre entrevistas no próprio Correio da Cidadania, que a reforma agrária, hoje em dia, não dependa só dos sem terra, do MST e dos movimentos de luta pela reforma agrária, mas de um debate amplo da sociedade.

Não cabe mais uma reforma agrária no estilo clássico no Brasil. Nós temos que discutir com a sociedade que tipo de uso vamos dar ao solo, à água e aos recursos naturais. Se for esse uso atual, não precisa mais de reforma agrária. Mas precisamos pensar em novas formas de nos prevenir dos impactos à saúde humana e ambiental desse tipo de modelo. Outra coisa que precisamos discutir é que tipo de comida a humanidade vai querer comer.

Assim, nós acreditamos muito que a reforma agrária é necessária. Mas para fazer reforma agrária é preciso discutir o modelo agrícola e esse modelo agrícola aplicado pelo governo Dilma, com a indicação da Kátia Abreu a ministra, é completamente ultrapassado e vai na contramão de uma perspectiva de preservação ambiental com justiça social.

E qual tem sido a postura do governo Dilma com o movimento nesse cenário atual, à luz de toda a relação que desenvolveram desde o primeiro mandato?

Do ponto de vista das reuniões, houve o compromisso recente de fazer o assentamento de todas as famílias acampadas que temos pelo Brasil, que ultrapassam as 120 mil. O indicativo seria que nesse ano o governo não teria condições de assentar muitas famílias, mas que, a partir do ano que vem, e até o término do mandato, conseguiria assentar todas as 120 mil famílias. Eu diria que não é tudo o que nós queremos, evidentemente, mas já seria um bom indicativo. A dúvida é se isso realmente vai ocorrer.

Nós sabemos que a luta política não depende só de boa vontade, sabemos que de boa vontade o inferno está cheio e cabe a nós a tarefa de continuar fomentando o debate e nos mobilizando. Acho que há uma tendência nesse próximo período de aumentar o número de lutas e de ocupações de terra por todo o Brasil, pois vivemos um outro fenômeno: o desemprego. No interior e na indústria, o momento é de crise e falência de muitas empresas, com muitos trabalhadores colocados nas ruas. Nossos primos mais próximos, em um momento de crescimento do mercado de trabalho, encontravam alternativas na agricultura ou na cidade, o que até fez a própria demanda da luta pela terra ter uma ligeira queda. Agora não. Há um agravamento das desigualdades sociais e a tendência é que haja uma busca pela reforma agrária muito maior do que houve na última década.

Como movimento social, temos de lutar pelos avanços e conquistas da nossa categoria, que vão desde a desapropriação e o assentamento das famílias acampadas até moradia, crédito etc.. Temos também demandas mais graves, provenientes de situações precárias em acampamentos, como, por exemplo, falta de lona, de materiais essenciais para o trabalho e assim por diante. Conjugar as dificuldades econômicas e lutas mais urgentes da base com uma luta política é um grande desafio, sempre colocado pelo movimento.

Por isso nós não nos colocamos na oposição ao governo e até publicamente tenho dito que nossas mobilizações não são nem contra e nem a favor do governo Dilma. O que queremos é ver a pauta da reforma agrária atendida. Isso pode parecer ficar em cima do muro, mas, como representante de um movimento social e uma categoria, com uma pauta específica, não me corresponde oferecer apoio ou oposição ao governo. Há uma série de problemas cotidianos que precisam ser negociados. Nossa tática é lutar, conversar, negociar e buscar obter conquistas de forma permanente, sem criar ilusões de que “agora a reforma agrária vai acontecer”.

Na minha avaliação, para acontecer a reforma agrária é preciso alterar toda a estrutura de poder e a correlação de forças. E estamos em um momento bastante complicado. Outro ingrediente é o Congresso Nacional, no qual vários projetos estão sendo aprovados, alguns com anuência do governo e outros não, de iniciativa própria do Congresso e contra os interesses dos trabalhadores. É o que acontece, por exemplo, na Assembleia Legislativa do Paraná, que quer votar um projeto de retrocesso da luta trabalhista e dos direitos conquistados pelos professores. O mesmo está sendo feito em todo o Brasil, mas há várias frentes de luta pela reforma agrária, contra os ajustes do governo etc.

Temos de fazer uma frente de luta também contra os parlamentos, que estão votando uma série de retrocessos, como o PL 4330. Tem de haver muita mobilização no próximo período.

Nesse sentido, o que pensa das tentativas de criação de uma ampla frente de esquerda que ocorrem ou eventualmente venham a ocorrer, unindo movimentos e partidos progressistas? Como considera que tem sido a postura do MST face a estas tentativas?

O MST está junto da construção desse processo. Eu mesmo, pessoalmente, tenho me envolvido em muitas articulações com o conjunto dos movimentos progressistas. Com enormes diferenças entre si, mas que, na iminência de retrocessos, seja do ponto de vista político, seja do ponto de vista concreto de ataques aos direitos da classe trabalhadora, permitem-se a unificação. É um caminho importante.

Temo ainda que a nossa esquerda tenha bastante dificuldades em pequenos detalhes, que estão, muito mais, emperrando processos do que constituindo um amplo leque no campo progressista, a evitar que caminhemos para trás. Precisamos pensar alternativas para irmos para a frente. Mas acho que isso é fruto de um momento histórico. Diria que não é uma particularidade brasileira. A esquerda no mundo todo enfrenta uma crise grave. Mas não adianta ficarmos culpando a esquerda ou um agrupamento ou outro. Falta-nos uma análise um pouco mais profunda das mudanças que ocorreram na economia e, principalmente, no mundo do trabalho, qu,e no meu modo de ver, trouxeram consequências graves para as conquistas históricas dos trabalhadores.

Se verificar, estamos agindo muito mais reativamente a iniciativas do governo e de setores da direita do que levando adiante uma pauta propositiva e ofensiva. E a maioria das nossas organizações é de caráter defensivo, foram criadas em momentos como esse, em que o movimento do capitalismo não nos permite ganhos. Aqui no Brasil, na Europa e na maior parte do mundo, nosso movimento vive um período de perdas e as organizações não têm a capacidade de enfrentar esse tempo histórico. Novas categorias surgiram na área de serviços e as organizações sociais não têm capacidade de articulá-las.

Eu diria que nós precisamos fazer um balanço profundo, do ponto de vista organizativo e também econômico, uma reestruturação produtiva, das relações dentro das fábricas, contra a precarização etc., e nas nossas formas organizativas, que não conseguem dar conta disso. É o grande desafio. Eu gostaria muito de ter novas formas organizativas para enfrentar o momento, mas não tenho. O que tenho no momento é aquilo que a gente produziu, portanto, é com esse instrumento que vamos fazer o enfrentamento e evitar os retrocessos. Mas eu diria que essa não é a única tarefa, é apenas a lição de casa.

Ao mesmo tempo, precisamos construir reflexões e análises que apontem a uma perspectiva de superação do atual cenário. E tal superação passa, talvez, por construir novas experiências organizativas, mais horizontais, que incluam um maior número de pessoas da classe trabalhadora, que hoje estão fora de qualquer forma de organização. São os desafios postos e acho que muitos setores da esquerda não estão se dando conta da necessidade de se reinventar nesse momento histórico.

Como a ideia do “exército de Stédile”, proferida por Lula, como forma de eventualmente se enfrentar “foças golpistas contra o atual governo”, se relaciona com essa conjuntura? Qual é a relevância ou simbolismo dessa ideia no atual cenário político, a seu ver?

Só perguntando ao Lula pra saber exatamente o que quis dizer. Mas vi mais pelo sentido figurado, pois o MST é uma organização de grande capilaridade em território nacional. Até é verdadeira a afirmação, não pela palavra exército, mas porque temos uma militância aguerrida. No dia 31 de março, na quadra dos bancários em São Paulo, falei com toda a tranquilidade que não vamos admitir golpismo sem resistência de massa. Não vamos pra França, para o Paraguai, pra lugar nenhum. Nosso país é esse e vamos ficar aqui.

Também acho que a direita sempre teve um lado golpista e continuamos combatendo. Tivemos a recente concessão da Medalha da Inconfidência ao João Pedro Stédile, e resolveram entrar com pedido de devolução. A Rede Bandeirantes fez editorial nos chamando de bandidos... Há um combate da direita ao nosso movimento e, evidentemente, ninguém joga pedra em árvore seca.

