Golpe: uma novela brasileira

Rupturas com a legalidade democrática, consumadas ou tentadas, são comuns na história do Brasil. O controverso suicídio de Getúlio Vargas em 1954 adiou por dez anos uma dessas rupturas. A estabilidade democrática também poderia ter sido quebrada antes caso a “Campanha da Legalidade”, mobilização popular de resistência protagonizada por Leonel Brizola, tivesse falhado no objetivo de garantir a posse do vice-presidente João Goulart após a crise política gerada com a renúncia, até hoje não satisfatoriamente esclarecida, de Jânio Quadros da Presidência da República em 1961.
O roteiro já é conhecido: sempre que os detentores do Poder Econômico se imaginam ameaçados por quem eventualmente detenha parcela do poder político, iniciam-se tentativas de desestabilizar o governo e, se isso não for suficiente para assegurar vitórias eleitorais, não há pudor em recorrer a medidas extraordinárias voltadas à ruptura com a ordem democrática, por vezes de maneira explícita, como se deu com os militares brasileiros após o AI-5 (o chamado “golpe dentro do golpe”, que acabou de sepultar os direitos e garantias individuais em 1969), em outras ocasiões com aparência de legalidade (golpes brandos).
Não raro, nesses momentos em que a elite econômica acredita ser necessário fomentar crises políticas, recorre-se ao conceito aberto “corrupção” para mobilizar o imaginário popular contra os governos indesejados. Foi assim com Getúlio Vargas, com João Goulart e com Lula. Um moralismo seletivo, instrumental à desestabilização de governos democraticamente eleitos, muitas vezes desconectado da realidade e que desaparece sempre que os detentores do poder político se identificam com os detentores do poder econômico, ocasião em que a pauta da “corrupção” é descartada, sem que diminuam os atos de corrupção ou se atinja o mercado.
Pensar que o escândalo midiático-político chamado de “Mensalão” (que resultou na prisão e condenação, em processo marcado por muitas atipicidades, de lideranças do Partido dos Trabalhadores) não foi suficiente para impedir a reeleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e os seguidos mandatos de sua sucessora é necessário para se entender o fato de Dilma Rousseff ter figurado como ré em um processo atípico de impeachment. Vale lembrar que, desde que foi eleita, a presidente Dilma sofria ameaças de destituição, tais como a auditoria das urnas eletrônicas, os pedidos de cassação da chapa Dilma-Temer na Justiça Eleitoral e as diversas formas de pressão para levá-la à renúncia.
Golpe, por definicão, é um estratagema, um ardil, uma manobra ilegítima. A utilização da forma jurídica “impeachment” para derrubar um governante eleito sem que exista um fato concreto que encontre adequação típica entre os “crimes de responsabilidade” é um golpe, por mais que empresários, jornalistas e juristas de ocasião, que sempre aparecem em contextos golpistas, busquem justificar aos olhos de uma população desinformada a ruptura com as regras do jogo democrático.
No caso de Dilma Rousseff, a má-gestão e a corrupção costumam ser apontadas pela população brasileira, em especial entre aqueles que utilizam os meios de comunicação como prótese do pensamento, como as principais causas do desejo de sua queda. Porém, esses não foram os fatos “criminosos” atribuídos a ela no processo deimpeachment. Não há um único caso concreto de corrupção atribuído à presidente. Ao contrário, o governo Dilma é reconhecido como um dos poucos na história do Brasil em que as instituições do sistema de justiça criminal tiveram plena liberdade para investigar e punir crimes de corrupção. Não obstante, a “sensação” de corrupção do governo, produzida pelos meios de comunicação de massa que no Brasil são controlados por poucas famílias, era elevada. O capítulo midiático do golpe não é pequeno.
A má-gestão, por sua vez, em grande parte provocada pelos chamados “pactos de governabilidade” com partidos que defendem programas políticos e interesses diversos daqueles historicamente vinculados ao Partido dos Trabalhadores, não é motivo constitucionalmente adequado aoimpeachment. Nas democracias, a responsabilidade política pelos atos e opções de governo já tem um mecanismo democrático de controle que é o voto. A má-gestão da coisa pública acarreta um custo eleitoral e o dirigente político arca com esse custo no resultado das eleições.
O Brasil adota o modelo presidencialista, em que um único agente político exerce a dupla função de Chefe de Estado e de Governo. No presidencialismo não há a “moção de censura” e o “voto de confiança”, instrumentos de controle de governo típicos do modelo parlamentarista, logo não é possível que um quadro de má-gestão provoque a dissolução do governo e a convocação de novas eleições. A responsabilidade política no Brasil não está, portanto, atrelada a juízos de oportunidade ou de conveniência: as hipóteses deimpeachment estão adstritas ao princípio da legalidade estrita, isto é, apenas em hipóteses taxativamente previstas na Constituição da República (interpretadas de acordo com os fundamentos, estruturas e objetivos do Estado Democrático de Direito) é possível afastar o presidente a partir de um juízo político-jurídico. A dimensão política desse julgamento se dá em respeito aos votos do governante acusado, como garantia da democracia, e não como uma autorização para afastar o presidente eleito independentemente da existência de crimes ou em desconsideração às provas existentes (no caso de Dilma, vários senadores que em concreto exerciam a função de juízes, abandonaram a sessão de julgamento sem assistir aos atos probatórios).
