sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

Saúde, os desafios a enfrentar, por José Gomes Temporão


José Gomes Temporão ex-ministro da Saúde
José Gomes Temporão ex-ministro da Saúde

SAÚDE, OS DESAFIOS A ENFRENTAR NESTE TERCEIRO MILÊNIO

Saúde permanece em pauta em nosso país estimulando acirradas polêmicas. Em sua dimensão humana básica é vislumbrada como eterna demanda estampada nas páginas da grande imprensa e em acalorados debates nas redes sociais.
Entretanto, nossa reflexão é que o retrato resultante desse rico processo de discussão volta-se para as dificuldades de acesso das famílias às tecnologias duras – ressonâncias magnéticas, medicamentos de última geração, hospitais e especialistas – o que desvenda na realidade não a preocupação com a produção de saúde mas com a doença presente e instalada. E segundo o psicanalista inglês Donald Winnicott, saúde não é o oposto de doença; é vida criativa, com qualidade. Este, o nosso maior desafio no terceiro milênio: compreender que se nós, humanos, não nos cuidarmos, uns aos outros, e ao nosso planeta de forma ética e responsável, colocaremos uma pá de cal sobre as expectativas de uma civilização que abrigue e garanta a todos, aquilo que falta a cada qual para viver mais e melhor.
O desenvolvimento sustentável do país requer colocar a saúde em todas as políticas, considerando suas dimensões biológica, psicológica e social e buscando construir um ambiente facilitador à vida.
Nesta perspectiva deve-se trabalhar sua determinação político-social, priorizando ações intersetoriais e a articulação de diversas políticas: a universalização do saneamento básico, a melhoria da mobilidade urbana, a redução da poluição atmosférica nas grandes cidades, a garantia da moradia digna, o amplo acesso aos bens culturais, à educação pública de qualidade, a universalização do acesso à creche, a ampliação do poder de compra das famílias mais pobres, a garantia de que os alimentos consumidos não estejam contaminados por pesticidas, e de que sim, possamos viver em liberdade, segurança e paz.
A epidemia de homicídios, acidentes de trânsito e suicídios que em conjunto vitimou mais de cem mil pessoas em 2012, expõe o drama social brasileiro. Essa realidade, em conjunto com o consumo de drogas deve ser compreendida e enfrentada como questão de saúde pública, exigindo uma radical mudança nas atuais estratégias de enfrentamento, exigindo uma participação expressiva da sociedade na construção de novas soluções.
No cerne desta visão está a construção de um ambicioso projeto de educação e informação em saúde que permita criar uma nova consciência sobre saúde pública que envolva toda a sociedade, centrada na promoção e prevenção como bases de um sistema que se pretende inovador. Para tanto precisamos rever em profundidade o padrão de formação de nossos médicos e demais profissionais enfrentando a fragmentação e a hiperespecialização precoces, os aspectos da sua distribuição no território nacional e a relação contratual com o SUS.
Saúde, educação e ciência, este o tripé que nos garantirá um futuro promissor. Para garantirmos a sustentabilidade tecnológica do SUS devemos fomentar as políticas em vigor voltadas para o fortalecimento do Complexo Industrial da Saúde, incluindo a pesquisa, o desenvolvimento tecnológico e a redução da dependência externa no campo do domínio das novas tecnologias.
Apesar de termos atingido o objetivo quatro das metas do desenvolvimento do Milênio, com a importante redução da mortalidade infantil, permanece o desafio da redução da mortalidade materna e neonatal cuja múltipla causalidade vincula-se a temas como o baixo acesso das mulheres à informação sobre seus direitos sexuais e reprodutivos e o preconceito e o estigma de dogmas e religiões que interferem na gestação e no parto. Para mudar o mundo é preciso mudar a forma de nascer, nos ensina Michel Odent. No Brasil, sabemos o quanto ainda precisamos trabalhar neste sentido.
Mas quando a doença surge é preciso dispor de um conjunto de serviços, acolhedores e de qualidade, com fluxos ágeis e acessíveis a tempo e a hora. Sabemos que sem recursos financeiros adequados isso não será possível. Existe um grande consenso de que a ampliação do gasto público é medida imperativa, mas se a mesma não vier acompanhada de medidas corajosas no âmbito da gestão pública, da revisão das relações entre os setores público e privado e da destinação que será dada a esses novos recursos, seu impacto será reduzido.
Assim, o caminho mais inteligente para avançar na integralidade e na humanização da atenção deve considerar a constituição de uma rede que supere a gestão desarticulada da assistência, hoje dispersa pelos milhares de municípios brasileiros, retomando-se a discussão das regiões de saúde como matriz de organização territorial do cuidado no SUS. A base deste processo será estruturar o Programa de Saúde da Família como porta de entrada universal, com forte ênfase na promoção e prevenção e que atenda a todas as demais necessidades das famílias: da urgência, à atenção por especialistas; da internação à garantia do acesso a exames e medicamentos.
Temos um longo caminho a percorrer. É preciso compreender essa construção como um processo político-ideológico que resulte em uma nova consciência onde possamos reconhecer enquanto nação o valor do Sistema Único de Saúde, enquanto política pública redutora de desigualdades, patrimônio do povo e expressão de conquista da cidadania.

José Gomes Temporão,  é médico sanitarista e ex-ministro da Saúde.



Nenhum comentário:

Postar um comentário