Além disso, o Lula ainda é uma referência de massa muito grande, é inegável. Os setores de direita têm medo. Mas de certo modo há certo medo da militância, não tanto do MST, e, sim, dos movimentos sociais em geral, que têm militantes aguerridos e mais de uma vez enfrentaram situações difíceis nas lutas recentes.

Penso que nesse momento, como em todos, consenso e coerção são coisas que caminham muito próximas. Acho que a elite brasileira tenta criar consenso para justificar ações coercitivas. Por exemplo, a diminuição da maioridade penal foi tão trabalhada na mídia que agora 70% da população apoia. Lembro também a ocupação das fazendas de laranja da Cutrale: apanhamos tanto da imprensa que, se saíssemos na rua naquela região, íamos apanhar da população. Portanto, a tentativa de buscar consenso para ações coercitivas é a tônica do momento.

De toda forma, estamos muito tranquilos. Entendendo a gravidade do momento e vendo que não dá para fugir dos temas e desafios atuais da classe trabalhadora. Temos de avançar. São janelas que se abrem. Crise não é sinônimo de avanço, em vários momentos de crise a humanidade acabou indo para trás. Não é à toa que surgiram o fascismo e o nazismo. Mas, em outros momentos, a classe trabalhadora conseguiu vitórias. É um momento importante agora.

Gosto muito da ideia de se fazer uma frente de esquerda, que rompa sectarismos e verdades absolutas. Que a gente tenha mais humildade e serenidade e, ao mesmo tempo, esteja atento ao momento, para desencadear um conjunto de ações que nos permita enfrentar os posicionamentos direitistas e fazer a luta de classes avançar no Brasil.

Como consideraria, finalmente, o atual momento e o futuro de mobilização do MST? Pode-se dizer que o movimento enfrenta seu pior momento no que se refere às suas divisões internas, à relação entre dirigentes e bases e à incorporação de novos militantes?

Pelo contrário, não existe isso no momento. Não temos divisões internas, estamos num momento de unidade intensa. Vivemos um momento de crise, mas já foi superado. O movimento, sem dúvida, está mais unificado do que nunca e tem muito claro seu papel, inclusive para além da reforma agrária. Sabemos que temos de cumprir um papel político maior, até porque a reforma agrária não seria nosso papel e, sim, incumbência dos partidos políticos. Mas na ausência de partidos com força, o MST, evidentemente, também cumpre esse papel político.

Acho um momento muito bom para o movimento, até no sentido de ter a possibilidade de aumentar as lutas. Mas é claro que vivemos essa crise toda, da esquerda, que afeta todos nós. Há agrupamentos que, hoje, não sofrem ataques da direita e brinco com eles: “cresce um pouquinho pra ver o que acontece”. Porque, quando não incomoda, ninguém ataca. Mas, quando passa a incomodar, os ataques são intensos.

Vamos enfrentar nova CPI em São Paulo e talvez em nível nacional. São tentativas da direita de enquadrar, ofuscar e domesticar o MST. Mas não tem como domesticar o MST, pois ele sempre se mantém em luta. Na última década, de fato, houve uma queda nas lutas, por uma série de fenômenos, principalmente econômicos. Porém, minha expectativa é de que se abre um novo período, que permite a intensificação das lutas sociais.

Pra concluir, o momento é de desafio para toda a esquerda e estamos inseridos nisso. É preciso requalificar a luta pela reforma agrária, requalificar o MST, as lutas sociais, o papel dos movimentos, a própria relação dos movimentos com o Estado e os governos... Em momentos de crise, há uma linha tênue. Alguns incorrem no erro de cair no reformismo, inclusive ideologicamente. Quero reformas, sou amante das reformas, mas o grande problema é que o capitalismo não as permite. Por isso não queremos apenas reformas, embora também lutemos por elas, até como tática pra discutir com a população.

Em momentos de crise, existem dois riscos: um é cair num reformismo desenfreado, que busca saídas emergenciais, até com negociatas etc.;  outro risco é cair no esquerdismo, fazer muito discurso revolucionário sem nenhuma força política. Eu diria que o momento não pede nem reformismo e nem esquerdismo, pois não vão a lugar nenhum. Temos de achar a justa medida para construir formas de resistência e, ao mesmo tempo, caminhos para avançar.