Exceção feita aos casos de renúncia, morte ou término do mandato, só a demonstração da prática de uma das hipóteses de violação de normas jurídicas que se caracterizem como “crime de responsabilidade” justifica a quebra da estabilidade do mandato presidencial e o término antecipado do mandato. No caso brasileiro de 2016, conforme reconhecem vários parlamentares que votaram pelo impedimento de Dilma, não havia crime de responsabilidade.
O pedido de impeachment de Dilma Rousseff teve dois fundamentos: as chamadas “pedaladas fiscais” e a abertura de créditos suplementares sem autorização legislativa. Nos dois casos, o que existe são manobras fiscais que não violam os bens jurídicos protegidos pelas normas penais que tratam dos crimes de responsabilidade. As “pedaladas fiscais”, por exemplo, não passaram do atraso nos repasses de recursos do Tesouro Nacional, isso para permitir que o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal pagassem os benefícios sociais devidos pelo Estado, tais como o Bolsa Família, o seguro desemprego, etc. Como as instituições financeiras pagam em dia os benefícios, o atraso no repasse dos recursos públicos gera contratualmente o pagamento de juros pelo governo aos bancos públicos, o que ajuda a dar uma aparência de equilíbrio às contas públicas. Por sua vez, os créditos suplementares, que visam aumentar as dotações orçamentárias destinadas a determinadas despesas em face da insuficiência dos valores que foram originalmente previstos, são um procedimento corriqueiro na Administração Pública brasileira e foram adotados não só pelo Governo Dilma (após a queda de Dilma, o mesmo Congresso que afastou a presidente regulamentou os créditos suplementares).
Em apertada síntese, sem a existência de verdadeiros crimes de responsabilidade, no processo instaurado contra a presidente Dilma Rousseff buscou-se através da forma jurídica “impeachment” uma mudança institucional, promovida através de uma fração do aparelho de Estado, mais precisamente da ação da maioria do parlamento (capítulo legislativo do golpe) e da omissão de parcela do Poder Judiciário (capítulo judiciário do golpe), através da ampliação inconstitucional e casuística do rol de crimes de responsabilidade para abarcar condutas que são praticadas, e sempre foram tidas como legítimas, desde o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, uma das principais lideranças do PSDB, partido que apoiou o golpe e que atualmente, apesar de ter pedido as quatro últimas eleições presidenciais, integra o governo Temer (que, aliás, adotou o programa de governo derrotado nas urnas) .
A ação contra a presidente Dilma enquadra-se no movimento de “golpes encobertos”, que buscam a máxima aparência de legalidade, tal como ocorreu no Paraguai e em Honduras, em uma espécie de flexibilização tanto do presidencialismo quanto dos mecanismos de juízo politico. Agora, para além do golpe, impõe-se pensar as consequências desse movimento na realidade brasileira
Já existem fortes sinais da desconstitucionalização tanto do sistema político quanto do sistema de justiça brasileiro, que a partir do desenvolvimento do processo golpista deixou claro o abandono do sistema de vínculos legais impostos a qualquer poder. Instaurou-se uma espécie de “vale tudo” argumentativo, no qual os fins afirmados pelos atores políticos e jurídicos — ainda que distantes da realidade — justificam a violação dos meios estabelecidos na própria Constituição da República, bem como das formas e das substâncias que constituem o Estado Democrático de Direito. Ao longo desse processo ficou constatada a progressiva desconsideração, ou mesmo a eliminação, dos valores constitucionais das consciências de parcela do povo brasileiro, inclusive dos atores jurídicos. Infelizmente, o desenvolvimento do processo de impeachment em desacordo com o regramento constitucional acabou por revelar que ações e omissões em contrariedade às regras constitucionais foram praticadas ou, ao menos, toleradas pelo Poder Judiciário. No pós-golpe, portanto, não há razão para confiar no funcionamento constitucionalmente adequado das instituições no controle dos poderes econômicos ou políticos.
Com o afastamento de Dilma Rousseff, a sucessão implicou em um novo governo protagonizado pelo PMDB, partido do vice-presidente. Assim, mudou-se também a relação entre a esfera pública e a esfera privada. Isso porque esse partido, ou pelo menos sua parcela hegemônica, representa explicitamente ou é formada pelos próprios detentores do poder econômico. Desapareceu, assim, a própria ideia de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do poder econômico (um complexo de interesses econômicos, financeiros, midiáticos, etc.). O poder político acabou subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder econômico tornou-se o poder político. Com isso, ficou mais difícil a identificação dos atos de corrupção, bem como desaparecem ou são drasticamente reduzidos os mecanismos de controle dos atos do governo. Antes, o corruptor “comprava” o corrupto (detentor de parcela do poder político) para alcançar um objetivo distinto daquele que se daria no exercício legítimo do poder político. Agora, com o desaparecimento de qualquer distinção entre o poder político e o poder econômico, os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer mediação, como “interesses públicos”, isso em corrupção do sistema econômico, do princípio da livre concorrência, do sistema de proteção trabalhista, do sistema de direitos e garantias liberais, da liberdade de informação, ou seja, em corrupção do próprio Estado Democrático de Direito.





Há, porém, um dado positivo em meio ao atual quadro político. A crise potencializada com o acolhimento do pedido de impeachment de Dilma Rousseff fez muita gente despertar para a política. Alguns, para a política identificada com os seus próprios interesses econômicos e com concepções autoritárias de sociedade. Todavia, outros despertaram para a alegria política de atuar juntos para a defesa da legalidade democrática e a manutenção de conquistas sociais. Multidões foram às ruas. No pós-golpe, os golpistas não estão a dormir tranquilos.
Rubens Casara, doutor em direito, mestre em ciências penais e juiz de direito do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro